Tarifas: toque de despertar de que China precisa, para parar de subsidiar os EUA, soltar o yuan e enterrar o dólar

12/5/2019, Marko Marjanović* (de Checkpoint Asia site) para The Saker blog

Durante décadas a China manteve a própria moeda desvalorizada em relação ao dólar; e EUA e China agiram como se essa medida fosse uma bênção para a China. Não é. Nunca foi.

Sim, mantendo baixo o yuan, a China facilita, a seu favor, a concorrência no mercado norte-americano, mas sempre ao preço de perder dinheiro em cada troca comercial. Desvalorizar artificialmente o yuan só faz aumentar artificialmente o poder de compra dos consumidores norte-americanos, e reduz o poder de compra dos consumidores chineses.

Se o yuan é artificialmente desvalorizado em 20%, segue-se daí que uma empresa norte-americana importadora que queira comprar bens na China para vender no mercado norte-americano obtém 20% a mais do que obteria sob condições de pleno mercado. Isso significa, afinal, que o governo chinês intervém no mercado, para garantir aos norte-americanos melhores condições para derrotar consumidores domésticos chineses, na concorrência, no mercado, para comprar produtos da própria China.

Como isso poderia implicar algum benefício? Mas, sim, é verdade que desvalorizar a própria moeda é parte da estratégia padrão de desenvolvimento em todo o Leste da Ásia, já usada antes pelo Japão, Taiwan, Singapura, Hong Kong e Coreia do Sul, para desenvolver as respectivas economias – o que não implica, contudo, que seja estratégia benéfica. Para desenvolver, não é preciso corrigir tudo; basta corrigir umas poucas coisas. E para ganhar a dianteira na disputa, basta ter corrigido mais coisas que os demais. Claro que a China corrigiu muitas coisas, mas manter o yuan atrelado ao dólar e artificialmente baixo não é uma delas.

Com o yuan deixado flutuar livremente ao sabor do mercado, a China permitiria que subisse mais o valor real de mercado que os chineses obteriam para usufruir, do que o valor do que os próprios chineses produzem (o que significa que os chineses poderiam ter melhor padrão de vida). Os lucros comerciais pouco seriam afetados, porque o volume reduzido de produtos chineses que ainda vão para os EUA alcançaria preço mais alto – o mesmo preço que têm hoje em yuan.

Em vez disso contudo, temos uma situação na qual um país em desenvolvimento continua, há muito, muito tempo, a subsidiar o consumo num dos países mais ricos do mundo. Obviamente nada disso arranha os norte-americanos – que economizam dinheiro comprando bens a preços subsidiados pelo governo chinês, e têm mais dinheiro para gastar em outros bens e serviços não fornecidos pela China.

Não tenho tempo agora para encontrar a fonte, mas lembro que li que, há alguns anos, a China subsidiava cada família norte-americana com cerca de $800/ano. No total, são mais de $100 bilhões/ano. De fato, porque moeda desvalorizada frente ao dólar é necessariamente desvalorizada também frente a todas as demais moedas fortes em livre flutuação, como o euro e a libra inglesa, tudo isso implica que a China também está subsidiando a Europa ao ritmo de outros $50 bilhões pelo menos.

E a China ganhou o quê?

A recompensa por a China impor o arrocho aos próprios cidadãos, transferindo os frutos desse arrocho para o Mundo Ocidental, permitindo que $150 bilhões do que seria poupança dos chineses sejam gastos pelos norte-americanos tem sido a demonização incansável, contra a China, declarada inimigo econômico.

Ao subir o muro das tarifas, Trump ameaça impedir que os consumidores norte-americanos beneficiem-se daqueles subsídios garantidos pelo governo da China. (O subsídio será recolhido aos cofres do Tesouro dos EUA.) Mas isso, pode-se dizer, é algo que Pequim precisava mesmo obrigar os EUA a fazer.

As tarifas de Trump são uma bênção. A China deve parar de correr à caça de dólares cujo valor Pequim superinfla artificialmente, e os quais, considerada a demolição na qual Washington engajou-se, Pequim têm de continuar a inflar. Em vez disso tudo, a China deve simplesmente deixar que o yuan flutue; e assim faça aumentar o valor do dólar. Com isso se transferirá instantaneamente grande parte do poder de compra para o mercado consumidor chinês, que se ampliará muito. Para a China, cobrir-se-iam assim quaisquer perdas provocadas pelas tarifas; e os EUA rapidamente se darão conta de que estariam pagando preço muito mais alto por bens e componentes fabricados na China. Primeiro, fazer os EUA pagarem pelas tarifas de Trump; em seguida, cobrir a valorização do dólar na relação com o yuan.

Mas o verdadeiro prêmio seria que um yuan em livre flutuação seria candidato muito mais confiável ao trono de moeda internacional de comércio. A China tentou empenhadamente internacionalizar o yuan, mas com sucesso muito limitado, porque o yuan não é sequer uma efetiva moeda de mercado, apenas uma cópia do dólar. Para vir a ser aceito, o yuan precisa antes provar ao mercado que é estável como moeda em livre flutuação, completamente separada do dólar — o que, como moeda que está hoje artificialmente subvalorizada, o yuan pode facilmente ser.

Com isso chegamos a outro traço também muito danoso, de o yuan manter a conexão com o dólar. Países pobres que têm de enfrentar inflação pesada, frequentemente atrelam a própria moeda a outra moeda ocidental mais forte, porque é como um compromisso de que dali em diante buscarão políticas monetárias mais duras (no mínimo, tão duras quanto desejem os administradores da moeda à qual o país se atrele). 

A questão é que, para a China, cujas finanças estão em muito melhores condições que as dos EUA, é completa insanidade – e é procedimento muito danoso – autoatrelar-se ao dólarkamikaze.

Com a dívida dos EUA explodindo, e com tamanha expansão monetária, a China só pode manter o atrelamento seja abraçando o dólar seja destruindo o yuan. Até aqui, a China fez um pouco de cada uma dessas duas coisas. Até 2008, fez principalmente manter o yuan e o dólar no mesmo patamar, guardando nos próprios cofres $3 trilhões da dívida dos EUA; depois de 2008, passou gradualmente a seguir os EUA na política de “injetar” dinheiro novo na economia.

Diz a sabedoria convencional que, embora essas ‘injeções’ firam a moeda, fariam bem à economia. Puro nonsense. Evidentemente, criar mais moeda não cria um bem econômico: simplesmente redistribui o poder de compra existente no mercado daquela moeda.

O mito persiste, porque é conveniente aos governos e respectivos apoiadores. Um governo que pode criar dinheiro feito ‘de ar’ (quase sempre mediante empréstimos sem garantias) é muito mais poderoso em relação ao mercado e aos próprios cidadãos, que outro que não possa criar dinheiro, e não é limitado nem por orçamentos nem por lucros – e assim vai… até que destrua a moeda e torne-se totalmente impotente.

Na realidade, dissociar a disponibilidade de crédito do nível de poupança de capital na economia torna impossível um planeamento econômico confiável, no mercado. E conduz a ciclos de expansão e contração. Muito diferente de ser mais uma dificuldade, seria excelente para a China abandonar políticas monetárias bombas. Por sorte, Pequim não entrou ainda tão fundo nessa trilha, quanto os EUA. E pode, assim, fazer muito mais facilmente o que tem de ser feito.

Por tudo isso, se se desatrelar do dólar e reconciliar-se com um yuan que se valorize, a China, finalmente:

— Porá fim a subsídios anuais de $150 bilhões que vão para os consumidores ocidentais;

— Terá como melhorar o padrão de vida na China, com gastos adicionais, por ano, de mais de $150 bilhões;

— Eliminará a necessidade de gastar (ou segurar) trilhões em papéis do Tesouro dos EUA, para manter valorizado o dólar;

— Eliminará a necessidade de reproduzir as políticas dos EUA para depreciação da moeda;

— Porá afinal o yuan na trilha para deslocar o dólar como moeda de comércio internacional.

Imagine um mundo no qual os EUA já não possam sancionar quem bem entendam, como bem entendam. Um mundo no qual sanções unilaterais dos EUA contra a nação pobre que seja declarada “bandida” signifiquem simplesmente que os EUA separam-se daquela nação, mas a nação continua a poder comerciar livremente com o restante das nações, porque as negociações aconteceriam mediante bancos chineses.

Imagine um mundo no qual o Império esteja outra vez realmente limitado às receitas dos EUA. Mundo no qual o Império não possa acumular déficits tão gigantescos quanto bem entenda. Mundo no qual os EUA tenham de realmente pagar com exportações pelo que importam, porque ninguém mais padece qualquer urgente necessidade da moeda norte-americana.

Porque se trata exatamente disso: um mundo livre. Mas não há qualquer possibilidade de que aconteça, enquanto o yuan se mantiver como uma cópia de segunda classe do dólar, não interessa o quanto seja realmente desvalorizada. Pequim deve deixar o yuan crescer e entrar nos negócios sem a presença de seu comissário vigilante ‘superior’.

O yuan é a moeda do maior exportador do mundo, que tem o maior superávit comercial e as maiores reservas do mundo. Dará conta do recado. 

Por que, afinal, ainda comerciamos e acumulamos a moeda do país que tem os maiores déficits, a maior dívida e por último, mas não menos importante, do país menos capaz de financiar suas próprias importações monstro? Não tem de ser assim. Temos coisa muito melhor. Basta que Pequim consiga abrir mão de pelo menos uma parte da ilusão do controle. 

Assim sendo, se Trump impõe tarifas sobre tarifas, e faz pela China o que a China não faz por ela mesma… os chineses devemos a Trump um monumento em praça pública.*******


* Marko Marjanović trabalhou por quatro anos como vice-editor de Russia Insider. Antes disso, por cinco anos, animou um blog sobre Europa Oriental. Atualmente anima o sítio de notícias Checkpoint Asia onde você aprenderá tudo de que precisa para lutar contra o Império Norte-americano.

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