A nova política externa da Rússia: Enfrentando o “inimigo” americano em uma nova ordem mundial

Por Mohamad Hasan Sweidan em 13 de abril de 2023

O recém-lançado Conceito de Política Externa de Moscou revela uma mudança significativa no sentido de confrontar os EUA, priorizando alianças com países não ocidentais e posicionando a Rússia como um pilar do mundo multipolar emergente.

Crédito da imagem: The Cradle

Os EUA são descritos como o “principal inspirador, organizador e executor” da política agressiva antirrussa no mundo, e a principal fonte de risco para a segurança da Federação Russa e da paz internacional, de acordo com a nova declaração de política externa da Rússia.

Em 31 de março, o presidente Vladimir Putin assinou o Decreto sobre o Conceito de Política Externa da Rússia, delineando a visão de mundo oficial do país, interesses e objetivos. O conceito de 2023, em contraste com versões anteriores publicadas em 1993, 2000, 2008, 2013 e 2016, é mais hostil em relação ao Ocidente e contém referências que remontam à era da Guerra Fria.

O choque de civilizações

Na virada do século 21, políticos e acadêmicos russos começaram a usar o termo “mundo russo” ou “Russkiy Mir” para se referir aos laços culturais, históricos e linguísticos com o mundo de língua russa e para promover e preservar a cultura e os valores russos.

No entanto, em um contexto geopolítico global, essa ideia provocou alguma controvérsia. Enquanto alguns o veem como uma tentativa de proteger a língua e a cultura russas, outros o veem como uma ferramenta para exercer influência política e controle sobre países vizinhos com populações significativas de língua russa, como Ucrânia, Bielorrússia e os estados bálticos – uma ferramenta de poder suave na política externa da Rússia, por assim dizer.

No entanto, o Conceito de Política Externa da Rússia de 2023 é o primeiro documento oficial do país a incorporar o termo “mundo russo”. Desde o início da guerra na Ucrânia, as autoridades russas, e particularmente o presidente Putin, têm se concentrado cada vez mais em invocar valores civilizacionais, culturais e ideológicos comuns, enquadrando a batalha como uma entre o liberalismo e outras civilizações.

As elites russas estão convencidas de que a sobrevivência de seu país como uma civilização única e independente requer uma mudança geopolítica longe do mundo unipolar representado pela supremacia dos EUA.

O novo conceito enfatiza fatores culturais e ideológicos, indicando que o confronto entre a Rússia e o Ocidente se tornará mais ideológico, particularmente porque a rejeição do neoliberalismo se tornou uma base da política externa russa.

Espera-se que esse confronto tenha ramificações globais, inclusive em regiões como a Ásia Ocidental, onde pode alimentar o nacionalismo – que aumentou orgulhosamente em estados regionais como a Arábia Saudita – o que, por sua vez, pode exacerbar ainda mais o conflito.

De volta à retórica da Guerra Fria

Desde o colapso da União Soviética, os conceitos de política externa russa enfatizaram a “cooperação” com o Ocidente, particularmente os EUA, no que diz respeito a questões de interesse para Moscou – como a expansão da OTAN – conforme descrito na doutrina militar russa de 2014.

No entanto, o novo conceito de política externa marca um afastamento dessa abordagem, remontando a frases da era da Guerra Fria, como “coexistência pacífica”, “paridade estratégica” e, mais notavelmente, a busca de um “equilíbrio de interesses” com os EUA com base em “responsabilidade especial compartilhada pela estabilidade estratégica e segurança internacional”.

O Conceito também reintroduz uma divisão do mundo em dois campos: os estados neocoloniais e seus aliados que buscam construir uma ordem mundial “baseada em suas próprias regras” e “países que se rebelam contra a ordem mundial atual”.

A Rússia procura posicionar-se como líder entre os países que se opõem à hegemonia americana e está trabalhando para “eliminar o sistema colonial no século XX e enfrentar o novo colonialismo ocidental”.

Semelhante ao movimento não-alinhado de estados que emergiu durante a Guerra Fria, que se recusou a se alinhar com qualquer uma das partes à custa de outra, há uma tendência crescente de estados oscilantes, especialmente na Ásia Ocidental, que estão reavaliando suas relações com as grandes potências e alavancando a concorrência entre eles para perseguir seus próprios objetivos.

EUA: o principal inimigo da Rússia

A Rússia designou os EUA como o principal motivador de políticas agressivas contra ele. Em conceitos anteriores de política externa, Moscou adotou um discurso diplomático cauteloso em sua abordagem das relações com Washington, concentrando-se no aprofundamento da cooperação e usando termos como “políticas americanas hostis” ou “expressões de preocupação”.

No entanto, mais de um ano após o início da guerra russo-ocidental na Ucrânia, Moscou já declarou os EUA como seu inimigo número um e a maior ameaça aos seus interesses, em casa e no exterior.  Portanto, tornou-se uma prioridade “eliminar os restos da hegemonia dos Estados Unidos e de outros países hostis nos assuntos globais”.

No contexto de confrontar o que considera uma ofensiva ocidental, a Rússia anunciou sua intenção de construir uma aliança não ocidental com os países do Sul Global para enfrentar as ambições neocoloniais. Isso pode incluir o uso de todos os meios disponíveis, incluindo os militares, e apoio aos países que buscam garantir sua soberania longe da hegemonia dos EUA.

De particular preocupação para Washington, é a declaração de Moscou de sua vontade de apoiar:

“Países latino-americanos interessados em garantir soberania e independência longe dos Estados Unidos e seus aliados, incluindo o fortalecimento e expansão da segurança, cooperação militar e técnico-militar”. 

Isso pode ser visto como uma declaração de intenção de escalar as atividades no “quintal” dos EUA, se os motivos apropriados estiverem disponíveis.

A Ásia Ocidental na política externa russa

No oeste da Ásia e no norte da África, Moscou expressou sua intenção de trabalhar na construção de um “sistema de segurança regional abrangente e sustentável baseado na combinação dos países da região”. Isso vem em resposta aos esforços dos EUA para a rede de segurança regional mais ampla, fortalecendo os laços militares e técnicos com seus aliados regionais.

No ano passado, na Cúpula do CCG+3 em Jeddah, na Arábia Saudita, o presidente dos EUA, Joe Biden, reafirmou essa visão afirmando:

“O compromisso dos Estados Unidos em promover uma arquitetura de defesa aérea e antimísseis mais integrada e regionalmente em rede e combater a proliferação de sistemas aéreos não tripulados e mísseis para atores não estatais que ameaçam a paz e a segurança da região”. 

A Rússia pretende impedir que Washington estabeleça unilateralmente um sistema de segurança na região que vá contra os interesses de Moscou e de seus aliados.

A Rússia e o “Mundo Islâmico”

Em um afastamento notável das versões anteriores, o Conceito 2023 também inclui uma referência à “proteção dos cristãos no Oriente Médio [Ásia Ocidental]”. Isso é atribuído à prevalência do discurso conservador na Rússia e às preocupações com o ataque ocidental a tudo relacionado aos russos, incluindo a Igreja Ortodoxa Oriental. Esse posicionamento apresenta a Rússia como defensora de todos aqueles que compartilham suas ideias, visões e crenças.

Além disso, o conceito substitui o termo arcaico “Oriente Médio” pelo “mundo islâmico” pela primeira vez, refletindo a ênfase de Moscou no pluralismo cultural como pedra angular do sistema multipolar.

O conceito prioriza o desenvolvimento de plena cooperação e confiança com o Irã, seguido por fornecer apoio abrangente à Síria e aprofundar parcerias mutuamente benéficas com a Turquia, Arábia Saudita, Egito e outros estados-membros da Organização de Cooperação Islâmica (OIC). Notavelmente, os Emirados Árabes Unidos não são mencionados separadamente no Conceito.

Moscou também priorizou apoiar seus aliados e parceiros na garantia de defesa e segurança – inclusive em países africanos – anunciando a prontidão da Rússia para apoiá-los em termos de segurança, militar e tecnologia.

Isso marca uma mudança notável em relação ao documento de 2016 da Rússia, onde a África foi mencionada em apenas um parágrafo. Em vez disso, o Conceito 2023 se concentra na África como um “centro distinto e influente do desenvolvimento global” que está ameaçado pelo Ocidente e sua “política neocolonial”.

Destino manifesto da Rússia

O novo conceito também faz referências claras ao hard power [NT: em português também potência coercitiva ou poder duro], indicando que a política externa russa dependerá fortemente do fator de poder, que é visto como inevitável no contexto de uma concorrência global feroz.

Em seu livro “The Clash of Civilizations”, o falecido cientista político americano Samuel Huntington argumentou que as diferenças culturais e religiosas seriam a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria. Notavelmente, o famoso filósofo russo Ivan Ilyin acreditava que a missão da Rússia é proteger a civilização e o “bem”, produzindo um grande líder que salvará a Rússia e derrotará o mal. Parece que Putin se vê como um líder destinado a proteger a civilização russa.

O Conceito de Política Externa da Rússia de 2023 é o primeiro documento oficial que estabelece a direção geral do estado emitido após a guerra na Ucrânia. Ele contém uma declaração clara de que os EUA são o inimigo e que a Rússia pretende ser um dos pilares da ordem mundial multipolar em desenvolvimento. Hoje, não há mais que se fazer rodeios: Moscou está disposta a usar todos os meios disponíveis para enfrentar o inimigo e trabalhar para alcançar seus objetivos.


Fonte: https://thecradle.co/article-view/23630


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