Remodelar o Oriente Médio: Por que as intervenções do Ocidente têm de acabar (1ª parte)

15/02/2019, Elijah J Magnier (Blog)

Dos Comentários: RAY032, 15/02/2019 at 3:43 pm

A governança do Hezbollah é horizontal, e ali ninguém é indispensável. Sou Cristão Canadense, e essa linha, para mim, traduziu-se nos termos de Apocalipse 3:21: “E disse o Senhor: “Ao que vencer lhe concederei que se assente comigo no meu trono; assim como eu venci, e me assentei com meu Pai no seu trono”.
(Epígrafe acrescentada pelos tradutores)
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Imagem: Sayyed Abbas al-Mussawi, Secretário-geral do Hezbollah assassinado por Israel.

Cada intervenção estrangeira levou o Oriente Médio a se auto-reconfigurar contra as potências intervencionistas. Foi duramente contra-atacada, criando o efeito oposto ao que o desejavam as potências intervencionistas. Se se considera a história recente (os últimos 40 anos, desde que a Organização para Libertação da Palestina, OLP, foi expulsa do Líbano), a lista é cataclísmica. Tem-se a constituição do Hezbollah, do Hamas, da al-Qaeda, do ‘Estado Islâmico’ (ISIS), o fim do regime dos Talibã, Saddam Hussein, Moammar Ghadaffi, a tentativa de derrubar o presidente Bashar al-Assad da Síria, a tentativa de dividir o Iraque e a guerra contra o Iêmen. A lista dá prova da quantidade inacreditável de recursos mobilizados por EUA, Israel, Europa e respectivos aliados no Oriente Médio, sempre tentando “mudar o regime”; e do fracasso retumbante do ‘plano’ para criar um “novo Oriente Médio”.

De fato, o que fizeram foi criar gerações de poderosos atores não estatais (ou atores quase estatais). Reforçaram a influência do Irã no Oriente Médio, trouxeram a Rússia de volta para a arena internacional depois da calmaria da Perestroika. Mas trouxeram descomunal destruição, tendo acabado com a infraestrutura básica de muitos países, devolvendo ao passado mais miserável essa parte do mundo, criando mais migrantes, mais miséria, falta de serviços, trauma – e fúria contra o Ocidente. Países do Oriente Médio pagaram quantia gigantesca de dinheiro, principalmente por exigência e com a concordância dos EUA, o que debilitou povos e governos no Oriente Médio, com um único resultado claro: uma região mais pobre, mais instável e mais furiosamente hostil ao Ocidente.

A invasão de Israel ao Líbano em 1982 (bem-sucedida no objetivo de remover a OLP, um estado dentro de outro) ajudou o parto de um exército irregular organizado, de nome Hezbollah, o “Partido de Deus”. O Líbano vivia sob controle dos cristãos maronitas, por um lado, e dos palestinos, por outro. A OLP e outros grupos palestinos menores atacaram Israel esporadicamente a partir do sul do Líbano, com foguetes cegos de fabricação soviética (Katyusha) ou mesmo com um timer conectado a foguetes cegos de pequeno calibre abandonados numa cova num campo de oliveiras ou de laranjeiras no sul do Líbano, dirigidos e disparados na direção de Israel.

As avaliações sempre erradas, por Tel Aviv, indicavam que conseguiriam criar um “Protetorado cordial, obediente, impotente (o Líbano)” na fronteira norte. Israel planejava pesar a mão sobre a liderança libanesa, para que assinasse um tratado de paz com Israel, com o qual o Líbano estaria submetido à vontade e aos planos expansionistas de Israel. A OLP era comandada por Yasser Arafat, homem de objetivos pragmáticos, que gozava de um buquê de contatos por todo o Oriente Médio e pelo planeta. Porque era financiado por vários países árabes, os líderes daqueles países tinham influência sobre suas decisões, e a organização era tão corrupta que, de fato, nunca representou real ameaça contra Israel.

Arafat estava pronto a assinar um tratado de paz com Israel (o que realmente fez anos depois) e era líder secular, muito distante de qualquer crença ideológica profunda.

Imagem: Túmulo de Imad Mughniyeh e de Mustafa Badreddine em Beirute, Líbano.

A OLP foi expulsa do Líbano, o que abriu uma ampla estrada para que o Hezbollah florescesse e ganhasse força. Ao longo dos anos, o Hezbollah aprendeu a lidar com a política interna e conquistou os “corações e mentes” da população, porque nunca foi corpo estranho, desligado da comunidade libanesa xiita, mas parte inseparável dela.

Em 1992, mais uma vez interpretando erradamente a organização, Israel assassinou Sayyed Abbas al-Moussawi e membros de sua família, o líder do Hezbollah que operava como uma espécie de ‘guru’ teológico, figura complexa e modesta de pai e comandante militar. Tel Aviv supôs que teria conseguido paralisar o Hezbollah, convencida de que a liderança do movimento fosse de tipo piramidal. Mas viu Sayyed Abbas ser substituído pelo inteligente e carismático, estrategista talentoso, estudioso da psicologia da guerra e pensador inovador, Sayyed Hassan Nasrallah. E Nasrallah levou o grupo a dimensões que jamais tivera antes, convertendo-o em organização muito poderosa.

Sob o comando de Sayyed Nasrallah, o Hezbollah cresceu para tornar-se mais forte que o Exército Libanês e todas as forças nacionais de segurança somadas. Hoje, a organização tem mísseis de precisão movidos a combustível sólido e mísseis antitanques guiados a laser, mísseis de precisão antinavios, mísseis antimísseis e vários milhares de soldados de Forças de Elite disciplinados, organizados e muito bem treinados. O Hezbollah mantém infraestrutura social, um hospital, escolas, um banco, organização de apoio a órfãos, viúvas e demais familiares de seus mártires, geradores que fornecem eletricidade para o sul do Líbano, subúrbios de Beirute e vários municípios que o Partido de Deus administra.

Em 2005, depois do assassinato do deputado e ex-primeiro ministro Rafiq Hariri, os EUA supuseram que estariam retomando o controle sobre o Líbano e conseguiu forçar uma retirada síria, do Líbano, o que pôs fim à chamada hegemonia militar e política da Síria. Porém, com os sírios fora de lá, o Líbano tornou-se canhão descontrolado, sem comandante capaz de pensar duas vezes antes de fazer Israel voar pelos ares ou deixando que um grupo como o Hezbollah assumisse a tarefa.

Mais que isso, sem o peso dos sírios no governo libanês, o Hezbollah rapidamente chegou ao Parlamento e hoje tem mais de 18 ministros no atual governo, todos eles apoiando os objetivos estratégicos do Hezbollah, de usar força militar contra Israel no caso de guerra; e de manter o próprio armamento avançado como “fator de equilíbrio”, que ativamente impede Israel de levianamente escolher a via da guerra.

A guerra de 2006 “para destruir o Hezbollah” criou uma linha de suprimento militar sem precedentes da Síria para o Hezbollah, operante durante toda a guerra. Em poucas horas o Hezbollah aprendeu a usar os “Kornets” antitanques russos guiados a laser e letais, e conseguiu impedir que Israel alcançasse seus objetivos. O Hezbollah saiu desse confronto ainda mais forte, e reabasteceu o próprio arsenal com as armas adequadas à lição que aprendera da guerra dos israelenses contra o Líbano em 2006.

Depois, dia 12/2/2008, Israel assassinou Haj Imad Mughnniyah, codinome Haj Radwan, que ocupava a vice-presidência do Conselho da Jihad. Naquele momento Haj Imad Mughnniyah comandava o “exército”, a inovação militar, o serviço de inteligência exterior, o apoio à resistência iraquiana e palestina e vários outros dossiês – tudo sob o comando de um só homem. O assassinato de Haj Imad Mughnniyah foi golpe gigante, que atingiu duramente o Hezbollah. Mas rapidamente Sayyed Nasrallah distribuiu as funções de Imad entre meia dúzia de comandantes que a organização já cuidara de formar. Esses novos comandantes cuidaram de aumentar a força e as capacidades de desempenho do Hezbollah, como logo se viu no Líbano, na Síria e no Iraque. A governança do Hezbollah é horizontal: ali ninguém é indispensável.

Imagem: As roupas que Imad Mughniyeh usava na noite em que foi assassinado na Síria, por Israel.

Apesar das objeções de muitos países, o Hezbollah impôs um “presidente da República” cristão, o general Michel Aoun. Defendeu o primeiro-ministro sunita Saad Hariri, no período em que permaneceu em Riad sequestrado pelo príncipe coroado Mohammad Bin Salman e insistiu em que Hariri fosse nomeado no atual governo. Aceitou um número inferior de ministros no novo governo (apesar de o regime vigente de quotas lhe permitir nomear maior número de ministros). Forçou a entrada de um ministro sunita no governo, representante das minorias sunitas, e aceitou que esse ministro indicasse o ministro da Saúde (além de outros).

O Hezbollah não esconde o fato de que seu orçamento de assistência à saúde da população é altíssimo. É efeito não só do envolvimento na guerra da Síria e do alto número de baixas e feridos do próprio grupo (na verdade, esse gasto não passa de pequena porcentagem do gasto total). O gasto do Hezbollah com assistência à saúde deve-se principalmente às dezenas de milhares de famílias que recebem atenção integral à saúde, beneficiárias da assistência integral às famílias dos militantes.

Os altos custos atingem de modo geral todos os cidadãos libaneses, sem exceção, porque o preço de medicamentos importados é ridiculamente alto, o que se deve principalmente a um sistema de monopólio e à corrupção: os mesmos medicamentos fabricados na Turquia, Síria ou Irã, custam uma fração do preço de mercado no Líbano.

Imagem: Endereço (foto tirada pelo autor, no sul do Líbano).

Todas essas interferências ao longo dos anos nos assuntos do Líbano já não deixam dúvidas: foram fortemente prejudiciais para os intervencionistas, e muito beneficiaram o Hezbollah, seus aliados no Irã e todo o “Eixo da Resistência”.

Muito melhor teria sido para o Ocidente, se tivesse deixado que os países do Oriente Médio evoluíssem conforme o próprio ritmo, cada país determinando as características do próprio sistema de governo, sem intervenções.

EUA e aliados jamais terão sucesso em suas intervenções no Líbano ou em qualquer outro país no Oriente Médio, se não conseguirem apoio local e enquanto não conseguirem a adesão dos cidadãos. Mas nenhum apoio local será jamais estável, enquanto os EUA trabalharem exclusivamente para desgraçar o Oriente Médio, não para fazê-lo mais próspero e mais feliz. Porque isso, sim, as populações locais veem com clareza.

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