Quanta diferença faz um ano – uma eternidade, em geopolítica. Aconteceu, sem que ninguém previsse: a matriz ideológica de todas as variantes do terror jihadista salafista – que a Rússia combate sem trégua, do ISIS/Daech ao Emirado do Cáucaso – percorreu a trilha toda até o Kremlin e está pronta a abraçar a Rússia como aliada estratégica.
A Casa de Saud ficou horrorizada com a bem-sucedida campanha da Rússia para impedir o sucesso do golpe de mudança de regime na Síria. Moscou solidificando cada dia mais sua aliança com Teerã. Falcões do governo Obama só fizeram impor à Arábia Saudita uma estratégia de manter baixos os preços do petróleo para ferir a economia russa.
Agora, já tendo perdido todas as suas batalhas, da Síria ao Iêmen, perdendo influência regional para Irã e Turquia, endividada, vulnerável e paranoica, a Casa de Saud tem ainda de enfrentar o fantasma de um possível golpe em Riad contra o príncipe coroado Mohammad bin Salman, também chamado MBS, como Asia Times noticiou. Sob tamanha pressão, a quem você recorreria?
Ao blaster exterminador de fantasmas: Vladimir Putin, presidente da Rússia.
Essencialmente, a casa de Saud está obcecada por três vetores: baixo preço do petróleo; o Irã e o xiismo; e o que fazer da política exterior dos EUA no governo Trump. Vamos por partes.
Quero meus S-400s
Com o tal “reset” Moscou-Washington em estado permanente de danação, mesmo depois de o caso Rússia-Gate ter implodido, conselheiros da Casa de Saud devem ter compreendido que o Kremlin não desmontaria sua relação estratégica com o Irã – um dos nodos chaves da integração da Eurásia.
Moscou manter-se-á alinhada com o Irã no “Siriaque”; integra o grupo “4+1” (Rússia-Síria-Irã-Iraque, plus Hezbollah), a aliança no Levante/Mesopotâmia, fato em campo incontroverso (e vencedor). E nada aí impede que a Rússia construa relações cada vez mais amigáveis em todo o mundo árabe – com Egito, Jordânia, Emirados Árabes Unidos e Líbia, para começar.
No que tenha a ver com Moscou, em profundidade, há o financiamento que sauditas garantem (formal ou informalmente) a grupos de jihadistas salafistas dentro da Rússia. Assim sendo, uma linha de comunicação de alto nível entre Moscou e Riad trabalha na direção de dissipar quaisquer mal-entendidos relacionados, por exemplo, ao jihadismo no Tatarstão e Chechênia.
Moscou absolutamente não cai na conversa (muito repetida no Ocidente) segundo a qual o Irã teria “comportamento agressivo” no Oriente Médio. Como negociador chave do Plano Amplo de Ação Conjunta [ing. Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), a Rússia sabe perfeitamente que o programa de mísseis balísticos do Irã é hoje o principal alvo do iminente desmonte, pelo governo Trump, do acordo com o Irã.
Esses mísseis realmente representam dissuasão contra qualquer possível ataque norte-americano, “liderando pelos fundos” ou não. O Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos em Teerã já deixaram perfeitamente claro que o programa de mísseis balístico nada tem a ver com o JCPOA e permanecerá em andamento.
Entra em cena o Memorando de Entendimento [ing. memorandum of understanding (MOU)] entre os sauditas e Rosoboronexport (a estatal russa para exportação de material militar) assinado em Moscou para a compra do sistema S-400 de mísseis; do sistema Kornet-EM; do TOS-1A; do AGS-30; e por fim, mas não menos importante, da nova Kalashnikov AK-103.
Já não há qualquer dúvida de que o S-400 é história de sucesso. Irã comprou. Turquia comprou. Agora, Arábia Saudita está comprando – depois de ter desperdiçado uma fortuna em armas norte-americanas durante a hoje infame “dança das espadas” na visita de Trump a Riad.
Assim sendo, não surpreende que, depois das notícias do S-400, o Departamento de Estado dos EUA aprovou, como relógio de precisão, a possível – “possível” é aí a palavra chave – venda, num total de $15 bilhões, de 44 lançadores de mísseis Terminal High Altitude Area Defense, THAAD e 360 mísseis para a Arábia Saudita, ótimo negócio para Lockheed Martin e Raytheon.
A agência do Pentágono para cooperação na Defesa disse que “essa venda promove a segurança nacional e interesses de política externa dos EUA, e apoia a segurança de longo prazo da Arábia Saudita e região do Golfo ante a ameaça iraniana e outras ameaças regionais.” Os mais cínicos já preveem uma batalha entre S-400s iranianos e os THAADs “moderados” dos sauditas.
Somos a nova OPEP
O rei Salman pode ter embarcado e viajado naquele voo da Saudi Arabian, mas o verdadeiro arquiteto do movimento de “pivô” para a Rússia é MBS.
O petróleo é responsável por 87% do que entra no orçamento dos sauditas, 42% do PIB e 90% das exportações. MBS está apostando todas as fichas no Programa Vision 2030 para “modernizar” a economia saudita, e sabe muito bem que com os preços do petróleo deprimidos, são baixas as chances de conseguir realizar seu plano.
No Fórum Semana Russa de Energia em Moscou, o Ministro de Energia da Arábia Saudita Khalid Al-Falih disse que a oferta pública para venda da Aramco – uma das fontes chaves de fundos para o projeto Vision 2030 – acontecerá na segunda metade de 2018, contradizendo funcionários sauditas que haviam dito que a oferta pública teria sido adiada outra vez, para 2019. E nem se sabe se a venda pública acontecerá na Bolsa de Nova York ou em outro local.
Entrementes, a prioridade continua a ser o acordo entre países OPEP / não OPEP (com a Rússia na vanguarda) para “estabilizar” os preços do petróleo, firmado em novembro de 2016 para cortar a produção. O presidente Putin concordou provisoriamente com que o acordo seja adiado para depois de março de 2018, algo a ser discutido em detalhe na próxima reunião da OPEP em Viena, no final de novembro.
O acordo pode ser visto, claro, como medida puramente estratégica/econômica para estabilizar o mercado de petróleo – sem sobretons geopolíticos. E ainda assim a OPEP está orientada para se converter em animal completamente novo – com Rússia e Arábia Saudita decidindo de facto para onde vão os mercados globais de petróleo, e depois informando aos demais atores OPEP. Ainda não se sabe o que Irã, Argélia, Nigéria, Venezuela, dentre outros, terão a dizer sobre esse arranjo. O mal disfarçado objetivo é levar o preço até uma faixa de $60-75 por barril até meados do próximo ano. Certamente bom negócio com vistas à venda pública da Aramco.
Houve uma série de outros acordos firmados em Moscou – como o Fundo Russo-Aramco de Investimento Direto [ing. Aramco and the Russian Direct Investment Fund, RDIF], de $1 bilhão, para projetos de serviços de petróleo na Rússia; mais outro fundo para tecnologia, de $1 bilhão.
Essa sinergia implica a Arábia Saudita investindo nos principais ativos russos de energia, e a Rússia, dentre outros itens, fornecendo gás para a indústria petroquímica saudita e reduzindo custos de perfuração/produção. Com certeza é bom negócio para o programa Vision 2030.
A cidade já tem novo xerife
Dizer que o pivô saudita na direção da Rússia está beliscando os nervos em todo o governo dos EUA é pouco. A CIA não é apaixonada por MBS. É provável que ressurjam alguns dos ‘enigmas’ relacionados ao 11/9.
O que é também bem claro é que a Casa de Saud entendeu que não pode ser deixada cuidando dos camelos enquanto a caravana da grande integração da Eurásia ganha velocidade. A Rússia tem oleodutos e gasodutos que cruzam praticamente toda a Eurásia. A China está construindo ferrovias que conectam toda a Eurásia. E ainda nem falamos dos projetos especificamente saudita-chineses incorporados à Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE).
Longe vão os dias do rei Abdulaziz e FDR a bordo do USS Quincy no Canal de Suez forjando uma parceira estratégica; os dias de Washington empurrando a Arábia Saudita a aumentar a produção de petróleo, fazer os preços despencar e debilitar a URSS; e os dias da jihad afegã. Agora já não há EUA dependentes do petróleo da Casa de Saud. E o nome do jogo da segurança nos EUA é “a volta do cipó de aroeira jihadista no lombo de quem mandou bater”.
Talvez ainda seja cedo para identificar o “pivô” saudita rumo à Rússia como a mudança do século. Mas não há dúvida de que é movimento que vira o jogo. Moscou está bem perto de se converter no novo xerife na cidade, em virtualmente todas as cidades do Sudoeste Asiático. E chegou até isso nos seus próprios específicos termos, sem precisar recorrer a alguma dialética do Colt [pistola]. MBS quer cooperação energia/defesa? Já encontrou. MBS quer menor cooperação entre Rússia e Irã? Não encontrou nem encontrará tão cedo. OPEP quer preços mais altos para o petróleo? Feito. E quanto aos S-400s? Temos, grátis, para – quase – todos.*****
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