Entrevista do ministro das Relações Exteriores Sergey Lavrov à Newsweek

Transcrição da entrevista do Ministro das Relações Exteriores da Federação Russa – 21 de setembro de 2022

Nota do tradutor:  Devido ao baixo nível do jornalismo praticado pela mídia corporativa ocidental, cujo principal objeto de trabalho é agora a chamada  "narrativa" – uma categoria típica da atitude (pseudo)intelectual pós-moderna – que, em prejuízo da verdade factual, consiste inexoravelmente em uma coleção articulada de  manipulações e falsificações, decidimos traduzir e apresentar aos nossos leitores a transcrição de Sergey Lavrov à Newsweek provida pelo Ministro das Relações Exteriores da Federação Russa.

Apenas dessa vez, e para mostrar que não exageramos nem um pouco quando nos referimos à mídia corporativa ocidental como uma malta infecta de manipuladores e mentirosos,  apresentamos abaixo a introdução publicada pela Newsweek para a entrevista. Pessoas com estômago sensível fiquem avisadas.
                                                                                          
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[Introdução à entrevista pela Newsweek]

Horas depois que o presidente russo Vladimir Putin inaugurou uma nova fase na guerra em curso na Ucrânia com uma mobilização militar nacional parcial, seu diplomata de longa data, o ministro das Relações Exteriores Sergey Lavrov, conversou com o escritor sênior de política externa da Newsweek, Tom O'Connor, sobre o estado do conflito e suas implicações para as relações de Moscou com a comunidade internacional, incluindo outras potências principais, como os Estados Unidos e a China.

A carreira de Lavrov na diplomacia remonta a meio século, durante o calor da Guerra Fria, a queda da União Soviética e a ascensão de Putin, que o nomeou como ministro das Relações Exteriores em 2004. Desde então, Lavrov atuou como o mais alto representante da política externa do Kremlin tanto em Moscou quanto em quase todos os cantos da Terra por onde ele viajou.

Agora, ele está em Nova York para participar da 77ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, que ocorre em um momento particularmente difícil da ordem internacional. A principal entre as muitas áreas-chave de contenção global é o conflito na Ucrânia, que Lavrov defendeu como um esforço necessário para garantir os interesses de segurança nacional da Rússia, mesmo quando Washington e seus aliados dão mais apoio a Kiev, enquanto tentam isolar Moscou no cenário mundial.

Lavrov disse que a abordagem da Rússia incluiria apoiar os referendos recentemente anunciados em partes contestadas da Ucrânia, como as autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que buscam se juntar à Rússia como a Crimeia fez, em um referendo disputado internacionalmente, quando os distúrbios começaram em 2014.

A fim de combater a pressão ocidental, a Rússia promoveu laços mais estreitos com outras potências, especialmente a China, alimentando um crescente relacionamento bilateral que Lavrov chamou de prioridade para Moscou, já que ambas as nações buscam promover uma ordem multilateral em contraste com o sistema "liderado por regras",  defendido pelos EUA. Ele alertou que a crescente distância entre essas duas visões ameaçava a estabilidade global e até mesmo o conflito direto entre as nações mais poderosas do mundo.

Esta transcrição foi levemente editada, sem alteração de conteúdo, para maior clareza. [Ênfase do tradutor]

Pergunta: A operação militar da Rússia na Ucrânia continua, e muitos temem que o conflito possa continuar indefinidamente. A Rússia fez progressos em direção aos seus objetivos declarados de “desnazificação” e “desmilitarização” da Ucrânia, e os dois lados estão mais próximos de um acordo negociado do que estavam em 24 de fevereiro?

Sergey Lavrov: Com suas ações para nutrir um regime neonazista russofóbico na Ucrânia, implantar equipamentos militares e transformar seu território em um trampolim para conter a Rússia, o Ocidente não nos deixou escolha a não ser realizar uma operação militar especial. Seus objetivos são bem conhecidos: proteção da população de Donbass, eliminação de ameaças à segurança da Rússia, desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. Todos eles permanecem relevantes e serão alcançados, não importa quanto tempo leve.

Até o momento, toda a LPR [República Popular de Lugansk], uma parte significativa das regiões DPR [República Popular de Donetsk], Kherson e Zaporozhye foram liberados. A vida pacífica está tomando forma nesses territórios. Apesar do bombardeio e da sabotagem, estão em andamento obras de reparo e restauração nas instalações de infraestrutura civil e no setor residencial. Novas casas, escolas, hospitais, instituições culturais estão sendo construídas.

Gostaria de enfatizar que o Ocidente coletivo, liderado pelos Estados Unidos, está buscando abertamente derrotar a Rússia “no campo de batalha”. Os Estados Unidos e seus aliados estão prontos para sacrificar a Ucrânia em prol de seus objetivos geopolíticos. Para alcançá-los, eles inundam o país com armas, e isso leva a um conflito escalado e prolongado. Isso adia as perspectivas de sua conclusão.

Washington não está interessada em estabelecer paz e tranquilidade na Ucrânia. Isso ficou claro já em março, quando Moscou e Kiev estiveram perto de chegar a acordos mútuos. Essa reviravolta obviamente assustou os americanos e os britânicos, de modo que eles proibiram a Ucrânia de conduzir mais diálogo com a Rússia. Desde então, as autoridades ucranianas evitam o processo de negociação.

Pergunta: A Síria se tornou o primeiro país além da Rússia a reconhecer as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk como Estados independentes. A Rússia vê essas entidades como nações com fronteiras fixas, ou a Rússia apoiaria os esforços para expandir sua soberania para incluir outros territórios nos quais as forças russas atualmente operam na Ucrânia? Alternativamente, a Rússia apoiaria medidas de independência separadas nesses territórios ou mesmo referendos para ingressar na Federação Russa, como foi o caso da Crimeia em 2014?

Sergey Lavrov: O primeiro estado a reconhecer a independência da RPD e da LPR não foi a Rússia, mas a Ossétia do Sul. E depois da Rússia, Abkhazia, Síria e Coreia do Norte também fizeram isso.

A Rússia reconheceu a independência das repúblicas do Donbass dentro das fronteiras especificadas em suas constituições. Na verdade, isso significa as fronteiras administrativas das regiões de Donetsk e Lugansk da antiga RSS da Ucrânia [República Socialista Soviética da Ucrânia – nota do tradutor].

Quanto a outros territórios ucranianos libertados do jugo do regime neonazista de Kiev que você mencionou, partimos da premissa de que seus habitantes têm o direito de determinar independentemente seu próprio destino. Vemos o desejo do povo de juntar-se à Rússia, portanto, trataremos sua escolha com respeito. As intenções correspondentes foram expressas recentemente pelos líderes das regiões DPR, LPR, Zaporozhye e Kherson. Todos eles têm o direito de usar o direito à autodeterminação conforme a Carta da ONU.

Pergunta: O presidente Joe Biden confirmou no início do conflito que houve uma “ruptura completa” nas relações EUA-Rússia. Em que níveis os países ainda estão se comunicando? Estão sendo conduzidas conversas sobre verificação de armas nucleares, desescalação do conflito em regiões como o Mar Negro e a Síria, ou o destino de cidadãos americanos detidos em tribunais criminais, ou no campo de batalha?

Sergey Lavrov: O diálogo interestatal russo-americano foi praticamente congelado devido aos Estados Unidos. Objetivamente, não é possível manter uma comunicação normal com Washington declarando como objetivo a derrota estratégica da Rússia.

Também refere-se às consultas sobre estabilidade estratégica e controle de armas descontinuadas pelo lado americano. Naturalmente, notamos alguns sinais esboçados do governo dos EUA e, pessoalmente, de Joe Biden sobre a retomada do diálogo START [Strategic Arms Reduction Treaty/Tratado de Redução de Armas estratégicas – nota do tradutor], mas o que está por trás desses sinais continua obscuro.

Os americanos estão evitando qualquer interação substantiva sobre a desescalação do conflito regional.

Quanto aos cidadãos americanos detidos, advertimos repetidamente que é contraproducente trazer esta questão ao público. Deve ser tratado profissionalmente pelos órgãos competentes no formato a ser acordado por Moscou e Washington.

Quanto aos americanos presos durante as operações de combate, deve-se recorrer às autoridades em Kiev, bem como aos altos funcionários das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk por meio dos canais diplomáticos oficiais.

Pergunta: As sanções impostas pelos EUA e seus aliados à Rússia causaram um choque na economia global, e uma área de considerável repercussão foi no setor de energia, onde nos EUA e em vários outros países, o preço do gás e outros bens tornou-se uma grande fonte de preocupação. A Rússia espera que o custo interno dessas sanções em breve supere seus benefícios e perturbe a coalizão de países que travam uma guerra econômica contra a Rússia?

Sergey Lavrov: O Ocidente tem imposto medidas restritivas unilaterais sob o pretexto de paralisar a Rússia. No entanto, eles não conseguiram destruir a economia russa. Além disso, as sanções parecem ser uma faca de dois gumes: o aumento dos preços e a diminuição da renda são vistos em muitos países europeus, assim como a escassez de energia e ameaças de convulsões sociais. Os benefícios rotineiros da civilização tornaram-se privilégios dos ricos. Este é o preço que os cidadãos comuns pagam pela política anti-russa das elites dominantes.

Todos os setores das economias europeias (incluindo metalúrgico e químico) prosperam há décadas devido ao fornecimento estável de commodities energéticas baratas russas. Permitiu que os países da UE participassem de competições bem-sucedidas, inclusive com empresas americanas. Parece que isso não será mais o caso, e isso não foi nossa escolha.

Se eles querem agir em detrimento de seus próprios interesses no ocidente, não podemos impedi-los de fazê-lo.

Pergunta: A desconfiança mútua que surgiu desde o início do conflito levou muitos a considerar que o nível anterior de integração econômica entre a Rússia e o ocidente pode não ser alcançado por algum tempo, ou nunca, mesmo que o conflito seja resolvido. A Rússia está preparada para esse cenário no longo prazo e, em caso afirmativo, o quê isso significa para o futuro econômico e geopolítico da Rússia? Podemos ver mais investimentos em estruturas alternativas, como BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai?

Sergey Lavrov: A resposta frenética dos Estados Unidos e seus aliados à operação militar especial da Rússia basicamente traçou o limite de toda uma era de interação entre nosso país e o ocidente. Aqueles que acreditávamos serem parceiros econômicos confiáveis ​​escolheram sanções ilegítimas e uma ruptura unilateral dos laços comerciais.

A Rússia não está feliz com isso: o que foi construído por décadas de trabalho duro foi destruído praticamente da noite para o dia. Bem, vamos tirar nossas próprias conclusões do comportamento de nossos colegas ocidentais – não acho que em um futuro próximo eles serão capazes de restaurar sua credibilidade como colegas de negócios.

Continuaremos trabalhando com os parceiros que estão prontos para uma cooperação igualitária e mutuamente benéfica, que não foram afetados pela histeria anti-russa. E eles constituem a grande maioria da comunidade internacional. Vemos grande interesse na cooperação expandida conosco dos países da Eurásia, África e América Latina, membros e participantes da EEU, CSTO, CIS, SCO, BRICS e muitos outros países não ocidentais.

Continuaremos a nos adaptar às novas realidades de comércio exterior e financeira, intensificando a eliminação progressiva das importações. Juntamente com nossos amigos, diminuiremos a participação do dólar americano no comércio mútuo e usaremos moedas nacionais em acordos mútuos. Pretendemos fazer uso de todas as oportunidades e instrumentos disponíveis para proteger nossos interesses. Não tenho dúvidas de que a Rússia resistirá a qualquer pressão de sanções.

Pergunta: Rússia e China fortaleceram sua parceria estratégica abrangente por anos e ambos os lados dizem que continuarão a fazê-lo mesmo em meio ao conflito na Ucrânia, durante o qual algumas grandes empresas e instituições chinesas foram cautelosas para não desencadear sanções dos EUA ao lidar com mercados russos. O que os eventos desde 24 de fevereiro significam para a relação entre Moscou e Pequim e a ordem internacional multipolar que ambos os governos procuram promover?

Sergey Lavrov: A parceria estratégica com a China continua sendo uma prioridade absoluta da política externa da Rússia. É sustentável, de longo prazo e não depende da volatilidade do ambiente internacional. A relação entre a Rússia e a China é caracterizada por profunda confiança mútua, apoio mútuo na proteção dos interesses nacionais fundamentais de cada um e vontade de expandir laços mutuamente benéficos.

O diálogo intensivo e baseado na confiança entre os líderes – o presidente Putin e o presidente Xi – desempenha um papel fundamental. Em fevereiro deste ano, o líder russo visitou Pequim e, em 15 de setembro, negociações de alto nível foram realizadas em Samarcanda, à margem da Reunião do Conselho de Chefes de Estado da SCO.

No contexto de crescentes tensões internacionais, a abordagem responsável adotada pela Rússia e pela China – membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas – em relação a questões prementes está se tornando cada vez mais relevante. Junto com nossos amigos chineses, continuaremos trabalhando para melhorar a situação mundial, facilitar a criação de um sistema multipolar justo baseado na Carta da ONU e, antes de tudo, no princípio fundamental da igualdade soberana dos Estados.

Pergunta: Este ano marca o 50º aniversário de sua formatura no Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou e você está envolvido na diplomacia de seu país desde então. Olhando para trás em meio século de experiência, como você avaliaria o risco de confronto entre as grandes potências hoje? Os povos do mundo, incluindo nós americanos e russos, estão vivendo um momento particularmente perigoso?

Sergey Lavrov: Infelizmente, a situação global continua a se degradar. A causa principal, e eu tive que falar sobre isso repetidamente, é o desejo persistente do ocidente liderado pelos Estados Unidos de garantir seu domínio global, embora isso seja impossível por razões óbvias. No entanto, Washington e seus satélites fazem de tudo para retardar o processo de democratização das relações internacionais. Eles querem substituir a arquitetura centrada na ONU formada após a Segunda Guerra Mundial e o Direito Internacional por alguma “ordem baseada em regras”. Atuando nas piores tradições coloniais, dividem o mundo em “democracias” e “regimes autoritários”. Tentam “pressionar” aqueles que não concordam com esse rumo, que seguem uma política independente e orientam-se pelos interesses nacionais, usando sanções unilaterais, chantagem e jogo de poder flagrante.

Hoje, os Estados ocidentais canalizam armas e equipamentos militares para o regime neonazista em Kiev e treinam as forças armadas da Ucrânia. Armas da OTAN e dos EUA são usadas para disparar contra o território russo na fronteira com a Ucrânia, matando civis lá. O Pentágono não esconde o fato de passar a Kiev inteligência e designações de alvos para ataques. Registramos a presença de mercenários e conselheiros americanos “no campo de batalha”. Os Estados Unidos, de fato, estão à beira de se tornar uma parte do conflito. Esta é a sua pergunta sobre o risco de uma colisão direta entre as potências nucleares.

Infelizmente, Washington parece ainda estar vivendo no anteontem, pensando em termos de unipolaridade. Eles não podem aceitar o fato de que o mundo moderno não é mais centrado no ocidente. E nunca mais será. Hoje, atores fortes e independentes de países em desenvolvimento surgiram e são cada vez mais visíveis. Esses Estados e suas associações de integração não querem participar da “cruzada” anti-russa instigada por Washington.

Pergunta: Embora saibamos que as autoridades russas declararam que não participam da política doméstica dos EUA, é verdade que a política doméstica tem influência na política externa. A Rússia está acompanhando como as próximas eleições de meio de mandato e as eleições presidenciais de 2024 podem afetar a política dos EUA em relação à Rússia e outras questões de política externa que afetam os interesses da Rússia?

Sergey Lavrov: Mais uma vez, gostaria de reafirmar nossa posição de princípio de não interferência nos assuntos internos de Estados estrangeiros. Os Estados Unidos não são exceção. Não estamos interferindo, mas é claro que estamos monitorando de perto os preparativos para as eleições de meio de mandato de novembro para o Congresso. Isso não é um capricho, mas um dever de diplomatas, jornalistas e acadêmicos. No entanto, posso dizer desde já que não exageramos a importância dos resultados destas eleições no contexto da melhoria das relações russo-americanas, dada a persistente rejeição no Capitólio da própria ideia de diálogo igualitário com Moscou. Ainda é muito cedo para dizer qualquer coisa sobre a campanha presidencial dos EUA em 2024, já que ela ainda não começou.


Fontes:
Revista Newsweek: https://www.newsweek.com/exclusive-russias-sergey-lavrov-warns-us-it-risks-becoming-combatant-ukraine-war-1745064
Ministério das Relações Exteriores: https://mid.ru/en/foreign_policy/news/1830540/


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