O futuro precário do estado-nação (1)
A descolonização e os independentismos recentes têm a constituição de estados-nação como ponto alto, quiçá definitivo para a bem-aventurança dos povos, replicando a construção dos estados-nação na Europa, onde foram objeto de um lento processo, desde há alguns séculos atrás.
Atualmente, a globalização desenvolve processos de subalternização dos estados-nação, com a criação de normas e instituições de âmbito plurinacional ou internacional, dando como adquirido que o plano dos estados-nação é demasiado estreito.
Entre o estado-nação do passado e a unificação e uniformização do planeta levadas a cabo pelas multinacionais e pelo capital financeiro, onde se situam os povos e as pessoas? E, de um ponto de vista activo e prospetivo, que atitudes e escolhas deverão os povos assumir?
Sumário
A – Notas para o nascimento do estado-nação
1 – A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno
2 – O Estado, elemento essencial para a acumulação
3 – Nações e estados-nação
4 – O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência
5 – L’Etat, c’est moi!
6 – A importância do patriotismo
7 – O início do capitalismo industrial
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A – Notas para o nascimento do estado-nação
1 – A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno
Os estados-nação surgiram nos séculos XVII/XVIII. Até aí, na Europa, desde o desmembramento do Império Romano, existiam territórios tutelados por um rei, aceite como agregador e árbitro por uma nobreza de possuidores de terra, a quem uma multidão de camponeses pobres estava vinculada, numa relação de vassalagem. Para essa multidão, a relação com o rei era muito distanciada e ocasional, enquanto o apego à terra, à comunidade próxima onde se inseriam, era a única relação de pertença sentida e solidária, embora modelada pelas exigências dos senhores.
As disputas dinásticas entre casas reais, as junções e partições dos domínios senhoriais só atingiam a grande massa da população se daí sobrassem acréscimos nas já pesadas rendas, censos, multas, direitos e contribuições especiais exigidas pelo senhor das terras; ou, se nessas disputas, as operações militares provocassem a destruição de cultivos, saques e violações, geradoras de períodos de fome.
A assunção de pertença a uma entidade alargada e abstrata – o estado-nação – como hoje acontece, não existia, porque também não existia um Estado como estrutura administrativa, coerciva e tributária que lhe desse corpo ou visibilidade e, vincasse essa pertença, em antagonismo com outras. Não existia o estado-nação. Somente existiam súbditos do rei e dos senhores, indivíduos concretos, exigentes de obediência pessoal; mas, não emissores de cartão de cidadão, passaporte ou número de contribuinte, entre outros modos de vínculo obrigatório a um estado-nação.
A dialética entre os camponeses e os senhores feudais oscilava entre a tolerância dos primeiros e a cupidez dos segundos que, em caso de desencontro, regularmente provocava grandes e sangrentas revoltas de camponeses. Por exemplo, em França, essas revoltas sucederam-se nos séculos X a XV, com relevo para a Grande Jacquerie, quase em simultâneo com ações similares dos camponeses ingleses sob o impulso de Wat Tyler e John Ball. Em Aragão, em finais do seculo XV, a luta dosremensas, pelo direito de não pagar um tributo ao seu senhor para puderem abandonar a terra a que estavam adstritos, durou mais de dez anos. Na Alemanha, os camponeses tentaram aproveitar as movimentações decorrentes da secessão luterana para se libertarem dos senhores mas, Lutero preferiu ajudar a nobreza alemã no seu propósito de abandono da suserania papal. Nestas lutas, os revoltosos não se dirigiam contra um longínquo rei, a quem pediam intervenção mas, contra os senhores, seus opressores diretos.
O predomínio de uma economia agrária de base local não gerava grande volume de trocas com regiões muito afastadas, daí resultando o abandono, a má qualidade e a segurança nas estradas e caminhos, frequentadas por bandos de salteadores. Na Europa, estava-se longe da rede de estradas que ligava as várias regiões do Império Romano e por onde circulavam mercadorias e soldados. O centro de um domínio real era o local onde estava o rei e a corte que, com o seu poder de compra, atraia o comércio de bens de luxo e os suprimentos para a soldadesca; onde vivia o rei era o que hoje se chamaria a capital administrativa do reino.
O elemento perturbador desta ordem eram as cidades onde se concentrava a riqueza gerada no comércio distante e na finança, como em Itália ou na Flandres, cujos magnatas se constituíram igualmente como senhorios, acudindo com empréstimos a nobres e reis em dificuldades. O comércio, a produção artesanal, a construção naval, a navegação e as universidades criaram sociedades cosmopolitas que exigiam mais força de trabalho, atraindo gente do campo, à procura de uma vida melhor, fugida das crises alimentares, das guerras ou, da cupidez dos senhores.
Foi sob a tutela real que se chegou à abertura do caminho marítimo da Europa para o Oriente e à descoberta da América; o facto de esses acontecimentos terem partido das coroas ibéricas prende-se com aspetos particulares. Primeiro, a tradição expansionista bem marcada em Castela, à custa dos reinos muçulmanos, depois de coartadas idênticas possibilidades de expansão, quer a Portugal, quer a Aragão; e que motivou as primeiras incursões portuguesas em Ceuta e Tânger, ainda com um caráter típico dos rituais aristocratas, da cavalaria. Em segundo lugar, porque a luta secular dos reinos cristãos do norte da Península contra os do sul, muçulmanos, criou um frequente estado de guerra que facilitou a concentração do poder dos reis, em Portugal e Castela-Leão, em detrimento da gestação de uma nobreza feudal típica de Além-Pirinéus. E, em terceiro lugar, estando os países peninsulares em presença de um mar aberto, os custos da sua exploração seriam sempre elevados e de rendabilidade não assegurada, próprios portanto, para serem levados a cabo pelas casas reais ou, por um potentado chamado Ordem de Cristo, dirigido pelo infante D. Henrique.
Foram as Coroas que armaram os navios e, quando nas Américas a exploração colonial exigiu capitais para além das capacidades reais, passou-se a nomear (em Espanha) encomenderos com direitos sobre terrenos e seus habitantes no novo continente, que se encarregavam de armar navios e mobilizar dinheiro para o efeito, cobrando a Coroa uma parte das riquezas obtidas do saque. E existiam também contratos (capitulaciones) entre o rei e aventureiros como Cortez e Pizarro, para a procura de ouro e prata, em que à coroa cabia uma parte. Em Portugal, o rei instituiu Cartas de Doação a donatários vindos da pequena nobreza, com direitos hereditários sobre o território brasileiro e a quem competia dar ao rei 20% do ouro ou pedras preciosas encontradas ou, 10% se se tratasse de produtos da exploração agrícola. Ainda em Portugal, a estratégica construção naval estava instalada junto ao paço real para que a Coroa mais facilmente controlasse o seu desenvolvimento e viesse a cobrar no subsequente comércio de escravos, ouro ou especiarias. Nesta lógica, ainda com traços medievais, toda a terra era do rei que cedia os seus direitos no âmbito de contratos e concessões.
Nesse âmbito, a proveniência, a “nacionalidade” era irrelevante; os Reis Católicos não tiveram qualquer problema em contratar o genovês Colombo ou o português Magalhães, tal como a Inglaterra contratou o veneziano Cabot e o infante D. Henrique contratou um traficante de escravos veneziano, Cadamosto. Uma situação que hoje, com a erosão da relevância dos estados-nação e o domínio da lógica da globalização, se voltou a tornar banal, com a lenta formação de vastas elites globalizadas que trabalham para empresas transnacionais, bancos globais, instâncias internacionais, para além, no caso europeu, das relações criadas através do Erasmus.
Esse enorme alargamento do espaço de atuação, de saque colonial e de grande diversificação de bens transacionados, incluindo o volumoso e rentável tráfico de escravos, constituiu o início daglobalização e deu um decisivo impulso ao capitalismo comercial, que ainda não era dominante na Europa. E, daí que se tenha gerado grande concorrência entre as coroas europeias da fachada atlântica, todas procurando territórios na América, muitas vezes na perspetiva mercantilista de encontrar ouro; todas procurando fixar-se nas ilhas das especiarias, afastando a concorrência; todas semeando os litorais com fortalezas para dominarem as rotas marítimas; todas armando os seus próprios corsários ou combatendo os piratas; enfim, estabelecendo bases em África, subornando sobas com armas e álcool, para a entrega de escravos em troca. Tudo isso alimentou uma acumulação de capital que viria a estar ligada à agricultura de plantação, à exploração mineira, à pilhagem que, no que respeita ao capitalismo, foi uma acumulação primitiva. O capitalismo afirmava-se através da violência e do roubo; uma marca que nunca abandonou.
Essa dimensão intercontinental e global exigiu grande concentração de meios – navios mais robustos para conter grandes lotes de mercadoria e canhões, guarnições espalhadas por um vasto espaço e armamento para alimentar um esforço guerreiro continuado pelo controlo do comércio e das terras colonizadas, para além das disputas dinásticas e de influência entre as várias casas reais europeias; disputas que se vieram a articular, no século XVI, com espadas e canhões, como argumentos essenciais para definir quem detinha a pureza religiosa.
As necessidades da realeza aumentaram substancialmente, no âmbito da defesa, com a constituição de exércitos permanentes e marinhas de guerra onde era frequente a incorporação de mercenários, pagos com o ouro ou a prata vindos das Américas e do Golfo da Guiné, espalhados pela Europa como meios de pagamento de transações comerciais. O endividamento cresceu bastante junto de banqueiros italianos, flamengos ou, sob a forma de letras de câmbio; já não bastava a desvalorização do valor da moeda, reduzindo-lhe o teor em prata, metal entretanto embaratecido pela larga extração em minas americanas, como as de Potosi. Assim, a carga fiscal, sob a forma de tributos e direitos no âmbito do comércio colonial tinha de crescer substancialmente, criando-se sisas, dízimas e impostos alfandegários; o que implicava funcionalismo, técnicos, ministros, contabilidade e orçamento, uniformização de pesos e medidas, fiscais e, arrolamento de capelas, albergarias, fogos e moradores, como no Numeramento em 1527/32, em Portugal, para aplicação de um antepassado do IMI. Surgia o aparelho de estado, finava-se a relação típica dos tempos medievais, entre a punção fiscal e os gastos com a corte e a defesa.
2 – O Estado, elemento essencial para a acumulação
O desastre da Invencível Armada debilitou irreversivelmente o poder das marinhas espanhola e portuguesa, deu supremacia nos mares à Inglaterra e, indiretamente também à Holanda. Tendo em conta as distâncias, as tempestades e os riscos de intrusão no Índico, então tomado como área de jurisdição portuguesa (no que aos europeus dizia respeito), ingleses e holandeses criaram as respetivas Companhias das Índias Orientais, no início do século XVII, como forma de unificação de esforços entre os mercadores, com uma supervisão distanciada dos respetivos Estados. Em ambos os casos, a ideia inicial era a do comércio e não a da ocupação de território. Por outro lado, houve uma partição geográfica, com a Companhia inglesa a concentrar os seus negócios na Índia e na China, envolvendo o chá, a seda, o algodão, o sal e o ópio; enquanto a Companhia holandesa se focava na área que hoje constitui a Indonésia, para comercializar a pimenta, o sândalo, a noz-moscada e o cravinho, numa lógica de plantação, controlando o comércio longínquo, com a Europa e, particularmente, entre as ilhas do arquipélago de Sunda.
A Companhia inglesa foi constituída com capitais de nobres e burgueses, no âmbito de concessão real, em regime de monopólio, com pena de confisco para os prevaricadores. Inicialmente, o objeto da Companhia era o comércio mas, em meados do século XVIII, as rivalidades entre os frágeis estados indianos levou-a a armar tropas (basicamente com soldados indianos) e assumir a administração direta do território ocupado. Só em 1858 o Estado inglês assumiu, diretamente, até às independências, o governo da Índia, do Raj.
A administração colonial no Índico, de ingleses e holandeses, procurava ser discreta e pouco interventiva, dado que a numerosa população dos territórios seria desastrosa para os europeus em caso de revolta em larga escala, dadas as limitações das potências coloniais em projetar grandes meios bélicos em tão extensas e populosas áreas. Se os ingleses ainda deixaram na Índia a sua língua, os holandeses nunca procuraram sequer transmitir a sua aos povos subjugados, mantendo uma dominação muito distanciada e o malaio como a língua franca na região.
Numa fase mais recente, o poder colonial da Companhia das Índias, em interação com assumidos capitalistas conduziu à ruina da indústria têxtil indiana e ao empobrecimento dramático do povo, para benefício das fábricas de Manchester, onde o capitalismo industrial dava os primeiros passos, introduzindo novas formas de exploração do trabalho alheio.
Ainda na Inglaterra do século XVII o rei Carlos I julgava-se com todos os direitos de aumentar os impostos e punir os opositores, como era a regra da época, das monarquias absolutas feudais. A existência de um Parlamento, ainda que constituído pelo clero e pela nobreza, dificultou-lhe a tarefa, acabando mais tarde por ser julgado e condenado à morte, dando lugar à instituição de uma república, onde Cromwell surgiu como homem forte, sobretudo depois de ter domesticado o próprio Parlamento.
Cromwell criou um exército profissional e, apoiado por burgueses e camponeses anulou os direitos feudais sobre os últimos e confiscou as terras da Igreja Anglicana, para garantir um melhor rendimento da terra; e, sublinhamos, promulgou o Ato de Navegação (1651). Este, instituía o monopólio do comércio marítimo entre a Inglaterra e as suas colónias para os navios ingleses e só admitia nas suas exportações ou importações navios seus ou da outra parte, com a exclusão de terceiros, o que redundou em prejuízo para a Holanda. Esses tráfegos reservados[1] iam ao encontro dos interesses da burguesia comercial, ávida em desenvolver o comércio marítimo e da posse de terras coloniais, sem concorrência exterior. O não domínio das terras propícias ao extrativismo do ouro e da prata (não existentes nas colónias britânicas) veio a promover colónias de povoamento na América do Norte. Mais tarde, a produção manufatureira, protegida da concorrência viria a fomentar a acumulação capitalista associada a um território unificado e bem delimitado, com o crescente domínio dos oceanos.
3 – Nações e estados-nação
Os exemplos atrás referidos mostram como as comunidades humanas europeias passaram da vassalagem face a senhores feudais, estes, com um suserano, distanciado do povo, a vassalos diretos desse suserano (rei), com o esbatimento ou desaparição dos vínculos feudais.
Uma nação corresponde a um povo, à partida ligado a um local comum de nascimento (natio), cuja convivência duradoura gerou uma cultura própria; e que pode ou não, conduzir à edificação de um estado-nação, sem que haja qualquer causa-efeito daí decorrente. Hoje, no século XXI do neoliberalismo e das alterações climáticas, há muito mais nações sem Estado do que estados-nação; e no seio de muitos destes, convivem, pacificamente ou de modo conflitual, várias nações. Por outro lado, os estados-nação vão cedendo a sua suserania a instituições globais, num processo de interligação, em rede, protagonizado por empresas multinacionais e pelo sistema financeiro, que funcionalizam e domesticam ao seu serviço as classes políticas nacionais.
Na génese dos estados-nação europeus, em geral, os territórios basearam-se nas áreas correspondentes à suserania de uma casa real, com mais ou menos alterações, resultantes, sobretudo de numerosas guerras. Porém, nesse processo, muitas dessas soberanias, umas com menos território ou população, outras com mais, desapareceram, diluídas num ou mais estados-nação, como o reino das Duas Sicílias; outras, mesmo com uma dimensão média assenhorearam-se de territórios e populações muito superiores, eliminando pelo caminho, muitos senhorios, como foi o caso da Prússia.
Dentro da mesma lógica senhorial, nos antigos territórios colonizados, os estados-nação daí resultantes herdaram as fronteiras estabelecidas pelas potências ocupantes, a régua e esquadro, sem qualquer preocupação se daí resultaria ou não uma separação política de uma nação, de uma tribo, de uma cultura resultante de ancestral convivência; ou mesmo, se a linha divisória viria a separar partes de uma mesma aldeia. As vantagens tecnológicas e bélicas induziam a uma superioridade dos “brancos” que era acompanhada por um misto de desprezo e de punição, pois “as raças inferiores” não correspondiam às virtudes da civilização dos europeus ou dos seus descendentes, made in USA. Essas atitudes viriam, a partir do século XIX, a marcar também o espírito dos japoneses – mesmo que de “raça amarela”- no seu expansionismo na Ásia, nomeadamente face aos chineses…
No âmbito dessa dita superioridade civilizadora, as potências coloniais deixaram, em África sobretudo, estados-nação, onde nunca eles existiram, porque os povos durante séculos procederam às suas trocas comerciais, de ideias, de corpos e de conflitos, valorizando essencialmente as redes, os itinerários, as línguas locais, como as línguas francas; e pouco ou nada, atentos a algo que se equiparasse a fronteiras. A construção de estados-nação, cerca de cinquenta anos após a descolonização, revelou inúmeras guerras civis, impôs limitações aos tradicionais corredores comerciais e criou outros, para o tráfico de armas, drogas e candidatos à entrada na Europa; favoreceu genocídios, deslocações massivas de gente em fuga, implantação de cliques corruptas protegidas pelo capital global ou pela antiga potência colonial; originou exércitos nacionais ou privados especializados na predação e no massacre; gerou crianças-soldados, emigração compulsiva, intervenções militares exteriores (agora monitoradas pelo Pentágono, via Africom), refugiados e, nos países de imigração, exclusões, exploração, racismo, gente “inexistente” denominada “sem-papéis”.
A distinção entre os seres humanos, em função da “raça”, qualificada basicamente pela cor da pele, tem sido um instrumento de hierarquização social e discriminação, surgida na sequência do domínio colonial; contudo, em países como os EUA, as pessoas ainda são confrontadas para uma autoqualificação racial, surgindo daí casos de impossível qualificação, dentro do “catálogo”, tal como de pessoas que recusam outra qualificação que não seja a de ser humano.
No entanto, essas divisões arbitrárias não se cingem aos territórios outrora colonizados. Em Portugal, no Alto Trás-os-Montes conhecemos uma aldeia dividida pela fronteira – Rio de Onor na parte portuguesa e Río de Onor na parte leonesa (com acento agudo no i como é devido, em castelhano); Rio de Onor reporta a Bragança, sede de concelho e Río de Onor reporta a Puebla de Sanabria, província de Zamora, comunidade de Leão e Castela. Em outras situações, a fronteira era totalmente ignorada pelas pessoas, que se mudavam para o outro lado, com gado e alfaias, em função das investidas da punção fiscal ou na perspetiva de recrutamentos para a tropa.
Os estados-nação, nos seus primórdios, passaram a incorporar uma ou mais nações englobando gente de várias culturas, línguas e tradições, como na Inglaterra do século XVII ou em Espanha, desde os primórdios da sua constituição. Por regra, os estados-nação tendem a gerar um totalitarismo unificador, uniformizador, destruindo ou dificultando a expressão das nações englobadas, em detrimento de uma que se pretende hegemónica, seja ou não maioritária; essa pulsão, tanto se pode manifestar através de receios centrífugos (separatismos ou pendor para a incorporação num outro estado-nação, vizinho) ou centrípetos (reivindicações expansionistas, de incorporar partes de outros estados-nação vizinhos). Essa pulsão territorial expansionista correspondia à inclusão de mais força de trabalho, recursos naturais, subjugação de outras classes possidentes; mais mercado, como se diz hoje. Em regra, qualquer estado-nação assume-se como avaro zelador do seu território e dos destinos dos seus “súbditos”; tal como guloso candidato ao controlo de territórios alheios, em capturar novos súbditos, sob qualquer pretexto, para enriquecer os seus ricos e, aumentar a ração e o prestígio da sua classe política. A globalização, contudo, tende a dinamitar essa construção – estado-nação – e a demonstrar a sua vulnerabilidade ou mesmo inconveniência ou inutilidade, não só para os povos – para os quais sempre constituiu uma prisão – como perante o capitalismo globalizado de hoje, como assinalaremos no contexto deste trabalho.
Assim, na Grã-Bretanha actual convivem escoceses, galeses e irlandeses (do norte), com as suas línguas[2] e culturas; mas o predomínio político, económico e cultural dimana da Inglaterra e, mormente da emblemática e gigantesca Londres. Em França, os monarcas e, mais tarde os republicanos, instalados em Paris acharam por conveniente destruir no sul, a cultura do provençal, da langue d’oc, espremer para um canto os bretões, esquecer a cultura alemã da Alsácia ou dos bascos no sudoeste e impedir qualquer devaneio soberanista dos corsos; remetendo as respetivas línguas para o olvido do “não reconhecimento”. Por seu turno, em Espanha, a classe política dominante, sediada em Madrid, sempre sonhou com uma homogeneidade impossível, mesmo tendo utilizado meios brutais no tempo do fascismo, como a proibição do ensino e da utilização em público das línguas das nações integradas sob a tutela de uma monarquia sem rei; uma integração que Rajoy e o seu nacionalismo arreigado, típico dos fascismos – tenta manter, com sucesso mais que duvidoso a não ser que coloque na cabeça o tricórnio de Franco e restaure os fuzilamentos, como aventado pelo seu confrade Casado. No Brasil como nos EUA, as nações índias tentam sobreviver, no primeiro caso, às investidas do agro-negócio que lhes destrói o habitat e, no segundo, como zoos ou reservas.
4 – O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência
A competição por territórios, mormente coloniais, transformou a gestão das despesas do rei e da corte, numa estrutura burocrática e financeira complexa, com gastos militares e administrativos elevados, a exigir uma máquina de cobrança de rendimentos, adequada aos meios da época mas, muito zelosa de obter o adequado aos vultuosos gastos exigidos pelas circunstâncias. Como se disse atrás (ponto 1) a carga fiscal e o aparelho para a sua recolha restrita ao território original, mesmo tendo crescido bastante, não era suficiente para as necessidades das finanças reais.
Uma fonte essencial de recursos financeiros a que os Estados recorreram de forma massiva foi através do tráfico de escravos. Segundo Philip D. Curtin na sua obra The Atlantic Slave Trade foram despejados, entre os séculos XVI e XIX, nas colónias espanholas da América 1.6 M de escravos africanos, nas colónias portuguesas 3.6 M, nas inglesas 2 M, nas francesas 1.6 M, nas holandesas 0.5 M, num total de 9.2 M de pessoas. Isto, esquecer que 20 a 40% dos embarcados em África morriam durante uma viagem de 30/50 dias durante a qual jaziam acorrentados no porão. Só de Liverpool, nos doze anos terminados em 1707 zarparam para África 5300 embarcações de negreiros.
Os Estados europeus, durante séculos cobraram aos negreiros elevadas quantias como licenças. A Fazenda espanhola, para além de cobrar um imposto de 100 pesos por “peça” (um standard de escravo, de 15/30 anos e com saúde) recebia ainda 2.5 a 5% de imposto de venda e transação (o IVA da época…) no embarque e 5 a 7.5% no local de destino, nas Américas. O recibo do pagamento do imposto consistia… numa marca de fogo na pele do escravo. Se se pensar que à chegada a Cartagena de las Índias uma “peça” era transacionada por 300 pesos, que no Chile chegava a 600 e nas minas de Potosi o preço chegava aos 900 pesos, pode imaginar-se a enorme margem de lucro dos negreiros e das receitas estatais que o negócio permitia.
A questão da escravatura, como a ocupação da terra das comunidades nativas das Américas, revela que a acumulação capitalista teve um primordial início no seio da maior violência e no roubo; a que se seguia alguma redistribuição “democrática” com os assaltos piratas aos galeões da prata vindos da América e a resultante dos pagamentos em ouro dos deficits comerciais. Como as potências ibéricas tinham recebido, importada do mundo muçulmano – e antes da Europa do Norte, tipicamente feudal – a lógica do boullionismo, a extração de metais preciosos e os altos lucros do comércio das especiarias e dos escravos permitiu-lhes negligenciar a manufactura e as medidas protecionistas para a importação de bens acabados, o que a Inglaterra não fez. Nos dois países ibéricos, a erosão do poder militar ou do controlo dos mares, a continuidade do extrativismo colonial, o desinteresse por uma reforma da posse da terra, a continuidade de um poder real conservador e, entretanto, enfeudado à perseguição das elites mais endinheiradas e empreendedoras, em nome de um proselitismo religioso, selaram a decadência e a sua chegada mais tardia – e subalterna – ao capitalismo.
5 – L’Etat, c’est moi
A edificação dos estados-nação na Europa e a acumulação de capital gerada em torno do comércio negreiro e na sequência do trabalho escravo são peças essenciais para o futuro desenvolvimento do capitalismo. Aliás, mesmo hoje e apesar das altas tecnologias, a economia do crime representa cerca de 15% do PIB mundial e o capitalismo não dispensa as “peças” do século XXI, os refugiados, os imigrantes de África ou do Médio Oriente que tentam chegar à Europa; nem os latino-americanos que tentam a sua sorte nos EUA; para não referir os tráficos de prostitutas, crianças de órgãos e outros “nichos de mercado”. O sistema financeiro, hoje, não se dispensa do protagonismo na integração (lavagem) de tamanho volume de capitais; e as classes políticas dos estados-nação não cobram imposto aos cartéis de traficantes mas, sabem que o dinheiro envolvido é branqueado nas filiais offshore dos seus bancos e que muitos empresários ganharão competitividade com o recrutamento ou mesmo a escravização das “peças”, o que é fundamental para fazer crescer o sacrossanto PIB.
Para que se mantivesse um superavit no comércio externo com uma correspondente entrada de ouro, as importações de matérias-primas teriam de ser objeto de monopólios e de subsídios, concedidos pelo Estado, ao mesmo tempo que se combatia a importação de bens manufaturados, através de tarifas alfandegárias. A concentração de dinheiro no comércio viria, gradualmente, a permitir um novo modelo de produção material, com a mercantilização da terra e transferência de mão-de-obra agrícola, desnecessária no campo, para a produção industrial; esse novo modelo acrescentou aos poderes do Estado todo-poderoso, absolutista, os instrumentos de regulação do trabalho; e isso, fora e contra as corporações de artes e ofícios, que definharam até desaparecerem na generalidade, embora repescadas mais recentemente com as ordens profissionais, como formas de controlo do acesso ao trabalho dos seus (obrigados) associados. Esse papel de regulador, financiador, protagonista no que se pode chamar política industrial e no equilíbrio financeiro com o exterior, juntou-se aos poderes mais antigos, no âmbito do controlo das fronteiras, de manutenção da ordem, dos tribunais e da guerra. Em conjunto, consubstanciaram a base do protecionismo e da afirmação do estado-nação, face aos concorrentes; marcaram o poder absolutista, bem expresso por Luis XIV, na segunda metade do séc XVII, quando terá dito “L’Etat c’est moi”.
Em Portugal, pode acompanhar-se o desempenho de um país e uma economia que construiu a peculiar situação de colonizador e colonizado. O tratado de Methuen, em 1703, traduz, claramente, uma aplicação da (desigual) divisão internacional do trabalho, em que a manufactura de têxteis seria uma especialização inglesa enquanto Portugal se dedicaria à produção de vinhos, o que agradava aos grandes senhores da terra duriense. Poucos anos antes (1690) suicidava-se o conde da Ericeira, grande promotor da indústria em Portugal, incapaz de vencer a influência inglesa e a desestabilização patrocinada pelos adversários da manufatura do têxtil na Serra da Estrela que chegaram a obter o apoio da Inquisição uma vez que alguns industriais eram… cristãos-novos.
A incapacidade da sociedade em impor uma via de desenvolvimento capitalista articula-se com a facilidade com que o fluxo de ouro brasileiro permitia recorrer à importação e colmatar os deficits resultantes das trocas desiguais com a Inglaterra. Por outro lado, o ouro brasileiro foi permitindo grandes gastos em construção que não geraram desenvolvimento industrial em Portugal mas, produziram mamarrachos como o Convento de Mafra; do mesmo modo, o fluxo de ouro não evitou que os lisboetas, para terem um aqueduto que lhes trouxesse água em abundância, tivessem de o pagar com impostos específicos sobre os bens alimentares, durante muitos anos. Mais tarde, em meados do século XIX, a construção de linhas de caminho-de-ferro ligando áreas rurais – e não centros urbanos industrializados (inexistentes) – veio a demonstrar a sua desadequação quando se observou o abandono dos campos, a fuga para o litoral ou para a emigração.
Os pobres diabos que dizem “o Estado somos todos nós” não se julgam Luís XIV, nem se mascaram de tal pelo carnaval. Mas imputam ao Estado um espírito justiceiro, igualitário e protetor sobre todos os súbditos que, na sua concepção, estariam representados e protegidos pelo Estado. Mesmo as funções estatais no âmbito da educação, da saúde ou da ação social, a favor da população, mormente trabalhadora, nunca deixam de ser integradas nos interesses mais gerais da acumulação capitalista. O Estado sempre se revelou oligárquico e executor das medidas que interessam ao capitalismo, através dos elementos da classe política que o detêm, no sentido de manter a turba mansa, entre o pau e a cenoura. Os referidos pobres diabos, muitos dos quais se dizem “de esquerda”, são como os escravos, agradecidos pela malga oferecida pelo dono, a quem não contestam a legitimidade da sua posse.
6 – A importância do patriotismo
A ligação entre o poder real, a burguesia comercial e, mais tarde, a industrial e a financeira, exigia um Estado poderoso perante o exterior e que disputasse com os rivais os mercados, as colónias e mesmo o espaço físico europeu, no âmbito de sucessivas crises de sucessão real, promotoras de alianças antagónicas. Qualquer estado-nação nascia e afirmava-se na desconfiança e no antagonismo com os rivais, criando um aparelho cada vez mais poderoso, invasivo e exigente face à população abrangida; porém, não bastava uma relativa unidade das várias facções da burguesia e da aristocracia em torno do omnipotente rei, contra as ameaças externas ou para monitorar as suas próprias ambições face ao exterior. Era preciso envolver, engajar, a grande massa da população dos campos e das cidades nesse desígnio “nacional” para que aceitassem, sem protestos ou revoltas, a carga fiscal, o recrutamento militar e o domínio das classes possidentes; e, para isso tornou-se necessário incutir um elemento novo nas mentes dos povos – esse sentimento arreigado e irracional de pertença, o patriotismo; e, através deste, a subordinação às camadas dirigentes e ao rei, em particular, como encarnação viva da pátria. Pretendia-se que as pessoas insufladas de patriotismo respeitassem fronteiras, aceitassem a perda de autonomia nas suas vidas, a categoria de súbditos do Estado, de membros de um estado-nação[3] no âmbito do qual são fragmentados em várias categorias – consumidor, contribuinte, espectador, eleitor, devedor, colaborador, desperdício (ver O Homem, Ser Social e Fragmentado)
Como súbditos, teriam de estar dispostos a antagonizarem-se com gente desconhecida que tivesse sorvido o mesmo elixir patriótico mas, num frasco diferente, com o rótulo de outro estado-nação, em conflito com a sua “pátria[4]”. De um ponto de vista mais restrito e de captura ideológica, o patriotismo não é diferente, nem mais inteligente do que o clubismo; embora as classes políticas exaltem o primeiro e se manifestem mais contidos quanto ao segundo, não deixando de aceitar como úteis, as descargas de tensões dos mais fervorosos adeptos. A adopção de uma nacionalidade é como a “raça”, divide a espécie humana, espartilha as solidariedades e estilhaça a Humanidade.
Ao inventarem o patriotismo, as burguesias europeias criaram também uma forma de embaratecer as guerras em que frequentemente se envolviam – o serviço militar obrigatório – nos tempos modernos inventado pela França, no seguimento da Revolução Francesa. Com as novas tecnologias da época, a guerra exigia muitos soldados, a artilharia gerava muitas baixas e tornava impossível o recrutamento de dezenas ou centenas de milhares de mercenários, porque não havia candidatos suficientes; e, sendo o risco elevado, os salários teriam de ser forçosamente elevados, no seio da célebre lei da oferta e da procura.
Os capitalistas, que nunca foram desastrados na contabilidade, viram que seria mais barato convencer ou obrigar uma população a defender a pátria “comum”, incutindo-lhe o tal sentido de pertença para que aceitassem o sacrifício e a ideia de que o rei e os possidentes estavam empenhados na defesa do povo quando na realidade, quem tinha bens e interesses em jogo eram aqueles e não a grande massa do povo.
Mais tarde, a escola foi um instrumento essencial para incutir conceitos tão inquinados, como a raça e o patriotismo, num contexto viciado de exaltação dos feitos históricos da pátria; uma pátria em que os “nossos” soldados brilharam, foram heróis e, os adversários, esses, foram derrotados, mesmo em maioria, pela valentia e espírito de sacrifício do nosso povo, bla bla. E quando a derrota foi inapelável, seguida de subjugação secular, cai-se no saudosismo, no lamento, como transposto na metáfora do “chegar numa manhã de nevoeiro” referente a um desejado regresso do rei Sebastião, derrotado em Marrocos e que, voltando retiraria legitimidade à investidura de Felipe II de Espanha como rei português. As derrotas podem também vir a alicerçar xenofobia, como o que ocorreu séculos depois da derrota sérvia face aos otomanos na batalha do Kosovo Polje. No seguimento, aqueles que se tornaram, com o tempo, membros da administração otomana adoptando o islamismo, passaram, na Bósnia, à categoria recente de muçulmanos, para se diferenciarem dos sérvios-bósnios e dos croatas, numa mistura imbecil de distinções, onde se usam, critérios étnicos ou religiosos, para a manutenção de divisões e ódios.
O vincar do patriotismo, do exacerbamento da pertença a um estado-nação, corresponde à sobrevalorização das fronteiras, à desconfiança, à animosidade face ao Outro que vive do outro lado. Em Portugal diz-se “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento” embora as ligações familiares entre os dois lados da dita fronteira tenham sido comuns durante séculos e as afinidades linguísticas e culturais, imensas. Politicamente, a separação entre os dois estados-nação encontra-se estável há séculos, sendo no essencial uma abstração pois nada distingue um lado do outro (a chamada raia seca); ou, quando constituída por um rio, este embora ajude à demarcação é, em regra, um elo de ligação entre as duas margens e um fraco obstáculo, excepto no caso do Douro Internacional que, escavando margens alcantiladas, inviabiliza fáceis passagens. Se a fronteira era um verdadeiro passador, já no passado, como o demonstra o comércio formal, o contrabando e, sobretudo a passagem dos exércitos, hoje, as fronteiras são marcas do passado, com os seus castelos e fortalezas como atrações turísticas e, só se fecham em situações excepcionais, como relatamos a seguir, onde toda a classe política surgiu unificada.
Em Portugal, depois da integração simultânea com a Espanha na CEE, só nos recordamos de dois momentos de fronteiras com entradas controladas pela polícia. O primeiro, terá sido quando da vinda do papa Wojtyla e, mais recentemente, durante a Cimeira da NATO em 2010 em Lisboa, quando grupos pacifistas e antimilitaristas foram impedidos de entrar em Portugal. Recordamos um autocarro com finlandeses, impedido de entrar na fronteira norte, um grupo de andaluzes travado em Vila Verde de Ficalho e outros casos que abrangeram cerca de 150 pessoas, sem que a “esquerda” parlamentar tenha gasto um neurónio face ao atropelo à liberdade de circulação nas fronteiras. O governo Sócrates, hospedeiro da NATO, mandou para a prisão 42 ativistas para que não viessem a perturbar a ritual procissão convocada pela CGTP/PCP e apoiada pela “esquerda”; nesse contexto, o mesmo governo mandou isolar e cercar pela polícia os manifestantes antimilitaristas, apontados como potenciais terroristas durante os dias anteriores, para criar um ambiente propício a uma repressão brutal.
7 – O início do capitalismo industrial
O mercantilismo cedeu o passo ao capitalismo de predominância industrial que integrou no processo produtivo a terra, a atividade comercial, a tecnologia e o trabalho, sendo este autonomizado sob a forma de salariato. A tecnologia baseava-se na mecanização, na utilização de novos materiais, do carvão, do vapor e, integrada no sistema fabril; isto é, na aceitação pelos trabalhadores, sem discussão, de um horário de trabalho de treze horas, durante as quais poderia haver acidentes e, com a absoluta obediência às instruções dimanadas do patrão, entidade suprema dentro da fábrica.
Na escravatura, o dono providenciava a subsistência e a produtividade tendia a ser baixa; esta só aumentava com o chicote nas costas, o que exigia uma vigilância prolongada, com os devidos custos. No novo paradigma, no capitalismo, os assalariados – homens, mulheres e crianças – já não eram parte do inventário de um dono e podiam adestrar-se em rotinas técnicas. Recebiam um salário que podiam formalmente negociar, como podiam mudar de patrão ou de lugar, podendo também, ser liminarmente despedidos; neste contexto, um desempenho considerado insuficiente representava o despedimento e a fome… em liberdade.
Os assalariados, cujo salário, numa fase inicial, se situava no limiar da subsistência, não tinham outros recursos para fazer frente a todas as suas necessidades; e essa penúria jogava a favor do capitalista que pressionava para a superação do desempenho dos trabalhadores, conducente ao aumento da produtividade; a sua produtividade seria, naturalmente mais elevada do que a de um escravo.
Quanto à rotina imposta pelo sistema fabril, cada assalariado tinha, como únicas alternativas, a submissão ou, a inanição e a morte. Assim, foi-se gerando uma vontade coletiva de mudança, de melhoria das condições de trabalho e de vida que poderia chegar à abolição do capitalismo. Para o efeito seria necessário destruir a máquina estatal que funciona na defesa dos capitalistas.
Esta realidade economicista coadunou-se com o espírito humanitário que, nas camadas sociais inglesas mais elevadas, combatia a escravatura e veio a conduzir à abolição do tráfico em 1807 e da escravatura em Inglaterra e colónias, em 1833. Essas mesmas camadas anti-esclavagistas, porém, esqueciam o humanitarismo à porta das suas fábricas onde vigorava a enorme dureza do trabalho e os parcos salários auferidos, sobretudo por mulheres e crianças.
Há em Portugal quem se ufane da primeira legislação anti-esclavagista a nível mundial pela mão do Marquês de Pombal, em 1761 e que, já então, evidenciou a prática muito actual de uma aplicação truncada ou não cumprida. Note-se, que apenas tinha aplicação legal no território europeu e da Índia dita portuguesa, uma vez que no Brasil a escravatura continuava pujante, só sendo abolida em 1888, depois de proibido o tráfico em 1850. Assim, o Marquês reafirmou, mais tarde, essa disposição legal com a lei do ventre livre, no âmbito da qual, um filho de escrava, nascia livre.
Na realidade, a escravatura só acabou em Portugal em 1854 (muito depois da Inglaterra e sob pressão inglesa) quando um decreto libertou os escravos possuídos pelo Estado, continuando até 1856 a existirem escravos detidos pela piedosa Igreja católica; a última antiga escrava morreu nos anos trinta do século XX[5]. Só em decreto de 25/2/1869 a escravatura foi abolida nas colónias mas, na prática, durou até 1876, tendo rapidamente sido substituída pelo trabalho forçado, uma forma de “civilizar” os africanos (Regulamento do Trabalho Indígena, 1899[6]). A duração factual da escravatura em Portugal prende-se, naturalmente, com o atraso das estruturas económicas e sociais que permitiam uma “rendabilidade” para a escravatura uma vez que estes eram sobretudo serviçais, desligados, portanto da atividade económica. Como em muitas partes do mundo, a escravatura continua a existir em Portugal.
(continua)
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
[1] Em Portugal, o monopólio do tráfego marítimo com as colónias durou até à independência daquelas. Estava entregue a duas companhias de navegação que, pouco depois foram dadas como falidas – a CTM e a CNN; e que, em 1975 haviam sido… nacionalizadas, tornadas “nossas”, como herdeiros das perdas inerentes à descolonização, poupando-se assim os grupos económicos do fascismo à assunção dessas perdas.
[2] Para além das pequenas comunidades que falam manx (ilha de Man) ou cornish (Cornualha)
[3] Na verdade, as deserções face às guerras entre os estados-nação demonstram que há muita gente pouco disposta a dar a vida por uma abstração que capeia interesses muito próprios de uma minoria privilegiada, que assim se acha com o direito de envolver, no âmbito desses interesses, gente que nada tem a ver com eles, nem com as suas fortunas. Os desertores e refratários são tratados pelos regimes políticos como cobardes e antipatriotas, um superlativo da ignomínia para os regimes políticos, o pior dos anátemas; ou, na hipótese mais benévola são ignorados mesmo que a História lhes tenha vindo a dar razão em não terem participado ao serviço de opressores, como no caso da guerra colonial que Portugal levou a cabo nas colónias entre 1961 e 1974. Aliás, em Portugal, o regime instaurado em 1974, mostrou-se discreto quanto aos refratários, desertores e presos políticos pelo regime fascista, tanto quanto aos agentes da pide, aos militares que cometeram atrocidades e crimes de guerra ou, aos membros da oligarquia política do fascismo. Sobre este tema, anotámos estes testemunhos:
http://rr.sapo.pt/noticia/66884/o_pais_ainda_nao_absolveu_os_desertores_da_guerra_colonial
https://br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRKCN0ID2FK20141024
http://col2.com/bandas-de-desertores-en-tierra-de-nadie-durante-la-primera-guerra-mundial
[4] A própria designação de pátria revela a prevalência do machismo, a secundarização da mulher, do feminino que, até ver ainda não foi espoliado nas designações de mãe-natureza ou terra-mãe.
[5] http://oficinadahistoriad.blogspot.pt/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html
“Escravos em Portugal – Das Origens ao Século XIX” de Arlindo Manuel Caldeira
[6] Margarida Seixas “O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica”, 2015
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