8/12/2021, Pepe Escobar, Asia Times
Então, o presidente Vladimir Putin da Rússia, sozinho, e o presidente dos EUA Joe Biden, cercado por auxiliares, afinal tiveram sua conferência secreta por vídeo, de duas horas e dois minutos – com os tradutores instalados em salas diferentes.
Foi a primeira conversa séria, desde que se reuniram pessoalmente em Genebra, em junho passado – primeira reunião de cúpula Rússia-EUA desde 2018. Para a opinião pública global, induzida a acreditar que o mundo estaria ante “guerra” iminente na Ucrânia, sobrou, essencialmente, uma torrente de boatos.
Comecemos com exercício simples, focando a questão chave do vídeo – Ucrânia – contrastando as versões distribuídas pela Casa Branca e pelo Kremlin, do que transpirou.
Da Casa Branca: Biden “deixou claro” para Putin que EUA e aliados responderão com “medidas econômicas e outras, decisivas” a uma escalada militar na Ucrânia. Biden também disse a Putin oficialmente, que desescale em torno da Ucrânia e “volte à diplomacia”.
Do Kremlin: Putin ofereceu a Biden anular todas as restrições ao funcionamento de missões diplomáticas. Destacou que a cooperação entre Rússia e os EUA permanece em “estado insatisfatório”.
Exigiu que os EUA não joguem “a responsabilidade” pela escalada da situação em torno da Ucrânia “sobre os ombros da Rússia”.
Da Casa Branca: Os EUA expandirão a ajuda militar à Ucrânia se a Rússia tomar medidas contra o país.
Do Kremlin: Putin disse a Biden que a Rússia está interessada em obter garantias legalmente fixadas que impeçam a expansão da OTAN para leste e o deslocamento de sistemas ofensivos em países vizinhos da Rússia.
Da Casa Branca: Biden não deu a Putin qualquer garantia de que a Ucrânia permanecerá fora da OTAN.
Minsk ou guerra!
Agora, quanto ao que realmente importa: a linha vermelha.
O que Putin diplomaticamente disse à Equipe Biden, sentada à mesa dela, é que a linha vermelha da Rússia – nenhuma OTAN porá os pés na Ucrânia – é inamovível. O mesmo vale para a Ucrânia convertida em entroncamento do império de bases do Pentágono e hospedando armamento da OTAN.
Washington que negue o quanto queira, mas a Ucrânia é parte da esfera de influência da Rússia. Se nada for feito para forçar Kiev a cumprir os termos do Acordo de Minsk, a Rússia “neutralizará” a ameaça, em termos russos.
A raiz de todo esse drama, ausente de todas as narrativas da OTAN, é clara: Kiev simplesmente recusa-se a respeitar o Acordo de Minsk, de fevereiro de 2015.
Segundo o acordo, Kiev deve garantir autonomia, com “status especial”, ao Donbass mediante emenda constitucional; com anistia geral; e iniciar conversações com a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk.
Ao longo dos anos, Kiev cumpriu menos que zero desses compromissos – enquanto a máquina de propaganda da OTAN nunca parou de repetir que a Rússia estaria violando Minsk. A Rússia não é sequer mencionada (itálicos meus) no acordo.
Moscou sempre respeitou o Acordo de Minsk, que estabelece o Donbass como parte autônoma da Ucrânia. A Rússia sempre deixou muito claro, várias e várias vezes, que não tem qualquer interesse em promover mudança de regime em Kiev.
Antes do encontro por vídeo, Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin observara: “Putin vai ouvir ‘com grande interesse’ as propostas de Biden sobre a Ucrânia.” A Casa Branca sequer propôs que Kiev obedecesse ao Acordo de Minsk. Assim sendo, independente do que Biden possa ter dito, Putin, pragmaticamente, adotará posição de “esperar para ver”. Em seguida, agirá conforme o caso.
Antes do vídeo, os boatos giravam em torno de Washington tentar parar o gasoduto Nord Stream 2 se a Rússia “invadir” a Ucrânia.
O que jamais transpira nessa narrativa da “invasão”, repetida ad nauseam em toda a OTAN, é que os falcões belicistas que supervisionam EUA extremamente polarizados, corroídos por dentro, precisam desesperadamente de uma guerra no que o analista militar Andrei Martyanov chama de “país 404,” jogo de palavras com a mensagem de erro que se recebe quando se procura página online ou link que não existe.
O xis da questão é que os vassalos europeus não devem ter acesso à energia russa: só ao gás natural líquido (GNL) norte-americano.
E isso levou os russófobos mais extremados em Washington a se pôr a ameaçar com sanções o círculo íntimo de Putin, produtores russos de energia e até ameaças de desconectar a Rússia do sistema SWIFT de compensações internacionais. Tudo isso, para impedir a Rússia de “invadir” o País 404.
O secretário de Estado dos EUA Tony Blinken – presente à videoconferência – disse há alguns dias em Riga, Latvia, que “se a Rússia invadir a Ucrânia”, a OTAN responderá “com várias medidas econômicas de alto impacto.” Quanto à OTAN, absolutamente nada tem de agressiva: é organização “defensiva”.
O ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, no início de dezembro, na reunião do Conselho Ministerial da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa [ing. Organization for Security and Co-operation in Europe, OCSE] em Estocolmo, já alertava para a evidência de que a “estabilidade estratégica” na Europa estava “em rápida erosão”.
Disse Lavrov: “A OTAN recusa-se a considerar nossas propostas sobre desescalada de tensões e prevenção de incidentes perigosos (…) Ao contrário, a infraestrutura da aliança militar move-se sempre para mais perto das fronteiras russas (…) O cenário de pesadelo, de confronto militar, está voltando.”
Assim, pois, não surpreende que o xis da questão para Moscou seja a intromissão da OTAN. A narrativa da “invasão” é notícia grosseiramente forjada (ing. fake news) apresentada como fato. Até William Burns da CIAadmitiu que a inteligência dos EUA não tinha informações que lhe permitissem “concluir” que a Rússia responderia às preces da Guerra Inc. e finalmente “invadiria” a Ucrânia.
Mesmo assim, nada disso impediu um panfleto alemão sensacionalista de apresentar todos os contornos de uma blitzkrieg russa, quando a notícia verdadeira é que EUA e OTAN trabalham para empurrar o “país 404” a cometer suicídio, ao atacar as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk.
A tal garantia juridicamente vinculante
É ocioso esperar que o encontro por vídeo produza resultados práticos. Dado que a OTAN permanece naufragada em crises concêntricas, o nível atual de alta tensão entre OTAN e Rússia é uma dádiva dos céus em termos de manter a conveniente narrativa de um demônio eslavo externo. É como bônus extra para o complexo militar-industrial-inteligência-mídia e think-tanks.
A tensão continuará a ferver sem chegar ao ponto de incandescência, desde que a OTAN não avance seja como for para dentro da Ucrânia. Diplomatas em Bruxelas repetem diariamente que Kiev jamais será aceita como membro da OTAN. Mas se as coisas piorarem, piorarão mesmo: Kiev tornar-se-á um desses parceiros especiais da OTAN, atores bandidos, desesperadamente pobres, famintos por território.
O que muda tudo aqui é que Putin está exigindo dos EUA – que mandam na OTAN – garantia por escrito, legal e cogente, de que a aliança não avançará mais para leste rumo às fronteiras russas.
A Equipe Biden não tem como atender: todos seriam devorados vivos pelo establishment da Guerra Inc. Putin estudou sua história e sabe que a “promessa” de Papai Bush a Gorbachev sobre expansão da OTAN jamais passou de mentira. E sabe que os que mandam na OTAN jamais se comprometerão por escrito.
Assim Putin tem várias opções para defender a segurança nacional russa. “Invasão” é piada. A Ucrânia, que apodrece de dentro para fora, consumida pelo medo, pelo repúdio e pela miséria, permanecerá no limbo, ao mesmo tempo quem que as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk serão progressivamente interconectadas com a Federação Russa.
Não haverá guerra da OTAN contra a Rússia – como o próprio Martyanov demonstrou longamente, a OTAN não duraria cinco minutos sob o fogo das armas supersônicas russas. E Moscou se manterá focada no que realmente interessa em termos geoeconômicos e geopolíticos: dar sempre maior solidez à União Econômica Eurasiana (UEE) e à Parceria Eurásia Expandida [ing. Greater Eurasia Partnership].*******
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