17/3/2022, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation
A “ordem internacional baseada em regras” – tipo “tem de ser do nosso jeito, ou deem o fora” – está-se desfazendo muito mais rápido do que seria possível prever.
A União Econômica Eurasiana, UEE, e China estão começando a projetar um novo sistema monetário e financeiro que passará ao largo do dólar norte-americano, supervisionado por Sergei Glazyev e destinado a competir com o sistema de Bretton Woods.
A Arábia Saudita – perpetradora de bombardeios, fome e genocídio no Iêmen, armada por EUA, Reino Unido e UE – está antecipando a chegada do petroyuan.
A Índia – terceiro maior importador de petróleo do mundo – está prestes a assinar um megacontrato para comprar petróleo da Rússia com grande desconto e usando um mecanismo rublo-rupia.
As exportações de petróleo de Riad somam cerca de US$ 170 bilhões por ano. A China compra 17%, em comparação com 21% que vão para o Japão, 15% para os EUA, 12% para a Índia e cerca de 10% para a UE. Os EUA e seus vassalos – Japão, Coreia do Sul, UE – permanecerão dentro da esfera do petrodólar. Índia, como China, podem livrar-se dela.
O revide inevitável nas sanções vem com a ofensiva. Até um queridinho do capitalismo de mercado/casino, como o mega-nerd estrategista do Credit Suisse, Zoltan Poznar, ex-Fed de NY, FMI e Departamento do Tesouro, teve de reconhecer, numa nota analítica: “Se você acredita que o Ocidente possa desenvolver sanções que maximizem a dor para a Rússia, ao minimizarem os riscos de instabilidade financeira e de preços para o Ocidente, você é dos que também acreditam em unicórnios.”
Unicórnios são uma das Marcas Registradas do enorme aparato de ‘operações psicológicas’ da OTAN, ricamente ilustrado pela “reunião de cúpula” encenada, absolutamente forjada (ing. fake) em Kiev entre o comediante Ze e os primeiros-ministros de Polônia, Eslovênia e República Tcheca – já completamente desmascarada por John Helmer e fontes polonesas.
Poznar, realista, insinuou de fato o enterro ritual do capítulo financeiro da “ordem internacional baseada em regras” em vigor desde os primeiros anos da Guerra Fria: “Depois do fim dessa guerra [na Ucrânia], o ‘dinheiro’ nunca mais será o mesmo.” Especialmente quando o Hegemon, para demonstrar suas “regras”, ao passar a mão no dinheiro dos outros.
E isso configura o princípio central da geopolítica marcial do século XXI, como monetário/ideológico. O mundo, especialmente o Sul Global, terá de decidir: ou o “dinheiro” é representado pelo cassino virtual turbinado privilegiado pelos norte-americanos, ou é representado por ativos reais e tangíveis, como fontes de energia. Estamos próximos de um mundo financeiro bipolar – dólar americano versus yuan.
Ainda não apareceu qualquer prova. Ainda não. Mas o Kremlin, sim, pode ter apostado que, usando as reservas estrangeiras da Rússia como isca, as quais previsivelmente seriam congeladas por sanções, o resultado final poderia ser o esmagamento do petrodólar. Afinal, a vasta maioria do Sul Global já entendeu completamente que o dólar norte-americano lastreado em nada que se assemelhe a “dinheiro” – de acordo com Poznar – merece nenhuma confiança.
Se for esse o caso, pode-se falar do ippon dos infernos, de Putin.
É hora de roubar o ouro
Depois que expus a emergência do novo paradigma, a partir do novo sistema monetário a ser desenhado por uma cooperação entre a UEE e a China para o advento do petroyuan, irrompeu discussão séria e bem informada (aqui, Comentários) sobre parte crucial do quebra-cabeça: o destino das reservas de ouro russas.
Dúvidas giravam em torno da política, pode-se dizer suicida, do Banco Central da Rússia, de manter ativos em títulos estrangeiros ou em bancos vulneráveis a sanções ocidentais.
É claro que sempre existe a possibilidade de Moscou ter calculado que nações detentoras de reservas russas – como Alemanha e França – têm ativos na Rússia que podem ser facilmente nacionalizados. E que a dívida total do estado somada ao valor das empresas russas supera até a quantidade de reservas congeladas.
Mas e o ouro?
Em 1º de fevereiro, três semanas antes do início da Operação Z, o Banco Central da Rússia detinha US$ 630,2 bilhões em reservas. Quase a metade – US$ 311,2 bilhões – foram colocados em títulos estrangeiros; e um quarto – US$ 151,9 bilhões –, depositados em bancos comerciais e centrais estrangeiros. Não é exatamente estratégia brilhante. Em junho do ano passado, o parceiro estratégico China detinha 13,8% das reservas da Rússia, em ouro e moeda estrangeira.
Quanto ao ouro físico, US$ 132,2 bilhões – 21% das reservas totais – permanecem em cofres em Moscou (dois terços) e São Petersburgo (um terço).
Significa que nenhum ouro russo foi congelado? Bem, é complicado.
O principal problema é que mais de 75% das reservas do Banco Central Russo estão em moeda estrangeira. Metade disso são títulos, como títulos do governo: esses papéis jamais saem da nação que os emitiu. Cerca de 25% das reservas estão vinculadas a bancos estrangeiros, principalmente privados, além do Banco Internacional de Compensações, ing. BIS e do FMI.
Mais uma vez é essencial lembrar Sergei Glazyev em seu ensaio pioneiro Sanções e Soberania (ing.): “É necessário completar a desdolarização de nossas reservas cambiais, substituindo o dólar, o euro e a libra, por ouro. Nas condições atuais do crescimento explosivo esperado no preço do ouro, sua exportação em massa para o exterior é semelhante à traição e é hora de o regulador parar essa movimentação. ”
É acusação poderosa ao Banco Central da Rússia – que estava tomando empréstimos contra o ouro e exportando-o. Para todos os efeitos práticos, o Banco Central pode ser acusado de perpetrar um inside job, ‘trabalho interno’. Na sequência, adiante, foram pegos de surpresa pelas devastadoras sanções americanas.
Como diz um analista de Moscou, o Banco Central “entregou alguns volumes de ouro a Londres em 2020-2021. Essa decisão foi motivada pelo alto preço do ouro na época (cerca de US$ 2.000 por onça) e dificilmente poderia ter sido iniciada por Putin. Se foi, é decisão que se pode qualificar de muito estúpida, ou mesmo de ser parte de uma tática diversionista (…) A maior parte do ouro entregue a Londres não foi armazenado, mas vendido e transferido para reservas em moeda estrangeira (em euros ou libras) que foram congeladas posteriormente .”
Não é à toa que muitos na Rússia andam lívidos. Indispensável um rápido flashback. Em junho do ano passado, Putin assinou lei que cancela os requisitos para repatriar ganhos em divisas, das exportações de ouro. Cinco meses depois, os mineradores de ouro da Rússia estavam exportando como loucos. Um mês depois, a Duma quis saber por que o Banco Central havia parado de comprar ouro. Não à toa, a mídia russa explodiu em acusações de “um roubo sem precedentes [de ouro]”.
Agora é muito mais dramático: a RIA Novosti descreveu o congelamento ditado pelos norte-americanos como – e o que mais seria? – “roubo” e o caos econômico global lá estava, devidamente previsto. Quanto ao Banco Central, está de volta ao negócio de comprar ouro.
Mas nada do que acima se lê explica algum ouro “desaparecido”, o qual, de fato, não está sob posse do Banco Central Russo. E é aí que entra em cena Herman Gref, personagem um tanto obscuro.
Verifiquemos o que se passa, com o deputado do Parlamento, Mikhail Delyagin, que tinha algumas coisas a dizer sobre a farra do ouro exportado para Londres:
“Esse processo vem acontecendo desde o ano passado. Exportaram-se, segundo algumas estimativas, 600 toneladas. Nabiullina [presidente do Banco Central da Rússia] disse – ‘quem quiser vender ouro para fazer dinheiro, ou se você minera ouro e negocia seu ouro, lembre-se de que o estado, pela minha pessoa, não comprará ouro de você a preço de mercado. Exigiremos grande desconto. Se você quiser obter dinheiro honesto pelo seu ouro, por favor, exporte-o’.
O centro mundial do comércio de ouro é Londres. E todos puseram-se a exportar e vender ouro em Londres. Inclusive o Sr. [Herman] Gref, presidente do Sberbank, formalmente estatal, que vendeu grande parte de suas reservas de ouro.”
Veja aqui detalhes fascinantes das travessuras de Gref, do Sberbank.
Atenção ao rublo lastreado em ouro
Pode ser tarde demais, mas pelo menos o Kremlin já estabeleceu uma comissão – com autoridade sobre os nerds do Banco Central – para lidar com a parte séria do negócio todo.
É surpreendente que o Banco Central da Rússia não responda à Constituição russa nem ao sistema judicial. Fato é que é subordinado ao FMI. Pode-se argumentar que esse sistema financeiro projetado por cartel – o que implica soberania zero – simplesmente não pode ser enfrentado, às veras, por nenhuma nação do planeta. Putin vem tentando miná-lo passo a passo. O que inclui, é claro, manter Elvira Nabiullina no cargo, mesmo que ela siga ao pé da letra o consenso de Washington.
E isso nos traz de volta à possibilidade de apostas altíssimas, de que o Kremlin tenha desejado desde o início forçar os atlanticistas a revelar sua verdadeira mão e expor seu sistema num espetacular “O Rei Está Nu” para audiência mundial.
E é aí que entra o novo sistema monetário/financeiro da UEE-China, sob a supervisão de Glazyev. Certamente podemos imaginar Rússia, China e vastas áreas da Eurásia a se divorciaram paulatinamente do capitalismo de cassino; o rublo devolvido ao status de moeda lastreada em ouro; e a Rússia focada em alcançar a autossuficiência, com investimento doméstico produtivo e conectividade comercial com a maior parte do Sul Global.
Muito além de suas reservas estrangeiras confiscadas e toneladas de ouro vendidas em Londres, o que importa é que a Rússia continua a ser a maior potência mundial em recursos naturais. Escassez? Um pouco de austeridade por algum tempo cuidará disso: nada tão dramático quanto o brutal empobrecimento nacional durante os anos 1990 neoliberais. E um impulso extra viria da exportação de recursos naturais a preços de desconto premium para outros BRICS e a maior parte da Eurásia e do Sul Global.
O Ocidente coletivo acaba de fabricar uma nova e espalhafatosa divisão Leste-Oeste. A Rússia agora está virando de cabeça para baixo a tal divisão, para seu próprio benefício: afinal, está raiando o mundo multipolar, no Oriente.
O Império das Mentiras não vai recuar, porque não tem Plano B. O Plano A é “cancelar” a Rússia em todo o espectro – ocidental. E depois? Russofobia, racismo, psyops 24 horas por dia, 7 dias por semana, excesso de propaganda, gangues online dedicadas à cultura do cancelamento? O que significa tudo isso? Nada. Significa coisa nenhuma.
Só os fatos importam: o Urso tem hardware nuclear/hipersônico suficiente para destruir a OTAN em poucos minutos antes do café da manhã, e dar uma lição ao Ocidente coletivo antes dos aperitivos pré-jantar. Chegará o momento em que algum excepcionalista com QI decente entenderá afinal o significado de “indivisibilidade da segurança”.*******
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