26/3/1989, Ignácio M. Rangel*
http://www.interpretesdobrasil.org/index.php?pageId=adminGetFileContent&fieldName=content&docId=130
Entreouvido na Vila Mandinga:
É mais que hora de descartar os economistas-banqueiros, agentes do atrasamento do Brasil,
trocando-os por pensadores de melhor qualidade social e política.
Pode-se bem começar por ressuscitar Ignácio Rangel.
Ignácio Rangel é nosso Deng Xiaoping. [Pano rápido
Agora que o problema da privatização de serviços públicos amadurece obviamente para solução, é natural que todas as classes e estamentos que compõem a sociedade brasileira tomem posição, à vista dos seus interesses específicos. Os equívocos, nessas primeiras tomadas de posição não devem surpreender… Raramente as sociedades se movem de caso pensado, em direção preestabelecida. Ordinariamente, o movimento precede a consciência.
Na espécie, isto é, no que tange ao problema da privatização, é essencial que percebamos que, assim como antes havia um setor privado e um setor público, e agora há um setor privado, pode os estar certos de que, no futuro esses dois setores estarão presentes. Não se trata pois de saber o que, em tese, é melhor, se a gestão privada ou a pública, porque ambas, como a fênix fabulosa, renascerão das próprias cinzas.
Já era tempo de que o operariado, que já não é mais uma simples multidão – uma classe em si, mas não uma classe para si ––, tomasse cartas nesse jogo. Hoje o proletariado brasileiro tem partidos políticos (vários), tem órgãos bem estruturados de assessoramento, como o Dieese, que, no seu papel, não tem mais apenas militantes sindicais empíricos, mas também mestres em economia por nossas melhores universidades. Como essa jovem mestra pela Unicamp, que é Fábia Tuma, e que em conjunto com o líder sindical Kjeld Jackobsen, da CUT, publicou um interessante artigo nessa Folha de 8/2/89, sob o título “Privatização – um erro com jeitinho brasileiro”.
Nesses arraiais, o debate apenas começa, do modo que os equívocos permitem. Para começar, eles sequer se levantam a questão de saber que novas funções assumirá o Estado brasileiro, quando algumas das que tem atualmente passarem à iniciativa privada, mas haverá tempo para isso. O importante em sua abordagem é a tentativa de formular o problema sob a ótica do proletariado. O proletariado ganhará, ou perderá? Onde, quando e como?
Na sua abordagem inicial, o proletariado somente teria a perder. Uma atitude afinada com as das demais classes relevantes, inclusive esse empresariado capitalista que, muito à ligeira, os autores citados apontam como os ganhadores óbvios, numa visão equivocada, visto como, ao primeiro exame, todos parecem condenados a perder. A privatização com que o empresariado sonha não entra na ordem natural das coisas. Ele sonha, como de costume, com uma privatização dos lucros, combinada com a socialização dos custos. Somente aos poucos irá percebendo que é do seu interesse assumir os custos, porque seu problema fundamental consiste em não saber que destino dar às sobras de caixa atuais e potenciais, isto é, a resultarem da plena utilização da capacidade ociosa ora sob seu comando.
Mas não é de assessorar o empresariado capitalista que hoje nos ocupamos. Através da superação dos justificados equívocos da jovem mestra Fábia e do jovem líder eletricitário Jackobsen, o que hoje nos interessaria seria libertar o proletariado brasileiro dos seus justificáveis equívocos iniciais. Alguns deles.
Para começar, o setor público da economia brasileira, nesta crise, como nas que a precederam, não é homogêneo. Integram-no empresas pertencentes a ramos oriundos da chamada livre-empresa, mas que, tendo crescido mais do que o sistema o comporta, foram impelidos à falência. A estatização dessas empresas operou como uma espécie de seguro contra o desemprego, isto é, interessava às massas trabalhadoras. Sua reprivatização, ao contrário do que supõem nossos jovens articulistas pode impelir à falência outras empresas dos mesmos ramos, ainda não recauchutadas com dinheiro público, como elas. Ora, a iniciativa privada não deixará de sanear a folha de pagamento de ditas empresas, levando novos contingentes ao “exército industrial de reserva”, isto é, ao desemprego.
Seria natural portanto que o proletariado utilizasse toda sua crescente influência, no sentido de compensar esse inevitável engrossamento das fileiras do desemprego, com medidas adequadas, a começar por um sério seguro contra o desemprego e por medidas tendentes a dar novo destino, ou a reduzir, as levas do êxodo rural.
Não se justifica que esses quadros sindicais – como são nossos talentosos articulistas – ignorem que esse engrossamento do “exército industrial de reserva” tenha repercussão sobre o nível dos salários dos trabalhadores da empresa privada incomensuravelmente maior do que a que eles atribuem ao “referencial” representado pelo nível salarial dos trabalhadores das estatais. O efeito líquido será, portanto, depressivo.
Inversamente, a privatização de empresas do ramo dos serviços de utilidade pública deverá ter efeito estimulante sobre o esforço nacional de formação de capital e, por essa via, sobre o volume do emprego, como regularmente acontece em nossas fases “a” ou expansivas, dos nossos ciclos breves. Ninguém deve ignorar que, nas presentes condições, a liquidez do sistema está no setor privado, não no setor público. Esse, ao contrário, está endividado dentro e fora do país, ao ponto de que o simples “rolamento da dívida” converteu-se num problema sem solução.
Ora, imaginar que tal setor público, obrigado a pagar juros cada vez mais extorsivos, pode oferecer serviços baratos às massas populares mais carentes, é ignorar o que há de mais essencial em nossa presente crise. Estamos assistindo é a uma elevação indiscriminada das tarifas dos serviços a cargo do setor público, acompanhada da proposta de demissões também indiscriminadas para ‘enxugar’ as folhas de pagamento das estatais. Assim, os efeitos indesejáveis da privatização, com os quais nos acenam nossos articulistas, aí estão, não em consequência das privatizações que ainda nem aconteceram, mas, muito precisamente, em consequência da ausência delas.
Por outro lado, tratando-se da privatização de serviços públicos, trata-se muito precisamente de substituir concessões de serviços públicos a empresas públicas, por concessões de serviços públicos a empresas privadas – categoria jurídica bem definida em todo o mundo e que se trata apenas de reformular de acordo com os padrões universalmente aceitos. Ora, esses serviços, ao contrário, estão subdimensionados, isto é, carecidos de investimentos que o Estado não pode fazer.
Horácio Ignácio Rangel
* Ignácio de Mourão Rangel (Mirador, Maranhão, 20 de fevereiro de 1914 — Rio de Janeiro, 4 de março de 1994) foi um economista brasileiro. Ocupou a cadeira nº 26 da Academia Maranhense de Letras.
Foi provavelmente o mais original analista do desenvolvimento econômico brasileiro, segundo o economista Bresser Pereira (professor da USP), Jose Marcio Rego (professor da FGV) e o geógrafo Elias Jabbour (professor da UERJ). Apenas Celso Furtado tem contribuição comparável na análise da dinâmica de nossa economia.
Fez Direito na antiga Faculdade de São Luís, seguindo os caminhos de seus bisavô, avô e pai. Mas seguiu carreira na economia, seara em que foi autodidata. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fazia traduções para a agência Reuters para pagar as contas e garantir a possibilidade de estudos de economia em casa. Seus textos de análise econômica rapidamente ganharam relevância e foi convidado para fazer parte do grupo de assessoramento econômico de Getúlio Vargas, foi um dos redatores dos projetos de criação da Petrobrás e Eletrobrás, duas das mais importantes estatais brasileiras, que teriam seu destino atrelado à história do desenvolvimento do país. Em 1953, além de trabalhar intensamente na assessoria de Vargas, Rangel escreve seu primeiro livro, A Dualidade Básica da Economia Brasileira, publicado em 1957.
Nos anos 1950, integrou também os quadros do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão vinculado ao MEC que produzia estudos aprofundados sobre os caminhos do desenvolvimento brasileiro. Ao lado de intelectuais como os sociólogos Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes e o historiador Sérgio Buarque de Holanda, firmou-se como um dos principais analistas da estrutura formativa do Brasil.
É convidado para realizar uma pesquisa a cargo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), órgão das Nações Unidas instalado em Santiago. No retorno do Chile, Rangel ingressa no BNDE (Banco de Desenvolvimento Econômico e Social, que na época ainda não possuía o “S” no nome), onde chega a chefe de Departamento Econômico. Nessa época, chegou a ser convidado pelo então presidente João Goulart para ser ministro da Fazenda, cargo que recusa. Logo em seguida, vem o Golpe de 64, que o põe no ostracismo.
Sobre Ignácio Rangel, ver PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. RÊGO, José Marcio. Um Mestre da economia brasileira: Ignácio Rangel. Disponível em: http://www.rep.org.br/pdf/50-6.pdf
Be First to Comment