O sentido profundo da Ucrânia

Alastair Crooke – 4 de julho de 2022 – [Traduzido por Vila Mandinga]


O significado mais amplo da Ucrânia está nesse insight: todos os demais líderes perderam a ingenuidade e já não aceitam ‘o negócio’, quando o Ocidente oferece quinquilharias, contas de vidro (ou dólares de papel) em troca de riquezas locais reais.
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O Ocidente, à sua moda cavalheiresca e sem os devidos cuidados, entrou em guerra com o eixo Rússia-China. Esperava ‘vitórias’ fáceis, com sanções que implodiriam a economia russa e com táticas militares de guerra urbana emprestadas da Síria – que fariam sangrar o exército russo.

Em vez disso, o que se vê é um desastre monumental. Ainda mais que isso, os múltiplos fracassos do Ocidente e a propaganda insultuosa e arrogante aproximam-se já do ponto de ruptura, inaugurando uma nova era, em vez de fixar de vez a velha ordem, como o Ocidente esperava.

Por que essa nova era é tão grave? Em primeiro lugar, por causa do que carrega ‘por baixo’. As fragilidades estruturais e a ‘podridão do madeirame’ que se vêm acumulando ao longo de décadas, em porões úmidos – tudo mantido oculto, fora de vista. As ‘crianças’ eram tiradas da sala, para nada ouvir do que os ‘adultos’ diziam entre eles, reconhecendo a decadência e a podridão que afetava as próprias Mansões.

Claro, o mundo exterior sempre desconfiou que a ‘Casa Grande’ (os EUA) estivesse dilapidada, mas então a Rússia, sem meias-palavras, expôs a todo o mundo o quanto os EUA são realmente frágeis – na economia; na guerra; e no Fórum Econômico de São Petersburgo. Putin exortou o mundo a se manter firme contra as pretensões dos arrogantes proprietários da Casa Grande. Foi uma convocação polida, cortês, para a rebelião.

Sim, o conflito na Ucrânia é de fato um ponto de inflexão. Mas para quem? Alguns (do não Ocidente) no recente Fórum de Davos, simplesmente reviraram os olhinhos diante da reação emocional dos europeus aos eventos na Ucrânia, e apontaram padrões duplos no descaso com que trataram conflitos ruinosos em outros lugares, e o desdém por ondas anteriores de refugiados. “Há uma ânsia maniqueísta, ocidental, de ver o mundo como se tudo fosse binário”, disse Samir Saran, de um think tank de Nova Delhi: “E nós trabalhamos em tons de cinza”.

No entanto, a realpolitik da Ucrânia está remodelando a geopolítica global. Num nível, incitou ‘outros’ a se rebelarem contra as pretensões do Ocidente, autodenominando-se O Mundo Civilizado, como se dissesse, ‘fora de nossa civilização não há civilização’. Esse conceito explica por que o Ocidente condena todas as outras civilizações, seja no presente seja no passado, como atrasadas e como ameaças potenciais à estabilidade e segurança globais. É por isso que o Ocidente serve-se de eufemismos para se autodefinir como ‘a comunidade internacional’.

Por quê? Porque o espírito da época (Zeitgeist; al. no orig.), intelectual, moral e cultural geral –, no Ocidente, recusa-se a se dar por satisfeito com a imutável lei da tradição social que rege as culturas orientais. E “manifesta-se como espírito que luta para se fazer passar por ‘humanidade’, ele mesmo, e mudar o mundo” – como Christopher Dawson escreveu, há quase um século, em Religião e a ascensão da Cultura Ocidental. Significa que, diferente das civilizações chinesa, indiana, budista, amazônica, cristã ortodoxa, muçulmana ou qualquer outra civilização, diferente de todas as civilizações que o mundo algum dia conheceu, a civilização ocidental é a única que buscou continuamente se espalhar agressivamente, à moda missionária, impondo-se e tomando de assalto o resto do mundo. Em outras palavras, o Ocidente, reivindica ele mesmo e só para ele, a globalidade. A civilização ocidental é/seria a única civilização ‘naturalmente’ global.

O significado mais amplo da Ucrânia está nesse insight: todos os demais líderes perderam a ingenuidade e já não aceitam ‘o negócio’, quando o Ocidente oferece quinquilharias, contas de vidro (ou dólares de papel) em troca de riquezas locais reais.

A Ucrânia acelerou as conversas de integração entre os blocos econômicos, com vários discursos de líderes regionais dos países BRICS na Cúpula dessa semana, todos focados em como escapar da dívida dolarizada. Ou, ainda melhor, em como implementar um sistema alternativo ao estabelecido em Bretton Woods.

Além disso, os cidadãos dos BRICS – como também os da Europa – não anseiam por mercados mais eficientes nem por ‘mais’ neoliberalismo.

O Oriente Médio, particularmente, está farto de neoliberalismo e das extremas desigualdades de riqueza a que o neoliberalismo deu origem. Cidadãos em todo o planeta têm experiências ruins com as doutrinas de desenvolvimento predatório, ao estilo do Banco Mundial e do FMI. Agora já há provas de que Estados devidamente preparados podem, sim, sobreviver às sanções ocidentais. E mais: também podem usá-las como ferramenta para alterar, a favor deles mesmos, o sistema de comércio global.

O risco decorrente da próxima crise do custo de vida é fácil de entender: o risco da ainda mais grave escassez de alimentos, talvez além de qualquer estimativa. Há – como na Europa – medo e raiva também, diante da desintegração do sistema; medo, à medida que as cidades tornam-se violentas e mal administradas. Os cidadãos não procuram “mais Europa”; nem procuram mais políticas identitárias. O cidadão não se importa nem um pouco com ‘mais’ seja-lá-o-que-for. A raiva é clara, pois as pessoas querem que os sistemas funcionem – e eles não funcionam. Querem voltar a viver a vida, normalmente.

E à medida que sopram os ventos frios dos aumentos de preços inflacionários e da recessão, as pessoas olham para seus líderes – não para pedir ‘mais livre mercado’. E, sim, para exigir proteção contra os absurdos dos mercados e das leis regulatórias. Todos sentem o perigo de ‘doom-loops’[1] desconhecidos, a implodir partes de suas economias.

Essa é a principal mensagem geoestratégica que emerge da guerra do Ocidente contra a Rússia: os russos – e muitos outros – dizem que estão fartos, que Basta! de ‘Ocidentificação’ (palavra que chama a atenção para a qualidade ‘missionária’ da operação). E dizem os não Ocidentais e não ‘ocidentalistas’: definitivamente, sim, pode até ser ‘o Ocidente’, mas não ‘ocidentalizado’; pode até ser ‘o europeu’, mas nenhuma demagogia barata dessas da “mais Europa”.

É nesse contexto que a expressão ‘Mundo Russo’ (ru. Russky Mir) ganha significado. Tem origem antiga: aparece usada pela primeira vez, uso formal, no sentido moderno, em 2007, quando o presidente Putin decretou o estabelecimento da ‘Fundação Russky Mir’ patrocinada pelo governo.

Para alguns, a expressão “Mundo Russo” significaria ‘qualquer lugar onde vivam russos’. Fosse só isso, seria projeto puramente nacionalista. Para outros, a expressão significaria ‘o mundo de língua russa’. Fosse só isso, seria projeto puramente linguístico. Para outros, significaria ‘onde vivem cristãos ortodoxos’. Fosse só isso, seria projeto puramente religioso denominacional.

Para muitos russos de hoje, no entanto, “Mundo Russo” significa outra coisa, é conceito muito mais amplo. Significa: qualquer lugar onde viva quem se opõe à Ocidentificação predatória. Embora essas pessoas vivam principalmente na Rússia, China, Índia, África, América Latina, mundo muçulmano, Indonésia e Cazaquistão, elas existem em todo o mundo, até no interior do Ocidente. São todos quantos resistem contra a campanha de burla e ilusão cuidadosamente orquestrada pela ‘comunidade internacional’. Para os russos que vivem no mundo real, as fantasias e ilusões do Ocidente são absurdas e malignas.


  1. “Criou-se um mecanismo no qual o medo de que o Estado fosse à falência contaminou a confiança dos bancos privados [grande parte de cujos ativos é precisamente dívida pública], forçando-os a contrair o balanço e levando à diminuição ainda maior dos títulos públicos. A isso se chama “doom loop” [lit. ‘o vai-e-vem do apocalipse’] (KRUGMAN, Paul. “Revenge of the Optimum Currency”, NBR. Macroeconomics Annual 2013. Chicago. University of Chicago Press, pp. 439-448, p. 445. Tradução para finalidades acadêmicas). Nota dos Tradutores.

    Fonte: https://thealtworld.com/alastair_crooke/the-deeper-meaning-of-ukraine

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