A crise na cadeia de suprimentos nos EUA se agravará? Sim. E a inflação, também

1/11/2021, Moon of Alabama

A essa altura já é óbvio para todos que os EUA enfrentam problemas na cadeia de suprimentos.

A cadeia ‘enxuta’ altamente otimizada de transporte, de produtores para consumidores, entupiu.

É uma das consequências dos dois choques causados pela pandemia nos padrões de consumo. No começo da pandemia, os pedidos caíram drasticamente, logo que as pessoas entraram em lockdown. Um segundo choque veio quando o consumo recuperou-se e subiu a níveis nunca antes alcançados.

O maior consumo não acontece nos serviços, porque restaurantes, por exemplo, continuam fechados. O dinheiro foi, isso sim, para comprar coisas. Coisas produzidas longe dos EUA.

Qualquer sistema ‘enxuto’ de suprimentos sem reservas nem redundâncias quebrará sob tais impulsos. A cadeia de suprimentos tem muitos pontos críticos. Produtores asiáticos precisam de contêineres para embarcar seus bens. Os contêineres têm de chegar aos portos. Tem de haver navios de transporte e capacidade para carregá-los. O porto no local de recebimento tem de ter capacidade para descarregar os contêineres e armazená-los. Tem de haver também caminhões, além de trailers de contêineres. Os bens então vão para centros de distribuição, onde tem de haver capacidade para reembalá-los e mandá-los outra vez para fora. Os contêineres vazios têm de viajar de volta às respectivas origens, para novamente serem carregados.

Todos esses níveis exigem pessoal desejoso de trabalhar e habilitado para o serviço. Se um elemento da cadeia toca o máximo de sua capacidade e entope, outros pontos serão afetados. Enquanto isso, a demanda pelos bens continua forte. Mais bens continuam a chegar, e cada elemento do sistema que ainda tenha alguma reserva começa também a entupir.

A cadeia de suprimento da Ásia para os EUA alcançou esse ponto. Outras cadeias globais de suprimento também estão estressadas por efeitos colaterais da pandemia e também podem entupir completamente.

Um dos principais problemas está nos portos norte-americanos da costa oeste. Mesmo antes da pandemia, já eram os portos menos eficientes do mundo:


Numa revisão de 351 portos de contêineres em todo o mundo, Los Angeles ficou em 328º lugar, abaixo de Dar es Salaam na Tanzânia e Dutch Harbour no Alasca. O porto próximo de Long Beach aparece ainda abaixo, em 333º lugar, abaixo de Nemrut Bay na Turquia e Mombassa no Quênia, dizem os grupos em seu primeiro Índice de Desempenho de Portos de Contêineres, publicado em Maio.

O número total de navios à espera para descarregar, ao largo dos dois portos adjacentes, alcançou o maior número de todos os tempos: 100, na 2ª-feira. As compras feitas por norte-americanos, de bens importados saltou para níveis que a infraestrutura da cadeia de suprimentos dos EUA não consegue absorver, o que provoca atrasos e reclamações furiosas.



Controle governamental, operações 24/7 e automação tornam muito mais eficientes vários portos não norte-americanos.



Executivos de portos do Sul da Califórnia estão insistindo com operadores, importadores, caminhoneiros, ferroviários, estivadores e donos de armazéns para adotarem operações 24/7, numa aposta para aliviar os congestionamentos que empurraram dúzias de navios para áreas offshore e geraram atrasos nas entregas a lojas e centros de distribuição de e-commerce.


Descrevendo os problemas em todos os níveis do lado norte-americanos da cadeia de suprimento e distribuição, Ryan Johnson, caminhoneiro com 20 anos de experiência, explica por que adotar operações 24/7 não ajudará e os problemas se agravarão.

Caminhoneiros têm de dormir, pelo menos vez ou outra. Também têm de ganhar dinheiro. São pagos por carga, não pelo tempo que leva carregar, levar a carga de A até B e descarregar. Se há filas de horas de espera para carregar e descarregar, o trabalho simplesmente se torna não lucrativo:


Assim sendo, quando os portos costeiros começaram a ficar congestionados na primavera passada, devido a impactos do COVID nos negócios em todo o mundo, motoristas começaram a não aparecer. O congestionamento alcançou tal quantidade que, em vez de conseguir fazer três cargas por dia, só conseguiam fazer uma. Tiveram cortes de 2/3 no pagamento e a maioria desses caminhoneiros estão trabalhando 12 horas ou mais, por dia. Ainda que as transportadoras estivessem cobrando taxas mais altas de embarque, por causa da pandemia, nada desse aumento chegava ao salários dos motoristas empregados. Muitos motoristas simplesmente sumiram. Contudo, enquanto diminuía gravemente o número de contêineres descarregados para caminhões, o número de contêineres tirados dos cargueiros não diminuiu. E o quadro só piorou.


Tempo houve em que os EUA contavam com sistema bem regulado de transporte. Mas acabou há muito tempo, quando até os ossos do pré-cadáver foram neoliberalizados.

O sistema não se descongestionará por si, porque os incentivos estão todos mal postos. Quem tem interesse por remover os bloqueios são os compradores e vendedores de fretes. Mas os donos dos contêineres, portos e centros de distribuição e transportadores fretados estão simplesmente aumentando os preços para bens priorizados, sem cuidar de prover mais capacidade. Podem até cobrar multas dos proprietários de contêineres que engarrafam o sistema deles. Recusam-se a pagar mais para seus empregados e motoristas e a contratar mais trabalhadores qualificados.

Será necessária forte iniciativa política, ou muito tempo, para rearranjar e descongestionar o sistema hoje instalado. De iniciativa política não se vê nem sinal… O cara-lá, do governo Biden, responsável por essas questões diz que nada pode fazer:


O secretário de Transportes dos EUA Pete Buttigieg, previu no domingo que questões da cadeia de suprimentos que estão no momento atormentando inúmeras indústrias vão continuar por tanto tempo quanto continue a pandemia de coronavírus.

Confrontado sobre as questões da cadeia de suprimentos por Chris Wallace da Fox News – incluindo o fato de que os engarrafamentos no Porto de Los Angeles só pioraram depois que o porto começou a operar em período 24/7 – Buttigieg só disse que os empresários devem esperar alívio nos problemas só para quando a pandemia terminar, porque os problemas são resultado “direto” do estresse provocado pela vírus sobre o mundo.



“Fundamentalmente, [a solução] cabe aos produtores, embarcadores-transportadores e vendedores de varejo, mas estamos fazendo tudo que podemos para ajudá-los a mover esses bens pela infraestrutura, sempre antiquada” – disse Buttigieg.


Essa atitude de ‘nada a fazer’ de Buttigieg terá consequências políticas. A crise da cadeia de suprimentos perdurará até o próximo verão e próximo outono. Discutindo o artigo de Ryan Johnson, Yves Smith destaca:


A gravidade da crise da cadeia de suprimentos, combina-se com a quase certeza de que o único ator que poderia parcialmente (acentuo a palavra parcialmente) desatar os nós atuais são os Feds. É como garantir que ninguém fará nada, mesmo que compreendessem o modo como se interconectam as partes móveis.

Assim sendo, pode-se apostar com baixo risco de perder que os Democratas sofrerão derrota avassaladora nas eleições de meio de mandato, mesmo que Biden consiga aprovar todas as suas grandes leis (algum estímulo!) e que as mortes pela epidemia não voltem a crescer.

O agravamento das dificuldades de abastecimento, sobretudo de medicamentos e instrumentos médicos, fará o ataque pela imprensa que se viu quando da crise dos reféns no Irã parecer fraco.


A avaliação do trabalho do presidente Joe Biden no cargo já desabou para 42%.

O nó na cadeia de suprimentos levará a aumentos nos preços e terá forte efeito no crescimento da inflação.

Banqueiros dos bancos centrais, que afogaram a economia em excesso de dinheiro, ainda terão de entender que o problema da cadeia de suprimentos é sistêmico e terá consequências de longo prazo:


Os banqueiros dos principais bancos centrais do mundo reconheceram que a inflação, que esse ano aumentou em muitas economias avançadas, pode permanecer elevada por algum tempo – e que, embora ainda esperem que a inflação dissipe-se à medida que se acalmem as interrupções de fornecimento relacionadas à pandemia, estão atentos para garantir que as pressões quentes de preços não se tornem mais permanentes.

Jerome H. Powell, presidente do Federal Reserve, falou na 4ª-feira, em painel do qual participavam Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu; Andrew Bailey, presidente do Banco da Inglaterra; e Haruhiko Kuroda, presidente do Banco do Japão.



“É frustrante reconhecer que vacinar as pessoas e pôr sob controle a [variante] Delta, 18 meses depois, continua a ser a mais importante política econômica que temos” – disse Mr. Powell. “Também é frustrante ver que os engarrafamentos e outros problemas não estão diminuindo — de fato, pelo que se pode ver marginalmente, estão piorando um pouco.

“Vemos a continuação no próximo ano, provavelmente, mantendo a inflação alta por mais tempo do que pensávamos” – disse Mr. Powell.


Powell e seus colegas ainda veem os efeitos sobre a inflação como transitórios e recusam-se a agir contra eles. Mas o engarrafamento na cadeia de suprimento não terá só efeito temporário sobre os preços. É prova provada de que o sistema de transporte dos EUA, na atual configuração, também é ‘enxuto’ demais e barato demais. Carece de infraestrutura modernizada, trabalhadores mais bem pagos, incentivos certos e mais redundâncias. Tudo isso continuará a custar mais caro e a gerar efeitos de longo prazo sobre a inflação.

Em artigo (leitura cobrada) para o Financial Times, o economista Steven Roach recentemente chamou a atenção para o risco de tanta complacência:


Ecos de um período mais antigo e sombrio da história econômica falam cada vez mais alto. Quando avisei, no início de 2020, de uma estagflação no estilo dos anos 70s, minhas preocupações estavam principalmente no lado da oferta. Hoje, um choque global de abastecimento está próximo: os preços da energia e dos alimentos estão em alta, as vias de navegação estão entupidas e a escassez de mão de obra prevalece.

Teoria popular reza que as interrupções de fornecimento e os picos de preços são falhas transitórias relacionadas à pandemia as quais, em última análise, se auto-remendarão. O aumento da inflação no início dos anos 70 também foi pressagiado por um foco em eventos transitórios: o embargo ao petróleo OPEP e os distúrbios climáticos relacionados ao El Niño.



“Isto atraiu [bancos centrais] para uma “armadilha de repetição” – respondendo a surpresas, como a inflação, primeiro mediante afunilamento das compras de ativos, depois por elevar, em passos de bebê, a taxa de juros de referência. No entanto, é provável que a demanda agregada seja muito menos sensível aos ajustes do balanço do banco central do que ao custo real do dinheiro, e que as ações de política monetária tenham longo período de defasagem. Isso é particularmente preocupante para o Fed, que adotou nova abordagem de “metas de inflação média” destinadas a atrasar as respostas de política, para compensar as anteriores subidas da inflação.

As lições? É pouco provável que a inflação atinja rapidamente o pico. O que parece transitório agora vai durar mais do que pensamos. E será necessário muito mais aperto monetário do que os mercados financeiros esperam, para evitar a estagflação 2.0.”


Roach não é o único a alertar para a estagnação econômica combinada com alta inflação. Em sua fala, na reunião, semana passada do G20, o presidente Vladimir Putin da Rússia chamou a atenção para esse importante ponto [trechos traduzidos aqui]. Enfatizou que as mudanças necessárias nas políticas monetárias têm de vir acompanhadas por medidas sociais:


Ano passado, as autoridades econômicas dos países membros do G20 e de muitos outros países decidiram aumentar significativamente seus déficits em orçamento, no contexto da profunda crise causada pela pandemia, o que permitiu lançar a recuperação econômica global. Mas essa medida extraordinária acompanhada de compras de títulos pelos bancos centrais teria de ser limitada no tempo. De fato, já dissemos isso aqui, antes.




O estímulo excessivo resultou na falta geral de estabilidade, no aumento dos preços de ativos financeiros e bens em certos mercados, como energia, alimentos, etc. Mais uma vez, déficits significativos no orçamento das economias desenvolvidas são a principal causa desses desenvolvimentos. Com a persistência desses déficits, há um risco de alta inflação global a médio prazo, o que não só aumenta o risco de menor atividade comercial, mas reforça e exacerba a desigualdade que também foi mencionada hoje.

Eis por que é importante evitar o agravamento da estagflação e, em vez disso, fazer o que pode ser feito para normalizar as políticas orçamentárias e monetárias, melhorar a qualidade da gestão da demanda na economia e atualizar as prioridades econômicas – e principalmente dar prioridade à superação da desigualdade e ao aumento do bem-estar público.


Impostos mais altos para os top 1%, que lucram mais durante a pandemia, podem corrigir os déficits orçamentários. Os bancos centrais podem parar de comprar títulos que financiaram os déficits e encharcaram com dinheiro, os ricos. Podem elevar as taxas de juros que matam de fome a inflação, antes que ela aumente ainda mais. Uma parte do dinheiro adicional que os estados recebem deve ser distribuída para as pessoas de menor renda, que são as mais afetadas pelo aumento dos preços básicos.

Embora soe como plano razoável, só uma coisa é certa: esse plano não será posto em prática.

A atual ausência de qualquer ação governamental para consertar os furos e tropeços na cadeia de suprimentos mostra que as coisas só mudarão depois de quebradeira total. Ainda não chegamos lá, mas já não há nem sombra de dúvidas de que acontecerá.

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