From Russia (com amor). Para: Os Talibã

21/10/2021, Pepe Escobar, The Cradle, Beirute

Atores das relações de poder na Ásia detonaram um petardo afegão hoje, em Moscou: “a reconstrução do país deve ser paga pelos que ocuparam o país por 20 anos”.
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O formato Moscou de reuniões sobre o Afeganistão em atividade essa semana entende que os estrangeiros que ocuparam o país têm obrigação de pagar a conta da reconstrução
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Recebido com altas expectativas, um time de quatro Talibãs afinal apareceu em Moscou para jogar. Mesmo assim, a estrela do show, como se esperava, foi o Mick Jagger da geopolítica: o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov.

Desde o início, deu o tom do formato Moscou de consultas, que ostenta o mérito de “unir o Afeganistão aos países vizinhos”. Sem perder nem um compasso ou batida, Lavrov falou diretamente ao elefante norte-americano na sala – ou à ausência dele: “Nossos colegas norte-americanos optaram por não participar”. Na verdade “pela segunda vez fugiram de uma reunião com formato de troika estendida.”

Para explicar a ausência, Washington invocou turvas “razões logísticas”.

troika, que usualmente se reunia em Doha, consiste de Rússia, EUA, China e Paquistão. A troika estendida em Moscou essa semana exibiu Rússia, China, Índia, Irã, Paquistão e todos os cinco “-stões” da Ásia Central. Assim, em essência, foi reunião da Organização de Cooperação de Xangai, no mais alto nível.

A apresentação de Lavrov foi essencialmente reelaboração expandida de temas já destacados pela recente Declaração de Dushanbe da Organização de Cooperação de Xangai: o Afeganistão deve ser “estado independente, neutro, unificado, democrático e pacífico, livre de terrorismo, guerra e drogas”, com governo inclusivo “com representantes de todos os grupos étnicos, religiosos e políticos.”

declaração conjunta emitida depois do encontro pode não ter sido exatamente surpreendente ou muito excitante. Até que lá, bem no fim do documento, no parágrafo 9, aparece a novidade verdadeiramente bombástica:


“As partes propuseram, como iniciativa coletiva, organizar ampla conferência internacional de doadores, sob os auspícios da ONU, o mais brevemente possível, surgida claramente do entendimento de que o peso maior da reconstrução econômica e financeira e do desenvolvimento do Afeganistão pós-conflito, deve caber aos atores que lá estiveram, com tropas, naquele país, ao longo dos últimos 20 anos.”


O Ocidente dirá que conferência desse tipo já aconteceu: que teria sido a reunião de cúpula especial do G-20 via videoconferência no início de outubro, que incluiu o secretário-geral da ONU Antonio Guterres. Depois, semana passada, muito se falou de uma promessa europeia, de 1 bilhão de euros em ajuda humanitária, a qual, no pé em que está a conversa continua extremamente vaga, sem qualquer detalhe concreto.

No G-20, diplomatas europeus admitiram, em reuniões de portas fechadas, que a principal dificuldade estava entre o Ocidente “que quer dizer aos Talibã como devem governar o país deles e como seriam obrigados a tratar ‘as mulheres’, como condição necessária”, em troca de qualquer ajuda; enquanto Rússia e China seguem as exigências de não interferência das respectivas políticas exteriores.

Irã e Paquistão, vizinhos do Afeganistão, não foram convidados à reunião do G-20 – o que não faz sentido algum. Ainda não se sabe se o G-20 oficial em Roma, dias 30-31 de outubro, também tratará do Afeganistão, além dos temas principais: mudança climática, Covid-19 e uma ainda muito difusa, quase imperceptível, recuperação econômica global.

Sem EUA na Ásia Central

Assim sendo, o formato Moscou, como Lavrov devidamente destacou, permanece o fórum imperdível, no que tenha a ver com dar conta dos sérios desafios que o Afeganistão enfrenta.

Aqui se chega ao xis da questão. A noção de que a reconstrução econômica e financeira do Afeganistão tem de ser conduzida, principalmente, pelo ex-ocupante imperial e seus asseclas da OTAN – elegantemente citados como “atores que lá estiveram, com tropas” não tem qualquer chance de evoluir.

Os EUA não constroem nações – como todo o Sul Global sabe por experiência própria. Até desbloquear os cerca de $10 bilhões do Banco Central Afegão confiscados por Washington será empreitada dificílima. O FMI previu que, sem ajuda externa, a economia afegã pode encolher cerca de 30%.

Os Talibã, liderados pelo segundo primeiro-ministro Abdul Salam Hanafi, tentaram mostrar calma. Hanafi argumentou que o atual governo interino já é inclusivo: afinal, os empregos de mais de 500 mil funcionários da antiga administração foram preservados.

Mas mais uma vez, muitos detalhes preciosos perderam-se na tradução, e os Talibã não contam com nenhuma figura capaz de capturar a imaginação eurasiana. O mistério persiste: onde está o Mulá Baradar?

Baradar, que comandou o escritório político em Doha, foi amplamente divulgado como o rosto do Talibã para o mundo exterior depois que o grupo tomou Cabul dia 15 de agosto. Foi efetivamente posto de lado.

O contexto do formato Moscou contudo, tem algumas preciosidades. Não houve vazamentos – mas diplomatas deram sinais de que a reunião foi tensa. A Rússia teve de fazer o papel de mediador cuidadoso, especialmente no caso de manifestações da Índia e preocupações do Tadjiquistão.

Todos sabiam que Rússia – e os demais atores – não reconheceriam os Talibã como novo governo afegão, pelo menos não até agora. Esse não é o ponto. A prioridade mais uma vez teve de ser colada na liderança dos Talibã: nenhum paraíso seguro para jihadistas ou grupos herdeiros deles que possam atacar “terceiros países, especialmente os vizinhos” – como Lavrov destacou.

Quando o presidente Putin, em tom casual, em público, entregou a informação de que há pelo menos 2.000 jihadistas do ISIS-K no norte do Afeganistão, foi como dizer que a inteligência russa sabe exatamente onde estão e tem as capacidades necessárias para acabar com eles, se os Talibã sinalizarem pedindo socorro.

Agora se compare tudo isso e a OTAN – já recauchutada depois da massiva humilhação afegã que sofreu – organizando reunião de cúpula, de ministros de Defesa, em Bruxelas, 5ª e 6ª-feiras, basicamente para pregar aos Talibã. O secretário-geral da OTAN, o espetacularmente medíocre Jens Stoltenberg, insiste que “os Talibã têm contas a prestar à OTAN” no que tenha a ver com terrorismo e direitos humanos.

Como se não fosse leviandade que chegue, o que interessa – como contexto para o formato Moscou – é que os russos recusaram completamente um pedido dos EUA para usar o aparato russo de inteligência em pontos da Ásia Central, para, em teoria, monitorar o Afeganistão.

Primeiro, queriam base militar “temporária” no Uzbequistão ou Tadjiquistão: Putin-Biden realmente discutiram o tema na reunião de Genebra. Putin respondeu com uma contraoferta, meio a sério, meio de brincadeira, de hospedar os norte-americanos numa base militar russa, provavelmente no Tadjiquistão. Moscou divertiu-se algumas semanas com a ideia, para, afinal, divulgar a solução definitiva: não há lugar para confusões de norte-americanos sobre “contraterrorismo” na Ásia Central.

Em resumo, em Moscou Lavrov foi extremamente conciliatório. Destacou o modo como os participantes do formato Moscou planejam usar todas as oportunidades para “incluir” os Talibã mediante vários corpos multilaterais, como ONU, OCX – onde o Afeganistão é estado-observador – e, crucialmente, via a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, OTSC (ing. Collective Security Treaty Organization, CSTO), que é aliança militar.

Tantas camadas de ‘inclusividade’ nos acenam! Ajuda humanitária de nações da OCX – Paquistão, Rússia e China está a caminho. A última coisa de que os Talibã precisam é de ‘prestar contas’ aos zumbis mortos-vivos da OTAN.*******

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