As Novas Armas da Rússia (5): Implicações para o Brasil

por Ruben Bauer Naveira

Este é o quinto e último artigo da série “As Novas Armas da Rússia”, que busca apresentar ao público brasileiro a nova realidade mundial inaugurada pelo discurso do presidente da Rússia Vladimir Putin no dia primeiro de março, o qual marca uma ruptura histórica de consequências imensuráveis para todo o mundo inclusive o Brasil: os Estados Unidos já não detêm mais a supremacia militar no planeta, e os seus dias de superpotência estão contados.

Esta série é também composta pelos seguintes artigos:

– As Novas Armas da Rússia (1): O discurso histórico de Putin (transcrição do discurso)

– As Novas Armas da Rússia (2): Resumo das armas(compilação pela equipe do site SouthFront.org)

– As Novas Armas da Rússia (3): Implicações militares (análise por Andrei Martyanov)

– As Novas Armas da Rússia (4): Implicações políticas (análise por The Saker)

As Novas Armas da Rússia (5): Implicações para o Brasil

por Ruben Bauer Naveira

Qual seria o impacto do anúncio de Putin das novas armas da Rússia sobre o Brasil?

Esse impacto será grande, uma vez que o nosso país se encontra, mais do que nunca, atrelado aos Estados Unidos.

Ao contrário dos golpes de 1964/1969, quando os militares tiveram um projeto para governar o Brasil, o golpe de 2016 pode ser descrito como anômico (um caos). O “projeto” dos golpistas pode ser reduzido a duas premissas:

– Se manter no poder, evitando a qualquer custo que a esquerda volte; e

– Cada grupo que se vire como puder, para fazer valer os seus interesses.

Afora isso, é notável a identificação dos golpistas para com os interesses norte-americanos:

– Foi decepado um dos cinco ramos dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), enfraquecendo essa aliança alternativa ao capitalismo hegemônico encabeçado pelos Estados Unidos;

– Foi abortado um projeto de soberania para o Brasil (lembrando que a América Latina foi sempre um “quintal” para os Estados Unidos, com países desprovidos de verdadeira soberania), que era para ter sido alcançado por meio das riquezas do pré-sal, com desenvolvimento industrial robusto, evolução das finanças públicas, projeção geopolítica do país e educação da população com base nos royalties. Em vez de tudo isso, as riquezas do pré-sal vão sendo entregues a preço irrisório às grandes corporações multinacionais do petróleo;

– Outros setores estratégicos da economia (empreiteiras, carnes etc.), até então capazes de competir internacionalmente (como a Embraer, que está sendo repassada à Boeing), vão sendo desmantelados;

– Projetos estratégicos para as Forças Armadas vão sendo ou inviabilizados (submarino nuclear) ou repassados ao controle americano (base de Alcântara). O exagero da pena de 43 anos de prisão a que foi submetido o almirante Othon Pinheiro, pai do programa nuclear militar brasileiro, traz a marca da ingerência americana, para que “sirva de exemplo” ao restante do generalato;

– Privatização selvagem dos ativos públicos, a cartilha neoliberal seguida ao pé da letra;

– Recursos naturais afora o petróleo, como a água doce (aquíferos Guarani e Alter do Chão) e minerais estratégicos, são ofertados à exploração estrangeira;

– Há uma identificação cultural profunda da classe dominante brasileira (me recuso a chamar essa cambada de “elite”) para com os Estados Unidos. Essa gente vai na adolescência a Orlando, na fase adulta a Miami e na maturidade a Nova York ou à Califórnia, imbuída de um fervor comparável ao de um muçulmano que vai à Meca;

– Juízes e procuradores à frente da chamada Operação Lava-Jato tiveram parte significativa da sua formação acadêmica de pós-graduação bancada por instituições do governo americano, com vários deles acabando cooptados pelas agências de inteligência dos EUA para que viessem a atuar, no âmbito do judiciário brasileiro, como agentes dos americanos.

Fato é que os golpistas de 2016 se encontram umbilicalmente atados aos Estados Unidos. Se a longevidade dos Estados Unidos favorece a longevidade do golpe, uma derrocada dos Estados Unidos significará fatalmente uma derrocada do golpe.

Os EUA em crise, e sem saída

Os Estados Unidos se encontram em grave crise existencial (e isso mesmo antes da eleição de Donald Trump). Sua economia foi tornada dependente de um estado de guerra permanente, algo que evidentemente desagrada os países atacados, mas desagrada também países que dependem da paz no seu entorno para se desenvolverem, como Rússia e China.

Além disso, o nível de descolamento em relação aos fundamentos da economia real em que se encontram hoje as instituições financeiras americanas está em situação mais crítica do que estava às vésperas da grande crise de 2008.

Como se não bastasse, a dívida multitrilionária dos Estados Unidos (em boa parte devida às guerras) é simplesmente impagável, e depende da emissão contínua de moeda para continuar a ser rolada, o que por sua vez depende do resto do mundo necessitar de dólares, o que por sua vez depende do comércio internacional no planeta continuar a ser lastreado nesta moeda. Eis que China e Rússia desembarcam do dólar, especialmente no que diz respeito à mercadoria à qual o dólar é mais sensível – o petróleo –, movimento este que é seguido por outros países expressivos nesse mercado, como Venezuela e Irã.

A economia americana se tornou uma bomba-relógio, e mais cedo ou mais tarde ela explodirá.

Quando o Iraque de Saddam Hussein e a Líbia de Muammar Gaddafi pararam de aceitar dólares pelo seu petróleo, o céu desabou (literalmente) sobre as suas cabeças. Mas Rússia e China são potências nucleares. Os EUA simplesmente não dispõem de meios para impedir que elas desembarquem do dólar – a menos que…

Armando o bote do first strike

Se você for atirar em um urso, procure matá-lo; se você apenas o ferir, é ele quem poderá matar você.

(provérbio russo)

De forma crua, a manutenção do status quo dos Estados Unidos (leia-se: a manutenção da “ordem mundial”) requer a subjugação de Rússia e China. Isso é algo que, a princípio, deveria poder ser alcançado pela aplicação de soft power (tal como feito no Brasil por meio do golpe de 2016). Na Rússia, isso chegou a ser obtido durante a década de 1990, tendo sido perdido não apenas pela chegada ao poder do grupo encabeçado por Putin (do qual faz parte gente sagaz como Vladislav Surkov), mas principalmente pela acomodação e displicência americanas (postura que entre os futebolistas brasileiros é conhecida como “já ganhou”).

Para os americanos, a ficha de que seu soft power fracassara na Rússia caiu definitivamente em 2008, diante da altivez dos russos no episódio de confrontação militar com a Geórgia, uma ex-república soviética convertida a aliada dos EUA. Uma vez não sendo mais exequível a dominação soft, restava somente o recurso ao hard power (guerra). Desde então, o garrote americano em torno da Rússia vem apertando, com os americanos se preparando para estar em condições de lançar um ataque nuclear do tipo first strike (primeiro golpe), supostamente o único capaz de levar à vitória em uma guerra nuclear.

first strike consiste em um ataque de surpresa maciço, sem qualquer indicação prévia, que leve ao extermínio da liderança do inimigo e à destruição fulminante (em questão de minutos) do seu arsenal nuclear, juntamente com os seus centros de comando e controle.

Para um first strike contra a Rússia são inúteis as centenas de mísseis Minuteman nos silos subterrâneos de Montana, North Dakota e Wyoming, porque os russos detectariam o seu lançamento em tempo para reagir. O mais poderoso componente da tríade nuclear americana (mísseis lançados a partir de terra, mar e ar) para um first strike são os mísseis Trident nos submarinos da classe Ohio que circundam as águas russas (atingem Moscou em quinze minutos, tempo que para um first strike ainda pode ser considerado longo), mas os Trident são de todo modo em quantidade insuficiente para privar os russos de qualquer chance de retaliação – o objetivo final do first strike.

Os americanos contam também com os mísseis de cruzeiro Tomahawk que são bem mais difíceis de detectar, mas cujo alcance é limitado a cerca de dois mil quilômetros, e que assim precisariam ser posicionados juntos às fronteiras da Rússia (atingiriam Moscou em menos de dez minutos). Acontece que isso não tem como ser feito em segredo, e poderia acabar forçando os russos a atacar primeiro, antes de serem atacados.

A solução que os americanos encontraram foi instalar um escudo antimísseis (ABM) “contra o Irã”, nas bases da OTAN de Deveselu na Romênia (ABM inaugurado em 2016) e Redzikowo na Polônia (ABM a ser inaugurado agora em 2018). Acontece que os lançadores dos ABM, que são do modelo Mk-41, podem rapidamente ser convertidos (em questão de minutos) em lançadores de Tomahawks. O “escudo antimísseis contra o Irã” não passa assim de um pretexto na preparação para o first strike – algo que Moscou percebe claramente. Aquilo que os americanos seguramente conseguiram foi dar provas aos russos de que estão se preparando para atacá-los.

Então, no dia 26 de abril de 2017, o Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Rússia, general Viktor Poznihir, declarou ter o comando militar russo concluído que os Estados Unidos preparam um ataque first strike contra a Rússia.

O que seria de se esperar? Que alguma alta autoridade americana se dirigisse ao presidente Putin, publicamente, procurando desmentir essa conclusão, ou ao menos chamando os russos para sentar e conversar a respeito de uma situação de tamanha gravidade. Mas, o que de fato aconteceu? Nada. Silêncio.

Analistas militares estimam que levaria ainda alguns anos para os americanos poderem dispor de mísseis nas fronteiras da Rússia em quantidade suficiente para um first strike bem-sucedido. Não obstante isso, os russos estão desde logo esbravejando.

O fato é que jamais (até agora) foi viável um first strike, seja pelos Estados Unidos seja pela Rússia. Ambos contam com uma quantidade de ogivas que em muito excede ao que seria preciso para destruir toda a Terra mais de uma vez, e assim sempre lhes sobraria capacidade de retaliação significativa, por mais extenso que tenha sido o first strike sofrido.

O que nos conduz ao anúncio, por Putin, das novas armas russas.

Os possíveis efeitos do anúncio de Putin: guerra à vista?

Há cinquenta anos atrás, as ruas de Leningrado me ensinaram uma coisa: se uma luta for inevitável, acerte o primeiro golpe.

(Vladimir Putin)

O que Putin quis – e conseguiu – com o seu anúncio das novas armas foi deixar absolutamente claro aos americanos que eles não serão capazes de efetuar um first strike, nem agora nem nunca. Muito pelo contrário, dentro de mais alguns anos seriam os russos quem, em tese, poderiam vir a fazê-lo, desde que além dessas suas novas armas de ataque viessem também a desenvolver, em adição aos seus excepcionais S-500 já em produção, mais outros mísseis defensivos tecnologicamente avançados (ver aqui) que compusessem um efetivo escudo de proteção capaz de neutralizar qualquer retaliação americana.

timing do anúncio de Putin revela, porém, um problema: das seis novas armas anunciadas, três ainda estão em fase final de testes (o míssil balístico intercontinental Sarmat, o míssil hipersônico Mach.10 Kinzhal e o veículo submersível intercontinental não tripulado de propulsão nuclear), duas acabaram de concluir os testes e ingressam agora na fase de produção (a “asa planadora” Mach.20 Avangard e o míssil de cruzeiro intercontinental de propulsão nuclear), e apenas as armas a laser (sobre as quais não foram divulgados detalhes) já estão sendo distribuídas às unidades militares.

Ora, quanto tempo mais levará até que tenham sido produzidas quantidades suficientes dessas armas, de modo a que os arsenais russos sejam satisfatoriamente abastecidos? Um ano, dois, três? Ter feito esse anúncio agora apenas atiçou o inimigo a atacar o quanto antes – antes que essas novas armas estejam disponíveis em quantidades suficientes para subjugar a América. Em resposta ao anúncio de Putin, o Secretário de Defesa americano, general James Mattis, declarou – não sem alguma razão – que essas novas armas “ainda estão anos distantes” de ameaçar os Estados Unidos (grifo meu).

Por que então Putin fez o anúncio justamente agora? A resposta só os russos sabem, mas entendo que eles sentiram que precisavam intimidar, e rápido, os americanos. Estariam os Estados Unidos na iminência de atacar a Rússia nesta primavera de 2018? (por razões climáticas, a Rússia foi sempre atacada ao final da primavera, após ter secado a lama decorrente do degelo do inverno anterior e antes que chegasse a neve do inverno seguinte; Napoleão invadiu a Rússia a 24 de junho de 1812, e os exércitos de Hitler a invadiram a 22 de junho de 1941; o verão no hemisfério norte se inicia este ano em 21 de junho).

O que os Estados Unidos almejam é mais que meramente sobreviver, é conservar a sua identidade. Esta identidade se baseia na permanente acumulação de riquezas, o que, na prática, significa a espoliação do restante do mundo. Para que os Estados Unidos pudessem conviver com a Rússia e a China em um mundo gerido em comum (mundo multipolar), eles precisariam abrir mão dessa sua identidade e encontrar uma nova, que desse conta de assimilar a sua perda de poder e o seu empobrecimento (a inviabilidade para rolar a dívida dos EUA acarretaria o fim do dólar, com a pulverização de todos os depósitos nessa moeda) – isso para não falar em outros desdobramentos cruciais, como o fim do apoio incondicional americano a Israel. Algo assim não teria como acontecer pacificamente, especialmente porque os americanos se acostumaram a acreditar serem imbatíveis militarmente.

Para que possa haver um processo de atualização da identidade, seja para uma única pessoa (renovação da psique) ou para uma sociedade inteira (renovação da cultura), é preciso em primeiro lugar que haja desconforto (numa situação confortável não há porque questionar a identidade). O desconforto será sempre enfrentado, numa linha de “piloto automático”, por maneiras que resguardem a identidade, desde que não se atinja um ponto em que isso deixe de funcionar. Caso aconteça, poderão então advir três desfechos: abrir-se “por bem” para uma atualização da identidade, de forma reflexiva; aceitar “por mal” uma atualização da identidade, de forma traumática; ou, no limite, aferrar-se cegamente à identidade, contra a realidade – o que arrisca terminar levando à morte.

Paradoxalmente, o único caminho seguro para que os Estados Unidos viessem a conservar a sua condição de superpotência deveria provir de algum processo de renovação “por bem” da sua identidade, com a aceitação da realidade de um mundo multipolar e a construção, em conjunto com Rússia e China, de uma nova ordem mundial. Se, no entanto, os americanos insistirem na direção de uma subjugação militar de Rússia e China, uma eventual derrota (daí a importância das novas armas russas) significará o fim de seu gigantesco aparato, com o desmantelamento das suas centenas de bases militares espalhadas por todo o globo.

O problema é que os americanos se encontram por demais aferrados à sua identidade (“somos a única nação indispensável no mundo”), e assim vejo como impraticável qualquer renovação “por bem” dessa identidade.

A Rússia tem até aqui apostado numa estratégia de ganhar tempo (estratégia esta que se encontra muito bem exposta no artigo de The Saker, que foi o texto anterior publicado nesta série): mais cedo ou mais tarde os Estados Unidos entrarão em desintegração econômica pelas próprias pernas (com um “empurrãozinho” da China, é claro), então, se até lá a guerra puder ser evitada, tanto melhor. A Rússia tem assim adotado uma tática evasiva, “engolindo sapos” e evitando embarcar nas provocações militares dos EUA, ou ainda respondendo de forma autocontida, de modo a evitar escalar um conflito. O tempo corre a favor da Rússia, que pacientemente aguarda pelo inevitável colapso americano enquanto produz volumes maiores das novas armas caso venha a guerra.

Receio, porém, que mais cedo ou mais tarde os americanos acabarão por ir à guerra mesmo contra a Rússia nuclearizada, em nome da preservação do seu status quo e da sua identidade. A intimidação de Putin com seu discurso poderá até (?) reduzir os riscos de uma guerra nuclear total, mas não tem como funcionar para compelir os americanos a qualquer atualização pacífica da sua identidade disfuncional.

O que está em aberto é se o eventual enfrentamento entre americanos e russos escalará até a guerra nuclear total, ou se terminará com a capitulação de um dos lados (ainda que para isso venham a ser detonadas algumas bombas nucleares).

Considero bastante improvável uma capitulação da Rússia. Com seus S-500, S-400 e demais sistemas de defesa a Rússia tem como se proteger razoavelmente bem de um ataque convencional ou mesmo de um ataque nuclear restrito, ao passo que poderia infligir danos consideravelmente maiores ao território dos Estados Unidos por meio das suas novas armas, mesmo que em início de produção (especialmente se vierem a ser usadas em um ataque nuclear restrito).

De todo modo, se acontecer da Rússia perder (por “Rússia”, leia-se “Rússia mais China”, porque elas estão militarmente aliadas contra os americanos, embora não assumam isso), isto significaria uma tirania mundial americana, o 1984 de George Orwell em plenitude. Mas não há de acontecer.

Já os americanos somente capitulariam se bastante machucados, e possivelmente esse seja o “plano B” dos russos (o “plano A” sendo a desintegração dos Estados Unidos como um processo espontâneo, sem que chegue a haver guerra).

O problema com esse “plano B” é o elevado risco de escalada até uma guerra nuclear total.

Chances de a guerra vir a se tornar nuclear

Repórter: – Sr. Einstein, agora que foi inventada a bomba atômica, como o Sr. acha que será a Terceira Guerra Mundial?

Albert Einstein: – A Terceira eu não sei. Sei como vai ser a Quarta.

R: – A Quarta?

AE: – Sim. A pau e pedra.

(adaptação)

Os americanos estão conscientes de que, mesmo que lancem um first strike contra a Rússia, acabarão também destruídos. Os russos estão conscientes de que, mesmo que lancem um first strike contra os Estados Unidos, acabarão também destruídos. Nenhum first strike, ainda que em total surpresa (algo que dificilmente ocorreria), teria como inviabilizar a retaliação do oponente.

Se assim o é, por uma questão de inteligência, por uma questão de razoabilidade, por uma questão de moral, por uma questão de dignidade ou mesmo por simples questão de decência, uma guerra nuclear total era para ser o menos provável dentre todos os cenários. Desgraçadamente, não é.

No dia 02 de fevereiro de 2018 o Pentágono divulgou a nova doutrina nuclear dos Estados Unidos, que estipula a produção de novas ogivas nucleares “táticas”, ou seja, de baixa potência (ainda assim, qualquer bomba nuclear “tática” será mais potente do que as que foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki), para serem usadas nas guerras “de varejo” americanas. Essa nova doutrina estabelece ainda que os Estados Unidos poderão fazer uso de armas nucleares para responder a quaisquer ataques “que levem a vítimas em massa” (até uma ação terrorista poderia ser isto) ou “que visem infraestrutura crítica” (até um ataque cibernético poderia ser isto).

resposta de Putin veio dentro do seu discurso de primeiro de março:

Nossa doutrina nuclear estabelece que a Rússia se reserva o direito de usar armas nucleares somente em resposta a um ataque nuclear ou a um ataque com outras armas de destruição em massa contra nós ou contra nossos aliados, ou a um ataque convencional contra nós que ameace a própria existência da nação (…) É meu dever deixar claro isto: qualquer uso de armas nucleares contra a Rússia ou seus aliados, seja ele em pequena escala, em média escala ou em qualquer outra escala, será tratado como um ataque nuclear ao nosso país. A resposta será instantânea, e com todas as consequências relevantes.

Por “aliados da Rússia”, leia-se Síria e Irã (em um recado que é extensivo a Israel).

Há também uma diferença de natureza: Enquanto as lideranças russa e chinesa são razoavelmente homogêneas, a ponto de poderem ser personificadas em um único dirigente (Putin, e Xi Jinping), a liderança americana poderia ser descrita (para usar aqui uma expressão suave) como um saco de gatos. As diversas esferas de poder (como a Casa Branca, o Pentágono, o Departamento de Estado e as agências de inteligência) têm imensas dificuldades em atuar de forma coerente e coordenada (para uma análise desse fenômeno, ver aqui), e mesmo no interior de cada uma delas a coesão é baixa, chegando ao ponto de militares de campo (por exemplo na Síria) virem a “interpretar” a seu próprio modo (novamente sendo suave aqui) as ordens dos seus superiores em Washington.

Num contexto altamente instável, em que uma única ação mais contundente pode desencadear uma resposta nuclear maciça, uma tal fragmentação torna exponenciais os riscos.

Enquanto isso, na Rússia, é devido à coesão de poder que é possível a Putin por exemplo vocalizar(e assim se fazer obedecer ao longo da cadeia de comando) a obviedade de que não pode chegar a haver guerra nuclear total, porque isso significaria (também) a destruição da Rússia. Pelo lado americano não se ouve nada sequer parecido, em um atestado coletivo de descolamento da realidade.

Nessa mesma oportunidade, Putin saiu-se com a seguinte frase de efeito (assista no vídeo): “na qualidade de um cidadão russo e de chefe de Estado da Rússia, eu pergunto a mim mesmo: Para que nós iríamos querer um mundo no qual a Rússia já não mais existisse?”. Para bom entendedor…

Uma medida bastante confiável para o risco que cada país atribui às chances de haver guerra nuclear consiste nas medidas que adota para proteger a sua população dessa eventualidade.

As autoridades russas revelaram, às vésperas de virem a conduzir um exercício de defesa civil por quatro dias seguidos (de 04 a 07 de outubro de 2016) em que o país inteiro parou, quando quarenta milhões de pessoas foram treinadas a se dirigir cada uma ao seu respectivo abrigo nuclear e a como nele permanecer por longo tempo, que haviam acabado de ser construídos novos abrigos nucleares para mais doze milhões de pessoas, em adição ao estoque de abrigos herdado da era soviética.

Até mesmo um país tradicionalmente neutro (não faz parte da OTAN), a Suécia, decidiu também iniciar um programa massivo de construção de abrigos nucleares para sua população.

Já nos Estados Unidos, nem uma palavra se ouve sobre o risco de o país vir a sofrer um ataque nuclear. Bem entendido, nem uma palavra é ouvida pelos 99% (em um atestado de que não há interesse real em protegê-los), porque o assim chamado 1%, para quem a informação crítica chega cristalinamente, tem se devotado freneticamente a construir os seus próprios abrigos (de alto luxo, é claro), de preferência em lugares ermos e habitados (leia-se: esparsamente habitados) por gente branca, como Canadá, Argentina (Patagônia) e Nova Zelândia (ver, por exemplo, aqui e aqui).

Para tentar chamar a atenção dos 99% quanto a isso que eles serão os últimos a saber (talvez só quando os mísseis estiverem sendo disparados) mas que o 1% já sabe há muito tempo, Eric Zuesse escreveu um artigo no qual lista nada menos do que onze outras referências (umaduastrêsquatrocincoseisseteoitonovedezonze) quanto a estarem os ricos preparando os seus abrigos, além de propor ao leitor o desafio de digitar a seguinte linha para pesquisa no Google (eu fiz e fiquei impressionado): billionaires moving to “new zealand”.

Mudando de exemplo sem mudar de assunto, a poderosa indústria farmacêutica americana vem se dedicando a pesquisar e desenvolver novos medicamentos para… tratar os efeitos da exposição à radioatividade.

Implicações para o Brasil

Disse que não chamo a classe dominante brasileira de elite porque, para começo de conversa, uma elite em um país desenvolve sua identidade própria (mesmo que seja para a dominação), da qual faz parte algum grau de identificação para com esse país e seus destinos.

Aqui, não. A classe dominante (refiro-me aos verdadeiramente ricos, que são os únicos beneficiários de fato do golpe de 2016, a classe média tendo sido usada e em seguida descartada – ver mais sobre isto aqui) já há muito não possui mais qualquer identificação para com o Brasil. Essa classe dominante mora no exterior, tanto guarda quanto gasta o seu dinheiro no exterior, educa os seus filhos no exterior, e a única relação que ainda mantém com o Brasil é para daqui extrair a riqueza dela. Claro que, para isso, ela precisa que os seus prepostos atuem aqui dentro, instalados em especial nos três poderes do Estado.

A classe dominante brasileira abdicou voluntariamente de qualquer vínculo afetivo com o Brasil, e assim abdicou também de manter qualquer identidade própria (que teria de ser derivada de tais vínculos, extintos). Ela preferiu se deixar assimilar pelo país hospedeiro, os Estados Unidos. Preferiu assumir como sua a identidade americana. Adotou para si a visão de mundo americana, a cultura americana, os valores americanos, os modelos econômicos americanos e até mesmo os instrumentos de dominação americanos (“meritocracia” e que tais).

É por isso que o golpe de 2016 não tem um projeto para o país: ele não precisa ter.

Se tivesse preferido continuar brasileira, como sempre havia sido até por volta da década de 1980, a classe dominante poderia agora contar com uma sobrevida. Mas, atrelada até a raiz dos cabelos que se fez aos americanos, a sua derrocada se dará na esteira da derrocada dos Estados Unidos.

O anúncio das novas armas por Putin veio explicitar perante o mundo uma realidade nova, que até então somente era conhecida, ou pressentida, em círculos bastante restritos: os Estados Unidos já não detêm mais a supremacia militar no planeta, e, assim, os seus dias de superpotência estão contados. Como contados estão os dias de dominação sobre a população brasileira pela classe dominante daqui.

É claro que isso não terá como se dar pacificamente. Mas é inexorável.

Mas, e se houver guerra nuclear?

Bem, nesse caso esqueça-se a classe dominante brasileira, porque enquanto tal ela simplesmente terá deixado de existir – assim como tudo o mais que instituído haja também já não existirá.

Mas, como assim, se o Brasil não tiver sido atacado?

No capitalismo contemporâneo, Brasil incluído, a maior parcela da economia é fictícia (finanças) ao contrário de real (indústria, serviços, agricultura), além do que essa parcela real se encontra subordinada à (e dependente da) fictícia. As finanças são uma ficção que funciona apenas porque as pessoas acreditam na sua concretude: enquanto o lastro da economia real é físico (máquinas, edificações, estoques de produtos e de matérias-primas, terras etc.), as finanças encontram-se lastreadas unicamente na credulidade das pessoas (dito em termos mais técnicos, trata-se de uma convenção social – algo seguido pelas pessoas porque acatado por elas).

Após uma guerra nuclear que devaste o hemisfério norte nada disso se sustentará mais, nem no Brasil nem em lugar nenhum. O que move o mundo, e lhe dá sentido, é a atividade econômica, muito mais que as instituições (cuja razão de ser é manter o mundo tal como já está). Se a economia colapsar, as instituições colapsam junto. Claro que muita gente acreditará poder continuar vivendo tal como havia sido até então, e assim tentará manter o mundo tal como instituído, mas não haverá mais como.

O que tiver restado da humanidade – se vier a sobreviver ao inverno nuclear – terá que se reinventar. Em termos tecnológicos muito se poderá aproveitar, mas, em termos institucionais, praticamente tudo terá que ser recriado: Humanidade dois-ponto-zero.

Como canta Morrissey, “because if it’s not love then it’s the bomb that will bring us together”.

Ademais, nada garante que o Brasil não seja atacado. Se de antemão é óbvio para todo mundo que o que terá sobrado após uma guerra nuclear será pouca coisa além da América do Sul, as mesmas mentes que decidem pela construção de abrigos de alto luxo para o 1% enquanto se lixam para o destino dos 99% podem também querer “despovoar” este nosso continente – posto ser a América do Sul uma região com maciça concentração urbana em regiões metropolitanas – antes de se mudarem para cá. E para esse emprego já foram inventadas as bombas de nêutrons, aquelas que matam as pessoas mas preservam os prédios, por meio de um tipo de radioatividade que desaparece em questão de dias depois de ter condenado à morte quem a ela tiver sido exposto. De sociopatas, se pode esperar absolutamente qualquer coisa.

Mesmo que o Brasil não seja atacado, há algo que se deve recomendar a todo mundo: que cada um tenha um lugar para onde ir, um lugar que, quanto mais ermo (despovoado), melhor. Se a economia e a sociedade vierem a entrar em colapso, todo mundo vai entrar em choque ao mesmo tempo, e o pior lugar para se estar vai ser numa metrópole ou grande cidade amontoado com mais milhares ou milhões de pessoas, todas elas em parafuso.

Poucos dentre nós podem estar conscientes disso, mas, venha ou não a guerra nuclear, já estamos todos vivendo os tempos mais fantásticos e ao mesmo tempo mais terríveis de toda a História da humanidade. Seremos todos protagonistas, ou ao menos testemunhas, dos eventos os mais extraordinários. A cada um, coragem, garra, sabedoria, e sorte.

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Agradeço a Dario Achkar do Blog do Alok e ao Coletivo Vila Vudu pela parceria na montagem desta série.

 

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