11/11/20, Hadas Thier, Jacobin Magazine
“Se os próximos quatro anos trouxerem ainda maior erosão dos padrões de sobrevivência, e o fim de quaisquer medidas progressistas para enfrentar o desmonte da vida e da sociedade, o efeito será um retorno triunfante do trumpismo em 2024, com ou sem Donald Trump” [e do tucanismo à moda Guedes, com ou sem Bolsonaros&generais-obesos&Guedes (NTs)]. ___________________________________ Joe Biden ainda não tinha acabado de se autodeclarar vencedor, quando os centristas do Partido Democrata puseram-se a culpar a esquerda do Partido pelos resultados abaixo do esperado da eleição da semana passada, contra todas as provas. Unido ao coro estava um dos apoiadores Republicanos de Biden, John Kasich, que sempre repetiu, falando aos Democratas, que se tivessem “rejeitado a esquerda radical” do próprio partido, teriam falado mais claramente aos norte-americanos, gente que, dizia ele, “vive essencialmente no centro”. Mais uma vez, os números indicam o contrário disso: polarização crescente, e esvaziamento do centro. Mais importante, o meio-campo que efetivamente existe oferece terreno que seria mais favorável a ideias da esquerda. Como a deputada Democrata Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) apontou corretamente, “todos os candidatos que votaram a favor do Medicare for All em distrito oscilante conseguiram a reeleição.” E todos os distritos oscilantes que aceitaram a ajuda de AOC para se reeleger foram bem-sucedidos, e praticamente todos que se afastaram dela perderam. Em muitos estados e condados que votaram com os Republicanos, os referendos aprovaram, por forte maioria, o aumento no salário mínimo, o financiamento para a educação pública, a descriminalização das drogas e o controle sobre preços de aluguel. No Mississippi, eleitores decidiram a favor de se substituir a bandeira do estado, imutável desde a era dos Confederados. Em questões econômicas, o padrão é ainda mais claro. Como o Huffington Post noticiou, segundo as pesquisas “um de cada cinco Republicanos tem ideias econômicas que se alinham melhor com o Partido Democrata do que com o Partido Republicano.” Inclui-se aí o apoio a aumento do salário mínimo, impostos sobre os mais ricos, e atenção concentrada em garantir subsídios significativos à saúde em tempos de COVID-19. Mandar as pessoas ficarem em casa e sem trabalhar indefinidamente, sem ter os meios mínimos para fazer isso não é plano viável. Com os votos ainda sendo apurados em alguns estados, o cenário mais provável é que Biden leve a eleição, com 306 votos no Colégio Eleitoral, contra 232 votos para Donald Trump, diferença pequena, mas significativa nos votos populares, de 50,5% a 47,4% (cerca de 4 milhões de votos). É margem confortável, depois do drama da noite da eleição e uns poucos dias seguintes. Mas essas margens estão distantes do que se viu em 1992, última vez que presidente Republicano deixou de se reeleger, em tempos de recessão. Bill Clinton venceu aquela eleição com 370 votos eleitorais, e 168 para George H. W. Bush, 43% a 37% no voto popular (Ross Perot levou os 19% restantes). Barack Obama, também, apesar de não enfrentar presidente que tentasse a reeleição, beneficiou-se de o Partido Republicano ter governado sob recessão. Em 2008, Obama obteve 365 votos eleitorais, contra 173 para John McCain, 53% contra 46%. Como Eric Levitz comentou recentemente: As estreitas diferenças no Colégio Eleitoral – em disputa contra candidato Republicano em exercício, com desaprovação recorde, alto desemprego, mercado de ações em declínio na véspera das eleições e uma pandemia que ele passou as últimas semanas da campanha cuidando de disseminar mais e mais, anunciando sua indiferença ante qualquer medida de contensão – só podem deixar nervosos os Democratas quanto às próprias chances de permanecer no poder em 2024. Ainda mais devastadores para a liderança do Partido Democrata foram os desapontamentos com a votação para a Câmara de Representantes. Contra as previsões otimistas, e apesar de terem consumido centenas de milhões de dólares em contribuições de campanha, os Democratas perderam assentos na Câmara de Representantes; é possível que não tenham conseguido maioria no Senado e não foram bem-sucedidos nas assembleias estaduais. O Congresso será como beco sem saída para políticas progressistas, no que provavelmente acabará por ser um governo de coalizão Biden-McConnell. No mínimo, o fraco desempenho dos Democratas em período de crise sem precedentes, indica partido que não caminha ao ritmo nem na direção de seus eleitores – partido incapaz de oferecer qualquer alternativa ao estilo de Trump, de demagogia só raramente vista e concessões a interesses das grandes empresas. Ainda pior, os resultados revelam o fracasso do Partido Democrata, que há quatro anos não é “partido de oposição” efetivo, perdendo tempo precioso com tentativas natimortas de impeachment, apenas teatrais, em vez de cuidar de melhorar as condições materiais da vida dos norte-americanos. Partido e Candidato que não andam no mesmo passoEmbora os dados continuem a chegar, e todas as pesquisas de boca de urna tenham de ser vistas com desconfiança, parece claro que três questões mobilizaram a atenção dos eleitores esse ano: a economia, a pandemia e a desigualdade racial. Não surpreendentemente, Biden saiu-se melhor – por margens amplas – entre eleitores que identificaram a pandemia ou a desigualdade racial (82% e 91% respectivamente). Mais surpreendentemente, Trump saiu-se melhor, também por margens amplas (82%), entre os eleitores que identificaram a economia como principal preocupação. Num sentido, Trump saiu-se tão bem (ou tão mal) quanto se esperaria, dados seus números de avaliação, sempre baixos (consistentemente ao longo de todo o mandato), mas jamais naufragados. Com 46% de aprovação, tinha chance pequena mas não inexistente de obter a reeleição. Mas ao mesmo tempo em que a aprovação de Trump permanecia baixa, mas estável, a taxa de aprovação do Congresso despencou para 18% ao longo do verão. É verdade que muitos eleitores deram a Trump um crédito, talvez não merecido, pelo duvidoso fortalecimento da economia pré-coronavírus. Nos últimos dez anos, a maioria dos norte-americanos tiveram opinião negativa da economia nacional. Essa opinião só começou a mudar em meados de 2016. Mas o fato mais chocante é que, como se viu nesse outono, com dezenas de milhões de desempregados, famintos e ameaçados de despejo, o modo como Trump geriu a economia ainda era considerado bom. Em grande parte, teve a ver com uma ‘opção’ tão artificial e falsa quanto de aparente oposição, como o economista Michael Roberts explica: “lockdowns para salvar vidas; ou ‘abertura’ e salvar os empregos.” Essa foi falsa narrativa, no sentido de que não é verdade que tivesse de ser assim, se os mais atingidos tivessem recebido apoio econômico e social que aliviassem o lockdown. Mas infelizmente foi narrativa verdadeira, no sentido de como a coisa foi realmente feita. Pedir às pessoas que fiquem em casa e longe do trabalho indefinidamente, sem garantir meios para que procedam assim, não é plano viável. Trump expôs seus argumentos a favor de reabrir os estados, como modo de as pessoas poderem retomar a vida de antes – mensagem que, não surpreendentemente, encontrou eco em muitos norte-americanos. Apesar de os cheques de ‘estímulos’ distribuídos na primavera serem mínimos, mesmo assim promoviam o nome do presidente. Com Democratas entretidos num jogo da franga[1] sobre negociações para novos estímulos no outono – que acabaram por confirmar para milhões de pessoas desesperadas por algum alívio, que os dois partidos são igualmente inacessíveis para os mais pobres, e igualmente cínicos, — Trump safou-se, insistindo que seria o único que defenderia ajuda significativa para os cidadãos. Na primavera, a Casa Branca e os dois partidos no Congresso correram para fazer aprovar no Congresso gordos pacotes de estímulos. Quando chegaram verão e outono, já com os benefícios extintos, fracassaram completamente as negociações para reinstituí-los. O desemprego em massa continua, e, desde maio, 8 milhões de pessoas mergulharam na pobreza. Se os Democratas fossem partido pró-alívio econômico, conseguiriam minar a narrativa de “ou empregos ou saúde” e teriam exposto Trump e os Republicanos por ter abandonado milhões de trabalhadores desempregados. Diga-se a favor deles que os Democratas no Congresso apresentaram algumas demandas mais agressivas a favor de mais um pacote de estímulos nesse verão e outono. Mas apesar de ter arrancado algumas concessões da Casa Branca durante as negociações, na verdade nem fizeram nem organizaram o tipo necessário de pressão para fazer aprovar toda a sua própria proposta. Como argumentei mês passado, Não é difícil imaginar cenário no qual os Democratas poderiam aceitar um acordo, ao mesmo tempo em que pudessem continuar a argumentar insistentemente que a ajuda é insuficiente. Poderiam expor à opinião pública o desespero pelo qual passam milhões de norte-americanos, e a intransigência do “Velho Grande Partido” (ing. GOP) Republicano que os forçou a aceitar solução apenas parcial, mas que os Democratas lutarão por ampliação dos gastos, se forem eleitos nas próximas eleições. Em vez de fazer isso, apostaram no nada que conseguiram, presumindo que o fracasso nas negociações arrasaria ainda mais completamente os Republicanos nas urnas e poria fim a qualquer chance de Trump ser reeleito, ainda que isso tenha significado arriscar-se a não conseguir nada. Fato é que, com isso, milhões ficaram ao relento, os Democratas expuseram o próprio cinismo e, feitas as contas, foi o que permitiu que Trump continuasse a fingir muito mais interesse em conseguir meios para oferecer alguma ajuda, que os Democratas. Dada a magnitude das crises na saúde pública e dos movimentos de cunho racista e antirracismo que agitam simultaneamente a sociedade, os Democratas tampouco souberam ver a oportunidade de unir essas duas questões num só grande problema – o que de fato, são. Em vez de deixar a discussão pública entregue às respostas e falas de Trump, sempre viciosas, cegas e surdas ao sofrimento e à amargura do povo norte-americano, os Democratas poderiam ter introduzido uma política de solidariedade que unisse, sob sua bandeira, a desigualdade racial na economia, saúde e violência policial, e a desigualdade estrutural que compromete toda a vida dos norte-americanos, ao mesmo tempo em que encaminhavam a luta por recursos materiais para enfrentar as dificuldades. Infelizmente, a política da solidariedade social, da luta de classes e de “lutar por alguém que você não conhece” desertou da discussão nacional, quando Bernie Sanders retirou-se das primárias Democratas. Biden, que assumiu o vácuo, fez campanha vaga e sem substrato, na qual, de fato, só fez repetir que não seria Donald Trump. Em vez de apresentar agressiva política econômica – para salário mínimo de $15, ajuda extra mensal de $2,000 enquanto durar a pandemia, e um sistema nacional de saúde para garantir que todos recebam atendimento durante a pandemia, seja qual for o status do trabalho que faça – Biden só repetiu platitudes vazias. Apoiou tecnicamente a política do salário mínimo de $15, mas jamais moveu um dedo, nem disse uma linha a favor dessa reivindicação popular. No debate presidencial em outubro, “Biden, respondendo a uma pergunta, disse que apoia o salário mínimo de $15, mas rapidamente saltou para a importância de resgatar os pequenos negócios.” Uma alternativa à esquerda A presidência de Donald Trump foi completo desastre para os trabalhadores, foi catástrofe no campo da saúde pública, foi terror para imigrantes e para a população negra, e foi uma bênção para a extrema direita. Se os próximos quatro anos trouxerem ainda maior erosão dos padrões de vida, e o fim de quaisquer medidas progressistas para enfrentar o desmonte social, o efeito será um retornou triunfante do trumpismo em 2024, com ou sem Donald Trump. Enquanto o Partido Democrata não falar dos interesses materiais do povo, deixará aberta a via para a direita repetir que, sim, só a direita fala(ria) disso. Pesquisas de boca de urna que mostram que 40% dos trabalhadores votaram em Trump é, com certeza, sinal muito alarmante da desconexão entre os Democratas e as respectivas bases. Há alternativa sobrevivente num pequeno mas crescente flanco da esquerda do Partido Democrata. Esse flanco cresce não só em números, agora que democratas socialistas como Cori Bush e Jamaal Bowman estarão no Congresso no próximo ano, mas também em confiança. Numa entrevista ao New York Times semana passada, Alexandria Ocasio-Cortez criticou a direção do partido, sem meias palavras. “Preciso que meus colegas compreendam que nós não somos o inimigo. E que a base eleitoral do partido não é o inimigo” – explicou. – “Que o Movimento a favor das Vidas Negras não é o inimigo, que Medicare para todos não é o inimigo. Não se trata tampouco só de ganhar a discussão. Trata-se de que, se eles continuarem a buscar a coisa errada… O que quero dizer é que, como estão fazendo, estão só encaminhando a própria obsolescência.” Apesar de uma paisagem econômica e política que em muitos sentidos é fechada, o espaço para que a esquerda se organize cresceu. Estamos vivendo uma era de desassossego, na qual se viram mais protestos, em poucos anos, que jamais antes. Mas ainda estamos nos estágios iniciais da construção de uma base de massa, que atenda a crescente agitação nas organizações, nas ideias políticas e nas instituições da esquerda. Esse ciclo eleitoral mostrou que Joe Biden e os Democratas com certeza não farão isso, se entregues a eles mesmos.******* [1] Orig. “game of chicken”. Cena clássica de um “jogo da franga” pode ser vista em Juventude Transviada (dir. Nicholas RAY. Drama, EUA, 1955, 110min.; Warner Home Vídeo), é a corrida de carros entre dois rapazes, que dirigem rumo ao mesmo abismo: quem não parar, seria o ‘valente’; quem parar antes de morrer, seria a ‘franga’ (o covarde) |
Foto: tomada de Jacobin Magazine
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