(B)RIC(S) depois de Bolsonaro

8/11/2018, Ghassan Kadi, The Saker Blog

A sigla BRICS designa a ‘aliança’ que inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Mas, e com todo o respeito por Brasil e África do Sul, BRICS resume-se efetivamente a RIC ou IRC ou CRI e outras fórmulas [(B)RIC(S)].

Com Rússia, Índia e China, não interessa em que ordem, aí está o futuro da Eurásia; setor praticamente nunca mapeado onde vive 1/3 de toda a população do planeta; vasta porção de massa terrestre, rica em recursos, não só recursos humanos, e só esperando o melhor momento para pôr sua marca na história.

A chamada “Rota da Seda”, na realidade rotas da seda, foi tradicionalmente a rede de trilhas de caravanas pelas quais andavam antigos mercadores em suas jornadas de oriente a ocidente, conectando mundos em grande parte desconhecidos um do outro, desde muito antes das viagens fartamente documentadas de Vasco da Gama.

E, se as culturas ancestrais de Índia e China floresceram por direito próprio, exceto quando conquistadas por Alexandre, e subsequentemente por muçulmanos e mongóis, houve pouca interação geopolítica histórica entre o Extremo Oriente e o Oriente Médio; e nenhuma com a Europa. A vasta extensão congelada dificultou qualquer interação, mesmo para os mais valentes de coração, que se arriscassem a fazer a jornada de Pequim a Viena. As tentações que atraíam para a viagem, não cancelavam as dificuldades que paralisaram os viajantes apenas moderadamente motivados.

Mas tudo isso está prestes a mudar. A nova “Rota da Seda”, rede de super rodovias que as nações RIC dedicam-se a construir vão mudar esse status quo e encurtar as distâncias por terra.

A ferrovia Transiberiana é via russa, e uniu Vladivostok e Moscou, mas nunca visou a unir China e Europa. No máximo, reforçou o isolamento da URSS. Mas o novo projeto “Rota da Seda” virará de pés para cima o mapa de transportes do mundo, de uma vez por todas.

A determinação de construir essa massiva rede de estradas jamais precisou, para coisa alguma, de Brasil ou África do Sul.

Tudo devidamente considerado, temos de ser realistas e declarar que a vitória eleitoral do candidato Bolsonaro no Brasil absolutamente não afetará, nem de longe, a “Rota da Seda”.

As repercussões dessa eleição afetarão muito mais gravemente o Brasil, que qualquer outro país. Com certeza e expressamente, as políticas de Bolsonaro afetarão negativamente o clima global, mas essa é outra questão. As decisões do novo governo, no campo fiscal e internacional, podem pôr o Brasil sob a esfera de influência dos norte-americanos. Também isso pode afetar e com certeza afetará muito negativamente o próprio Brasil, mas o dano ficará limitado ao Brasil, nada além disso.

Com Brasil ou sem, os (B)RIC(S) podem sobreviver. Mas para que a ‘aliança’ sobreviva e faça diferença, terá de se tornar mais séria, na condução dos próprios negócios.

O primeiro passo na direção de a aliança tornar-se mais proativa dará resultados melhores se se estabelecer adequado grau de confiança e conciliação entre os três grandes atores: Rússia, China e Índia.

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A relação de amor-e-ódio que arruinou a era soviético-maoísta precisou de algum tempo para cicatrizar. Russos e chineses parecem ter dados largos e importantes passos rumo a estabelecer e deixar que sedimentassem sentimentos de confiança, um país no outro e cada país em si mesmo. Mas China e Índia continuam a ter sérios problemas, e enquanto houver disputas de fronteiras e de soberania territorial entre os dois países, não conseguirão tornar-se parceiros efetivos em todos os campos.

Além disso, os (B)RIC(S) carecem de Exposição de Motivos e Declaração de Objetivo. No momento, estão sem esses itens. Com todas suas hipocrisias, a aliança ocidental camufla-se por trás do véu dos valores cristãos, de slogans de democracia e “mundo livre”. Até aqui, o único objetivo não declarado dos (B)RIC(S) parece ser o de se manter como desafio frente à aliança ocidental.

A aliança (B)RIC(S) enfrentará dificuldades para achar motivos que gerem preâmbulo sedutor unificado. A Rússia Cristã Ortodoxa, a Índia predominantemente Hinduísta e a China Comunista/Taoísta/Budista pouco têm em comum, em termos religiosos. Talvez os líderes da aliança (B)RIC(S) devam usar raízes políticas comuns, em vez de raízes religiosas comuns. Com certeza não podem usar “democracia”, não só porque escolher essa ‘bandeira’ fará parecer que copiam o ocidente, mas, também, porque os países da aliança têm ideias diferentes sobre democracia; e Rússia e China definitivamente não endossam a democracia de estilo ocidental.

Mas há princípios altissonantes que os (B)RIC(S) podem usar à guisa de preâmbulo; tipo moralidade, honestidade e, se quiserem soar menos “teológicos”, podem usar princípios como “lei internacional” e “igualdade internacional” e coisas parecidas.

Além de entesourar ouro; construir pontes e super-redes rodoviárias e ferroviárias; planejar medidas fiscais para acolchoar os efeitos de um possível colapso da economia ocidental sobre as suas próprias respectivas economias; desenvolver armas que são o estado-da-arte em ferramentas de guerra; e disparar mensagem muito clara anunciando que o mundo deixou de ser unipolar, a aliança dos (B)RIC(S) deve afirmar muito claramente qual é o tipo de mundo alternativo que tem em vista.

É muito importante, porque percentagem significativa da população mundial não sabe o que esperar, se a aliança (B)RIC(S) vier a ser a nova potência financeira e militar dominante. Há específicas preocupações com a China, porque pouco se sabe da China, e as pessoas preocupam-se não só com o risco de a China vir a ser uma nova potência colonial (se for o caso), mas também se preocupam com o risco de acordarem uma bela manhã e todos os sinais de tráfego estarem escritos em mandarim, por assim dizer.

Para muita gente em todo o mundo, a cultura chinesa, o idioma e o modus operandi dos chineses é visto como se viessem de outro planeta.

O alfabeto cirílico e o signos Devanagari indianos não são menos assustadores que os signos do mandarim, mas muitos indianos e russos falam inglês, e o ocidente tem tido interação cultural muito maior com Rússia e Índia, do que jamais tiveram com a China.

Além disso tudo, para que a aliança (B)RIC(S) torne-se mais viável, terá de desenvolver uma aliança militar semelhante à OTAN. Quando e se essa aliança for forjada, nesse caso os membros estarão protegidos, porque ataque contra um dos membros será considerado ataque contra toda a coalizão. Esse tipo de arranjo não faz crescer os riscos de guerra. Bem ao contrário, de fato, porque pode fazer aumentar a tão necessária estabilidade. Se, suponhamos, a Coreia do Norte for integrada à aliança (B)RIC(S), deixaria de viver em situação na qual tenha todo o direito de declarar que precisa de armas nucleares para autodefesa; e, em segundo lugar, o ocidente não poderia viver a ameaçar os norte-coreanos, por medo de grande escalada global. A Guerra Fria, caríssima e potencialmente desastrosa como foi, mesmo assim é bem-sucedido modelo de contenção nuclear. No passado, se o Vietnã fosse membro do Pacto de Varsóvia (ou de outro pacto, que incluísse a Rússia) é provável que os EUA jamais tivessem atacado o Vietnã. Outro cenário mais realista e plausível é a ex-Iugoslávia. Se o Pacto de Varsóvia ainda fosse vigente, a OTAN jamais teria atacado a Sérvia em 1999

Para poder garantir contenção militar mais efetiva, ser potência econômica autônoma viável e ser atraente para o resto do mundo, a coalizão (B)RIC(S) precisará, em última instância, incluir número maior de nações-membros. Em termos ideais, seria enormemente significativo se o Japão fosse convencido a integrar-se à aliança.

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A inclusão do Japão não acrescentará ao grupo apenas uma grande potência financeira, mas também geraria segurança regional ‘doméstica’ para a região do Mar da China. Passos mínimos têm sido dados entre China e Japão rumo à conciliação, e muito mais terá de ser feito. É preciso muito trabalho e boas intenções dos dois lados, para desfazer uma longa história de hostilidades e desconfiança.

Outras nações que podem – e pode-se dizer, devem – integrar-se à coalizão são: Venezuela, México, Argentina, Irã, Iraque, Síria, Coreia, Malásia, Vietnã, Indonésia e a Turquia pós-Erdogan. Por que pós-Erdogan? Porque a Turquia de Erdogan pode transformar os (B)RIC(S) num saco de TRIC(S).

A Austrália, rica em recursos, muito ganharia com unir-se a esse tipo de aliança, que não apenas aumentará a própria segurança mas também garantirá estabilidade econômica e o comércio já em curso.

Até aqui, todas as visitas oficiais que os líderes dos RIC trocaram, todos os negócios que costuraram, todos os projetos nos quais se meteram, gigantes que sejam esses projetos, são ainda passos mínimos na direção de fazer da aliança uma organização que possa liderar o mundo e de estabelecer os necessários fundamentos morais, financeiros e de segurança capazes de dar firmeza a toda a estrutura.

Mais e acima de estabelecer uma nova moeda mundial de reserva, estabelecer sistema alternativo para concorrer com o sistema internacionais de compensações financeiras SWIFT ou com aWWW (dois sistemas com base nos EUA), etc., o admirável mundo novo necessitará de esperança, confiança, moralidade e garantias concretas de uma longamente esperada mudança para melhor. Esses são os desafios reais com os quais a aliança dos (B)RIC(S) terá de lidar. A vitória de Bolsonaro não é importante.*****

 

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