8/11/2018, Serge Quadruppani, Lundi Matin
“A obsessão de meter Berlusconi na cadeia, a luta anticorrupção, a invocação eterna de legalidade, legalidade, legalidade, acompanharam sempre a empreitada de demolição sistemática dos direitos sociais conquistados especialmente nas lutas dos anos 60 e 70. Ah, sim, é verdade: aquelas lutas não respeitaram muito a supracitada legalidade, legalidade, legalidade.”
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Se o reformismo social-democrata tivesse ainda qualquer mínimo futuro, o “modelo Riace” teria sido promovido pela “esquerda” por toda a Europa, especialmente no Sul da Europa.
Para quem ainda não saiba, Riace é uma vila na Calábria, onde, por módicos 35 euros por dia, pagos pelo Estado, por migrante, e usados em vários locais para criar campos e alojamentos infames, o prefeito e a associação criada em Riace fizeram renascer uma cidade abandonada, renovando as moradias, e criaram um moinho, ateliês-cooperativas onde se fazem objetos de artesanato em vidro, papel, bordados… O afluxo da nova população fez surgir uma creche, uma escola, ambulatórios médicos, um restaurante, uma bolsa de empregos, bares reabriram, e a população antiga e a nova misturaram-se, claro que não sem atritos, mas na maior parte do tempo com prazer evidente. Perseguido por delitos relacionados a alguma desatenção com procedimentos burocráticos e em nenhum caso por qualquer tipo de enriquecimento pessoal ilícito, Mimì [Domenico] Lucano, o prefeito, está agora proibido de viver na própria vila.
Salvini, ministro do Interior, da Liga, tentou “deportar” (palavra dele) para campos de concentração os migrantes que vivem em Riace, mas recuou diante dos protestos nacionais e internacionais. Esse ataque pelo Estado, levado a cabo em nome da legalidade, tem a peculiaridade de querer meter os exilados num sistema de albergues no qual é conhecida a atividade da Máfia (numa pesquisa intitulada “Mafia Capitale”, ouve-se um dos chefes da rede mafiosa com influência em Roma dizer que “imigrados dão mais lucro que droga”).
É praticamente a mesma via pela qual o ataque ‘judiciário’ contra Dilma Roussef, depois contra Lula conseguiu levar ao poder partidos tão corrompidos (com certeza muito mais corrompidos) quanto o Partido dos Trabalhadores.
Repetição exata da operação “Mãos Limpas”, que no começo dos anos 1990s reformatou a classe dirigente italiana e pôs no poder, por 20 anos, gente honestíssima, tipo o honesto Berlusconi.
Convidado pelo prefeito de Nápoles, apoiado pelo [jornal] Repubblica, Mimì é hoje o herói dessa pós-esquerda, a mesma que, contudo, está na origem das perseguições judiciárias de que o prefeito é hoje vítima: as acusações contra Mimì foram formuladas nos governos anteriores, sob os pretextos mais falaciosos. Por exemplo, Mimì foi acusado de falsificar moeda. Ele de fato criou boletos de circulação local, que os comerciantes aceitam no comércio de Riace e depois trocam por euros, quando a cidade recebe os fundos oficiais, sempre atrasados (mas é verdade que dentre as efígies estampadas nos boletos-dinheiro estavam Mandela, o Che e Rosa Parks).
Pois [Roberto] Saviano, que hoje tece rasgados elogios ao prefeito Mìmi, foi um dos principais arautos vestais do ‘justicismo’ – único discurso que ainda separa a pós-esquerda neoliberal e a direita de direita.
A obsessão de meter Berlusconi na cadeia, a luta anticorrupção, a invocação eterna de legalidade, legalidade, legalidade, acompanharam sempre a empreitada de demolição sistemática dos direitos sociais conquistados especialmente nas lutas dos anos 60 e 70. Sim, sim! É verdade: aquelas lutas não respeitaram muito a supracitada legalidade, legalidade, legalidade.
A escória que está hoje na liderança do Movimento 5 Estrelas chegou aonde chegou também graças aos seus discursos anticorrupção. E, porque chegou ao poder, pode garantir apoio aos fascistas da Liga.
Quando se vê o quão rapidamente essas vestais ‘anticorrupção’ abandonam todas as promessas eleitorais quando começam as disputas por território cuja energia souberam captar (e vê-se que, ao contrário do que juraram fazer, não se opuseram ao gasoduto que irá de Salento à Suíça, e já começaram a disparar sinais ambíguos também sobre o vale de Susa); quando se vê como governaram Roma, já se pode adivinhar quanta confiança merecem os discursos dessa gente contra corrupções e contra a Máfia.
Observe-se de passagem, rindo meio amarelo, que foi o governo reacionário quem se apresentou como resistência contra os diktats ultraliberais de Bruxelas, e lança-se na instauração da renda mínima – duas orientações políticas para as quais a pós-esquerda nunca teve coragem!
Nem Mimì Lucano, nem Lula nem Dilma Roussef enriqueceram. Mas a comparação acaba aí. Verdade é que o presidente e a presidenta do Brasil mantiveram-se todo o tempo submetidos à corrupção generalizada, da qual os governantes brasileiros atuais e futuros podem afinal se beneficiar.
Muito mais grave que isso, como explica outro artigo desse Lundi Matin#164 [O proletariado brasileiro não foi derrotado pela ditadura, mas pela democracia: “Cada vez que a extrema direita chegou ao poder, foi porque, antes, a classe operária já fora derrotada”, 8/11/2018], aqueles governos submeteram-se aos diktats do agronegócio dos investidores internacionais, submissão que, apesar de algumas bem-vindas medidas de apoio aos mais pobres, abriu o caminho para as execuções por esquadrões da morte.
Se o prefeito de Riace merece toda nossa solidariedade, Lula e Dilma são corresponsáveis pela situação atual em que está o Brasil, onde os defensores da preservação do meio ambiente têm hoje de contar com a capacidade de raciocínio da indústria agroalimentar e do exército, no que tenha a ver com defender interesses do planeta e salvar a Amazônia.
Mostrar as baixezas e fraquezas pessoais de governantes é uma coisa. Outra, muito diferente, é fazer do discurso anticorrupção o centro de uma política e de uma ‘militância’ cuja imprestabilidade hoje já salta aos olhos.
O próprio capitalismo traz nele mesmo uma corrupção essencial: a corrupção das paixões humanas, na vilania de acumular e explorar. Quem define o que é e o que não é corrupção, e sempre em benefício próprio, é a ordem jurídica do próprio capitalismo: aí está a economia da droga, para demonstrar, há muito tempo, o que tem de ser extinto e o que é livre para perdurar.
E o que dizer do legalismo e do justicismo? O legalismo-justicismo é uma das trilhas mais rápidas e mais frequentadas até o que, à falta de melhor palavra, chama-se aqui de “fascismo”.
Porque, como mostraram as manifestações de mulheres no Rio de Janeiro ou de apoio aos migrantes em Palermo e mesmo em Riace, há variadas forças de resistência, no Brasil e na Itália, e também nos EUA de Trump, que podem desestabilizar e o poder dos reacionários e torná-lo enfrentável. Nem na Turquia, nem na Rússia veem-se sinais de instauração de poderes absolutamente totalitários. Os poderes totalitários lá chegaram por falhas na resistência: é preciso construir novas ofensivas, nas ZADs (Zonas a Defender), nas fábricas, nas florestas.
Mas nas batalhas futuras, teremos de forjar conceitos novos, diferentes do fascismo histórico, que ajudem a compreender a ascensão do liberalismo autoritário e suas muitas variantes, mais despóticas, ou menos.
Enquanto se aguarda, se há alguém exposto a risco grave, já em janeiro, nesse trânsito catastrófico do mundo, é Cesare Battisti.
Todos se lembram de que, no início do século, foi em nome da legalidade e do respeito à coisa julgada que se puseram furiosamente contra ele todos os representantes da pós-esquerda italiana. É preciso dizer que essa pós-esquerda italiana nunca engoliu que algum movimento social tenha posto em dúvida, nos anos 60-70, a hegemonia sobre a cultura e o trabalho, de que ela usufruía então, quando ainda não se tornara “pós”, mas preparava-se para passar, do stalinismo ao centro-direita.
Como para mostrar a unificação internacional do legalismo e do fascismo, Salvini já saudou a vitória de Bolsonaro, exigindo que Battisti seja imediatamente entregue às bocarras italianas.
O destino pessoal do nosso amigo pode ser considerado emblemático das execuções que ameaçam milhões de proletários e oprimidos. Emblemático, no sentido de que o assassinato de Battisti, diretamente ou feito na clandestinidade, será, em quase todos os casos de proletários e oprimidos, como no caso de Battisti, crime perfeitamente legal.*******
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