A lógica dialética aplicada aos crimes contra Gaza

Por Alberto Bradanini em 19 de outubro de 2023

Diante das tragédias em curso no Oriente Médio, os povos devem impor a seus governos a observância ao critério filosófico, mesmo antes do político, da lógica dialética: a crítica – Mao Zedong também afirmou – deve ser feita antes, e não, confortavelmente, após os eventos terem ocorrido[1].

Em uma breve reflexão, Jonathan Cook[2], um ousado analista britânico[3]  , sobre a Palestina, uma terra onde passou vinte anos, lança um olhar crítico sobre o que está acontecendo. Deve-se notar imediatamente, no entanto, que o apoio irrefletido do Ocidente à política de Israel e à destruição de Gaza e de seus habitantes constitui o resultado final de fatores estruturais que merecem atenção preliminar.

Que fique claro que na análise que se segue a religião não tem espaço algum. A tragédia sofrida pelo povo judeu no século passado pelas mãos dos nazistas alemães (e não só) permanecerá para sempre gravada em nossa memória e em nossos corações. Nem a noção de etnia judaica, também uma manipulação vergonhosa dos mestres de um racismo que, esperamos, seja para sempre relegado ao lixo da história. Israelenses e Israel designam, portanto, cidadãos e o estado habitado por eles, que persegue fins políticos que às vezes são aceitáveis, às vezes não. O exposto acima é trivial, além de óbvio, mas nunca se sabe. Há muitos episódios de pessoas acusadas de antissemitismo (que deveria ser antijudaísmo), por terem expressado críticas políticas ao Estado de Israel.

Ora bem, é uma evidência importante em sua papel central, que Israel possa fazer o que quiser, sem ser incomodado pela chamada comunidade internacional, porque ao seu lado estão alinhados, sempre e em todas as circunstâncias, os Estados Unidos, cujos interesses imperiais no Oriente Médio viajam paralelamente aos de Israel, ou melhor, porque, como tais, estão inseridos no establishment americano pelos poderosos lobbies israelenses, com o AIPAC[4] na primeira fila (ver The Israel Lobby and American foreign policy  J. Mearsheimer and S. Walt, Ed. FSG). Nenhum candidato ao Senado, ao Congresso ou à Casa Branca pode esperar ser eleito tendo contra os lobbies israelenses que nos Estados Unidos controlam uma parte significativa da informação pública[5].

Em termos de psicologia política, a liberdade de ação permitida a Israel, mesmo contra o direito e a moral internacional, é filha da ontologia do complexo de culpa pelo sofrimento infligido ao povo judeu no século passado pelos nazistas alemães[6], também ocidentais.

Além disso, uma correspondência oculta une a gênese autopercebida das duas nações, ambas imbuídas da convicção de gozar de um status superior, escolhidas por suas respectivas divindades, a primeira (a única nação indispensável do mundo, B. Clinton, 1999) para governar um mundo inquieto, a segunda (o povo escolhido, o melhor disponível na face da terra) por alguma atribuição misteriosa, enquanto todas as outras nações, também presumivelmente criadas pelo mesmo deus, não mereceriam a mesma consideração.

Em sua reflexão, Cook argumenta que o objetivo da agressão reativa contra mulheres, idosos e crianças em Gaza (esse raciocínio não se aplica àqueles que consideram que os palestinos da Faixa de Gaza são todos terroristas) é expulsá-los e roubar mais terras deles. Em seu livro “Desaparecimento da Palestina”, ele percorre os eventos que levaram à colonização do território, as técnicas de dispersão, aprisionamento e empobrecimento sistemático, como ferramentas para a gradual e sistemática demolição da nação palestina. A Cisjordânia e Gaza foram transformadas em laboratórios para testar a infraestrutura de confinamento, criando uma indústria de “defesa” lucrativa por meio de tecnologias pioneiras de controle de multidões, vigilância, punição coletiva e guerra urbana, toques de recolher sofisticados, postos de controle, muros, permissões e apropriação indevida de terras, todos com o mesmo objetivo, a obliteração da Palestina.

Esse caminho se acelerou em 2007, quando, após a vitória do Hamas, os 2,3 milhões de habitantes de Gaza foram cercados por arame farpado em uma prisão inexpugnável, uma terra escravizada a experimentos inovadores, contenção física, restrições, recrutamento de informantes, bombardeios, uso de foguetes interceptores, sensores eletrônicos, sistemas de vigilância, drones, reconhecimento facial, canhões automatizados etc.

Hoje, Israel paga o preço de uma política de poder míope, porque os prisioneiros não se resignaram – continua Cook – colocando em jogo a única coisa que lhes resta, a vida, e eles se tornam terroristas. É assim que, pelo menos por alguns dias, os palestinos conseguem contornar a infraestrutura de confinamento intransponível, usando uma escavadeira enferrujada e alguns deltaplanos, acompanhados por um (re)sentimento forte e previsível de “não temos nada a perder”. Para voltar a ser o poder do passado, Israel agora precisa entrar em Gaza e destruir o que encontrar.

O segundo ponto de reflexão de J. Cook diz respeito ao direito internacional, ou melhor, ao pouco dele que conseguiu ser construído no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, para evitar a repetição das atrocidades nazistas (-japonesas) e ocidentais, estas últimas muitas vezes ocultas, bombardeios de civis (só para citar alguns, Dresden, Stuttgart, Tóquio…) e, claro, as bombas atômicas no Japão.

Uma das pedras angulares das Convenções de Genebra – que tratam das vítimas da guerra e dos aspectos humanitários dos conflitos – é a proibição da punição coletiva e, portanto, das represálias contra a população civil, que não é responsável pelos crimes de governos, exércitos ou terroristas.

Misteriosamente do ponto de vista ético, mas bem claras do ponto de vista das relações de poder, as nações europeias, para não mencionar aquela instituição embaraçosa que responde ao nome da União Europeia, estendem um véu desprezível e lamentável sobre tudo isso, embora hoje Gaza represente a violação mais flagrante do direito internacional em todo o planeta Terra.

Mesmo em tempos normais, lembra Cook, aos habitantes de Gaza (um milhão deles menores de idade) foram negadas as liberdades mais básicas, o direito de entrar e sair da Faixa, cuidados de saúde, medicamentos e o uso de equipamentos médicos, água potável e eletricidade, durante grande parte do dia. Agora, com o exército israelense às portas, as condições de estreiteza e o medo de morrer tornam o sofrimento dessas pessoas inimaginável.

O Hamas cometeu atos de terrorismo contra cidadãos de Israel, culpados de desapropriar palestinos de sua terra natal e aprisioná-los em um gueto superlotado. Israel agora pune o povo de Gaza, em vez dos terroristas. Essa conduta, cujo nome é vingança, é desprovida de lógica moral e ilegítima sob o direito internacional. Para Israel, no entanto, como para o Tio Sam, seu protetor imaculado, o respeito à lei não é uma obrigação, mas apenas uma escolha, às vezes conveniente, outras vezes, por 16 anos, não.

Os militares israelenses estão empenhados em não fazer distinção entre militantes inimigos e civis. O primeiro-ministro israelense Netanyahu disse ao povo de Gaza para sair, mas não conseguiu dizer onde essas vidas humanas miseráveis podem encontrar proteção contra bombas.

J. Cook lembra que já em 2009 (na época de outra guerra Gaza-Israel) Orna Ben-Naftali, na época reitora israelense da escola de direito de Tel Aviv, havia dito ao jornal Haaretz: “distorcendo a lei, edifícios civis e homens adultos em Gaza são considerados alvos legítimos”. Também na mesma época, David Reisner, seu antecessor, explicou a estratégia israelense ao Haaretz com estas palavras: “estamos testemunhando um processo hipócrita de revisão do direito internacional. Se uma ação ilegítima é repetida por um tempo suficientemente longo e tolerada por vários países, o mundo acaba aceitando-a e ela se torna admissível, mesmo que ilegítima sob o direito internacional”.

Uma prática que havia começado ainda mais cedo. Referindo-se ao ataque israelense de 1981 que destruiu o suposto reator nuclear Osiraq do Iraque, um ato de guerra condenado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, Reisner diz: “Israel cometeu um crime. Hoje, porém, todos afirmam que se tratava de legítima defesa preventiva, como se o direito internacional progredisse não por meio de um pacto preciso entre as nações, mas em decorrência de sua constante violação”. Ele acrescenta que Israel convenceu o governo dos EUA a aceitar uma aplicação elástica das obrigações legais internacionais de Israel para com os palestinos, o que também seria valioso para os EUA para justificar a invasão do Afeganistão e do Iraque.

Novamente no raciocínio de Cook, Israel teria trabalhado a evolução do direito internacional também em outros aspectos, introduzindo o conceito de aviso prévio: com uma notificação prévia de alguns minutos, aliás das mais diferentes formas, a destruição de um edifício ou de um bairro torna-se juridicamente viável, e civis, idosos, mulheres e crianças, incluindo os deficientes, são transformados em alvos legítimos, culpados de não terem se afastado a tempo do lugar destinado a ser destruído. Uma prática, conclui Cook sobre esse aspecto, que mais cedo ou mais tarde a Comunidade Internacional acaba digerindo.

O já mencionado artigo do Haaretz de 2009 (aquele com a entrevista com Orna Ben-Naftali) chamava Yoav Gallant, na época o comandante militar encarregado de Gaza, de cowboy que não tinha tempo para sutilezas legais. Gallant é agora Ministro da Defesa, encarregado de implementar o cerco completo de Gaza, ou seja, sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível, tudo fechado.” Ele nega qualquer diferenciação entre o Hamas e a população palestina, que ele define como animais humanos. Esta é a mesma linguagem usada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial em relação aos russos (chamados Untermenschen, sub-humanos/menos que humanos). A regressão da civilização jurídica ocidental está diante dos olhos de todos.

Não só isso, uma vez que na vanguarda do direito internacional o critério de punição coletiva implementado em Gaza chega muito perto da definição legal de genocídio, tanto na forma quanto na substância. Mesmo o critério legal de moderação e proporcionalidade foi apagado pelos governos ocidentais que apoiam “o direito de Israel de se defender” (que ninguém questiona), sem quaisquer restrições.

No Reino Unido, por exemplo, deixando de fora o governo do qual nada de bom pode vir, até mesmo o líder trabalhista e provável próximo primeiro-ministro, Keir Starmer, argumentou que o cerco de Gaza (um crime contra a humanidade!) deve ser entendido como “o direito de Israel de se defender”. Starmer, conhecido como defensor dos direitos humanos – aproveitando as implicações políticas para sua carreira e lembrando o destino de seu antecessor, Jeremy Corbyn, acusado de antissemitismo por lobbies pró-Israel e forçado a renunciar – marginalizou a ética e a verdade e culpou o Hamas por sabotar o “processo de paz”, que até mesmo as pedras sabem ter sido enterrado por Israel há muitos anos. Aqueles no poder podem declarar qualquer coisa, sem prestar contas a ninguém.

A força aérea israelense já lançou (a partir de 16 de outubro de 2023) 6.000 bombas em Gaza. Alguns grupos de direitos humanos acusam Israel de usar armas de fósforo branco, um crime de guerra específico quando usado em áreas urbanas. A Defence for Children International diz que mais de 500 crianças palestinas já foram mortas. Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Ocupados, afirmou corajosamente que Von Der Leyen aplica os princípios do direito internacional como se fosse uma gangorra, tendo em mente acima de tudo, acrescentamos, sua ambição de tomar o lugar do atual do Secretário-Geral da OTAN, J. Stoltenberg.

Há doze meses, a presidente da Comissão qualificou os ataques russos a infraestruturas civis na Ucrânia como crimes de guerra[7]impedir homens, mulheres e crianças de terem acesso a água, eletricidade e aquecimento é um ato de terror. Onde é que a coerência foi parar, se agora – salienta Albanese – a mesma Von der Leyen ignora os bombardeamentos israelitas em Gaza que produzem o mesmo resultado?

Enquanto isso, a França proíbe manifestações contra o bombardeio de Gaza, porque – nas palavras do ministro francês da Justiça, Éric Dupond-Moretti – a expressão de solidariedade com os palestinos poderia ofender as comunidades judaicas e, portanto, deve ser considerada incitação ao ódio.

O presidente Joe Biden enviou deliberadamente armas e financiamento, enviando o porta-aviões Eisenhower para o Mediterrâneo, um aviso aos vizinhos de Israel para não se intrometerem, na véspera da invasão de Gaza. Por sua vez, o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Gutteres, limitou-se a emitir um grito tímido sobre a necessidade de Israel respeitar também o direito internacional.

O apoio sem reservas a Israel pelos governos ocidentais é, como você pode imaginar, o preço que eles são forçados a pagar para sobreviver, porque o aliado imperial não esquece o nome daqueles que desobedecem. Quanto à Itália, relegada a um status de vassalagem humilhante, é melhor calar. Dentro do normal, então.

Para Israel, no entanto, o jogo, é claro, não termina aqui. Depois de enfrentar a atual crise, de forma trágica ou ainda mais trágica, ele terá que se manter vigilante, em uma espiral interminável de ações e reações. O que restará do Hamas no final desta batalha, seus filhos, seus seguidores ou seus sucessores retomarão a luta, prontos para se sacrificarem para devolver à Palestina a esperança de uma pátria. Se não houver paz para a Palestina, também não haverá paz para Israel.

[1] https://le-citazioni.it/autori/mao-tse-tung/

[2] Jonathan Cook é um jornalista britânico premiado. Ele viveu em Nazaré, Israel, por 20 anos. Retornou ao Reino Unido em 2021. É autor de três livros sobre o conflito israelo-palestiniano, Blood and Religion: Blood and Religion: The Unmasking of the Jewish and Democratic State (2006), Israel and the Clash of Civilizations: Iraq, Iran and the Plan to Remake the Middle East (2008), Disappearing Palestine: Israel’s Experiments in Human Despair (2008).

[3] https://www.jonathan-cook.net/2023-10-13/gaza-britain-israel-crimes/

[4] Comitê de Assuntos Públicos Americanos de Israel (AIPAC)

[5] O lobby israelense e a política externa americana (cit.)

[6] Em 7 de outubro de 2023, o chanceler alemão Olaf Scholz, no Bundestag, declarou: “Nossa história, nossa responsabilidade decorrente do Holocausto, nos impõe o dever perene de defender a existência e a segurança do Estado de Israel, mesmo que agora esteja sob ataque do Hamas e não dos nazistas. E a segurança do Estado judeu é a razão de ser do Estado alemão. O único lugar para estar agora é ao lado de Israel.”

[7] https://www.vaticannews.va/it/mondo/news/2022-10/von-der-leyen-attacchi-russi-ucraina-crimini-guerra.html

Alberto Bradanini é ex-diplomata. Entre os muitos cargos que ocupou, também foi embaixador da Itália em Teerã (2008-2012) e em Pequim (2013-2015). Atualmente é presidente do Centro de Estudos Contemporâneos sobre a China.


Fonte: https://www.lantidiplomatico.it/dettnews-alberto_bradanini__la_logica_dialettica_applicata_ai_crimini_contro_gaza/39602_51278/


One Comment

  1. Gilmar said:

    Recorte:
    “Há doze meses, a presidente da Comissão qualificou os ataques russos a infraestruturas civis na Ucrânia como crimes de guerra[7]: impedir homens, mulheres e crianças de terem acesso a água, eletricidade e aquecimento é um ato de terror. Onde é que a coerência foi parar, se agora – salienta Albanese – a mesma Von der Leyen ignora os bombardeamentos israelitas em Gaza que produzem o mesmo resultado? ”

    Alguns trechos do texto mereciam uma critica do Norman Finkelstein.

    “American radical, the trials of Norman Finkelstein” 2009
    https://www.youtube.com/watch?v=9R4KV9wAnsU

    20 October, 2023
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