EUA e China estão em guerra “pela alma do Peru”, diz analista geopolítico mexicano

Por Nick Corbishley em dezembro 30, 2022 

“Estamos vendo um confronto sub-reptício, uma guerra que ninguém se atreve a nomear, entre a China e os Estados Unidos pela alma do Peru.”

Estas são as palavras (traduzidas do espanhol original para o inglês pelo autor do texto) do renomado analista geopolítico mexicano Alfredo Jalife-Rahme. Jalife-Rahme é professor, escritor, colunista e analista político de ascendência libanesa especializado em relações internacionais, economia, geopolítica e globalização. Suas duas últimas palestras em vídeo semanais (em espanhol) abordaram as causas abrangentes e as possíveis consequências da última crise política do Peru.

Essa crise já resultou no impeachment e prisão do presidente democraticamente eleito Pedro Castillo, e custou a vida de 27 manifestantes. Depois de décadas de tropeço de crise em crise, de escândalo em escândalo e de presidente em presidente, o Peru está preso em uma luta crescente contra os oligarcas e as classes privilegiadas que estão determinadas a manter o poder a qualquer custo e suas legiões de pobres, sem voz e marginalizados, para quem Castillo representava a possibilidade de algo diferente.

Mas não havia de ser assim. Um completo forasteiro em Lima, o ex-professor do interior foi superado a cada passo pela furiosa oposição de direita ao seu governo no Congresso. Mas, de acordo com Jalife, o Peru também é um substituto para uma luta muito maior entre os dois rivais geopolíticos do mundo, os EUA e a China, pelo controle de recursos estratégicos vitais na América Latina.

O “país mais chinês” da América Latina

No momento, esta “guerra” de que fala Jalife é bastante unilateral, dado que a China, ao contrário dos EUA, não tende a se intrometer na política interna da região, ou pelo menos não o fez até agora. Como Alexander Moldovan, um pesquisador sobre movimentos sociais e segurança na América Latina na Universidade de York, disse à emissora estatal turca TRT, a abordagem da China geralmente respeita a soberania nacional (desde que você não seja tibetano ou taiwanês) e, como tal, é popular entre populistas de direita e líderes de esquerda. Em vez disso, deixa o dinheiro falar.

A China já é o maior parceiro comercial do Peru, tanto do lado das exportações como das importações. 32% das exportações do Peru vão para a China, em comparação com apenas 12% para os EUA. Nos primeiros oito meses de 2022, o valor total das exportações do Peru para a China cresceu 3,3% — um grande feito, dada a desaceleração econômica da China resultante das políticas zero de Covid de Pequim.

Como disse o embaixador do Peru na China, Luis Quesada, à Dialogo China, em julho deste ano, o Peru é o segundo maior destino de investimento chinês na América Latina, atrás apenas do Brasil. É o lar do único porto da América Latina que é administrado inteiramente por capital chinês. Uma aliança de empresas estatais chinesas, incluindo a Cosco Shipping, investiu US$ 3 bilhões no recém-concluído Porto de Chancay. Localizado a 80 km ao norte de Lima, o porto deve se tornar um centro vital para o comércio entre a Ásia Oriental e a América do Sul.

O Peru também é um dos três países da região, juntamente com o Chile e a Costa Rica, que têm acordos de livre comércio (ACL) com a China, embora outros cinco, incluindo Colômbia, Panamá e Uruguai, estejam em processo de negociação de ACL com o gigante asiático. Além disso, houve um interesse claro por parte do governo de Pedro Castillo, bem como Pequim para intensificar e expandir seu comércio bilateral. Até se falava em melhorar o ACL do Peru com a China. Nas palavras de Quesada, o país andino deve aproveitar o fato de que “somos o país mais ‘chinês’” da América do Sul.

Isso provavelmente não foi bem aceito pelosegundo maior parceiro comercial do Peru, os Estados Unidos, que tem uma longa e contínua história de organizar ou dar sua bênção a golpes contra governos de esquerda na América Latina. Em 2019, os EUA deram seu apoio a um golpe de direita contra o então presidente da Bolívia, Evo Morales. De acordo com Morales, que acabou recebendo asilo no México e mais tarde na Argentina, a principal razão para sua destituição do cargo foram os interesses comerciais no setor de lítio, incluindo aparentemente TESLA, cujo CEO Elon Musk publicou no Twitter: “Vamos golpear quem quisermos. Lide com isso!”

Como observado em artigos anteriores (incluindo a mais recente aqui), a China fez enormes incursões no chamado “quintal” dos EUA nas últimas duas décadas, como parceiro comercial e investidor.

Os EUA continuam a dominar a América Central e, libra por libra, ainda é a o maior parceiro comercial da América Latina e do Caribe. Mas isso deve-se predominantemente aos seus enormes fluxos comerciais com o México, que representam 71% de todo o comércio entre os EUA e a América Latina. Como a Reuters relatou em junho, se você tirar o México da equação, a China já ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial da América Latina.

Ao longo do último ano, tanto os EUA como a UE começaram a reorientar as suas atenções para a região, muitas vezes com tentativas inflexíveis de diplomacia. Eles incluem as observações do diplomata-chefe da UE Josep Borrell elogiando  os “valores” da colonização europeia das Américas durante um discurso recente dirigido a legisladores europeus e latino-americanos em Bruxelas.

O interesse da UE e dos EUA na região da América Latina está em ascensão à medida que a corrida pelo lítio, cobre, cobalto e outros elementos essenciais para a chamada transição energética “limpa” aquece. É uma corrida que a China tem ganhado muito facilmente até agora.

E embora o Peru possa não fazer parte do Triângulo do Lítio (Bolívia, Argentina e Chile), ele possui depósitos significativos do metal branco. Por uma estimativa, abriga o sexto maior depósito de rocha sólida de lítio do mundo. É também o segundo maior produtor mundial de cobre, zinco e prata, três metais que também devem desempenhar um papel importante no apoio às tecnologias de energia renovável.

Em outras palavras, há muito em jogo em como o Peru evolui politicamente, bem como as alianças econômicas e geopolíticas que forma.

Uma Reunião “Conspícua” 

Como observei em meu artigo de 22 de junho de 2021, Is Another Military Coup Brewing in Peru, After Historic Electoral Victory for Leftist Candidate? [NT: Outro Golpe Militar está se Produzindo no Peru, Após a Vitória Eleitoral Histórica para o Candidato Esquerdista?], o maior parceiro comercial do Peru pode ser a China, mas suas instituições políticas — como as da Colômbia e do Chile — permanecem ligadas aos interesses políticos dos EUA:

Juntamente com o Chile, é o único país da América do Sul que foi convidado a aderir à Parceria Transpacífica, que mais tarde foi renomeada como Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica depois que Donald Trump retirou a participação dos EUA.

Dado isso, os rumores de outro golpe no Peru dificilmente devem ser uma surpresa. Nem a recente nomeação pelo governo Biden de um veterano da CIA como embaixador dos EUA no Peru, como recentemente relatado por Vijay Prashad e José Carlos Llerena Robles:

Seu nome é Lisa Kenna, ex-conselheira do ex-secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo, veterana de nove anos na Agência Central de Inteligência (CIA), e secretária de Estado dos EUA no Iraque. Pouco antes da eleição, a embaixadora Kenna divulgou um vídeo, no qual ela falou dos laços estreitos entre os Estados Unidos e o Peru e da necessidade de uma transição pacífica de um presidente para outro.

Um ano e meio depois, a transição presidencial de Castillo para Boluarte tem sido tudo menos pacífica. Quase 30 vidas já foram perdidas na brutal repressão nacional do novo governo contra os manifestantes.

E parece que Kenna pode ter desempenhado um papel fundamental em colocar as coisas em movimento. Como Jalife observa em sua palestra, ela teve uma reunião “conspícua” com o ministro da Defesa do Peru, Gustavo Bobbio Rosas, em 6 de dezembro, apenas um dia antes do presidente de esquerda democraticamente eleito do Peru, Pedro Castillo, ser deposto em um golpe interno liderado pelo então vice-presidente e agora presidente Dina Boluarte.

General-de-brigada aposentado das forças armadas peruanas, Bobbio Rosas foi nomeado ministro da Defesa apenas um dia antes de seu encontro com Kenna e já foi substituído por Jorge Chavez Cresta, graduado pela Guarda Nacional da Virgínia Ocidental e pelo Centro William J. Perry de Estudos de Defesa Hemisférica em Washington. De acordo com o seguinte tweet do Ministério da Defesa do Peru, a reunião entre Kenna e Bobbio deveria abordar “questões de interesse bilateral”:

Um Movimento Suicida

No momento desta reunião, já se sabia que o congresso do Peru estava preparando sua terceira tentativa de derrubar Castillo. Um dia depois, Castillo selou seu próprio destino declarando na televisão nacional que estava temporariamente dissolvendo o Congresso apenas algumas horas antes do voto de impeachment contra ele. Permanece um mistério por que ele faria tal movimento suicida dado que: a) ele não tinha apoio do judiciário ou dos militares; b) ele provavelmente teria prevalecido na votação da tarde, como seus conselheiros supostamente lhe disseram; e c) pesquisas de opinião mostraram que ele desfrutava de níveis significativamente mais altos de apoio público do que o Congresso notoriamente corrupto e controlado por oligarcas do Peru.

Após seu discurso televisionado, o impeachment de Castillo era inevitável. Ao deixar o palácio presidencial, Castillo e sua família foram ao consulado mexicano para solicitar asilo, mas foram presos no caminho. O próprio Castillo foi condenado a 18 meses de prisão preventiva, sob a acusação, entre outras coisas, de rebelião, conspiração e abuso de autoridade. Seus dois advogados de defesa renunciaram nos últimos dias, levantando suspeitas de que Castillo poderia ser “suicidado”, como algumas pessoas acreditam que aconteceu com o ex-presidente do Peru, Alan Garcia.

A esposa e os filhos de Castillo, que não enfrentam acusações criminais, foram libertados e rapidamente receberam asilo pelo governo mexicano. O governo de Boluarte respondeu à “intervenção” do México em seus assuntos internos, expulsando o embaixador do México, Pablo Monroy, e declarando-o persona non grata.

Naturalmente, o governo dos EUA deu todo o seu apoio ao regime de Boluarte, que desde o início declarou um “estado de emergência” em todo o país. Até agora, o novo governo enviou 140 mil soldados para as ruas na tentativa de esmagar protestos em todo o país. Vinte e sete manifestantes pereceram até agora no banho de sangue resultante. Os protestos parecem ter se unido em torno de uma série de demandas:

  • Renúncia imediata de Boluarte
  • Libertação de Pedro Castillo e divulgação completa do que aconteceu no dia 7 de dezembro
  • Novas eleições (o Congresso do Peru se comprometeu a realizar novas eleições gerais, mas não até abril de 2024)
  • Um referendo nacional sobre a formação de uma Assembléia Constitucional para substituir a atual constituição do Peru, que foi imposta por Alberto Fujimori após seu autoimposto golpe de 1992.

Em meio a todo o caos, Jalife identifica uma série do que ele chama de “fractais” que continuam a fornecer algum grau de estabilidade. Eles incluem a economia mais ampla, que possui uma das taxas de crescimento mais rápidas da América Latina, o sistema financeiro e a moeda nacional. O fato de o Sol peruano ter permanecido estável desde a expulsão de Castillo sugere que os chamados “mercados” não estão exatamente descontentes com os desenvolvimentos recentes.

Por outro lado, muitos governos da América Latina criticaram ou até mesmo se recusaram a reconhecer o regime golpista não eleito do Peru, incluindo México, Argentina, Bolívia, Colômbia, Honduras, Venezuela, Cuba e várias nações do Caribe.* O presidente mexicano Andrés Manuel Lopez Obrador (também conhecido como AMLO), que está programado para se encontrar com o presidente Joe Biden em 9 de janeiro, até levantou suspeitas de envolvimento dos EUA no golpe.

“A primeira mensagem após a remoção do presidente Pedro Castillo veio do embaixador dos Estados Unidos no Peru”, disse AMLO em uma recente coletiva de imprensa matinal. “Então, quando eles declaram estado de emergência, o embaixador vai se encontrar com o presidente nomeado pelo Congresso no Palácio [Presidencial] em Lima.”

As crescentes tensões entre o novo governo do Peru e os governos da América Latina que se recusam a reconhecer sua legitimidade alimentaram preocupações sobre as possíveis repercussões para a chamada “Aliança do Pacífico”, um dos maiores blocos comerciais da América Latina. O bloco, que já estava em ruínas antes da última crise no Peru, atualmente tem quatro membros de pleno direito: Chile, Peru, México e Colômbia, cujos governos estavam estreitamente alinhados com Washington quando o acordo comercial foi formado pela primeira vez, em 2011.

Hoje, tanto o México quanto os governos de esquerda da Colômbia se recusam a reconhecer o regime de Boluarte. AMLO já suspendeu uma cúpula da Aliança do Pacífico no final de novembro devido aos eventos no Peru, principalmente a recusa do Congresso em permitir que Castillo viaje para o evento. A cúpula foi então programada para ocorrer em Lima em 14 de dezembro, mas com Castillo definhando em uma prisão, o México mais uma vez adiou o evento.

Enquanto isso, no Peru, o ciclo de violência continua. Enquanto as instituições civis do Peru lutam entre si, as forças armadas do Peru — a última “espinha dorsal” restante no país, de acordo com Jalife — estão assumindo o controle firme.

O recém-nomeado chefe da Direção Nacional de Inteligência (DINI), Juan Carlos Liendo O’Connor, insiste que os protestos em curso no país não são de caráter social, mas fazem parte de uma “insurgência terrorista”. Ex-coronel aposentado das Forças Armadas do Peru, Liendo O’Conner também trabalhou na Direção de Estratégia, Política e Planos para o Comando Sul dos EUA, que provavelmente indica onde está sua lealdade.

Mas ainda restam dúvidas sobre quanto tempo o governo Boluarte será capaz de se apegar ao poder. Dado que seu governo tem zero legitimidade democrática, é improvável que se mantenha até as eleições agendadas em 2024. Como aconteceu com o governo de Castillo, seus ministros já estão caindo como moscas.

Se Boluarte caísse, seria substituída pelo presidente do Congresso, cargo que vem sendo ocupado desde setembro por José Williams Zapata, ex-general militar que supostamente já teve vínculos com o cartel de drogas de Tijuana no México e é suspeito de encobrir o massacre da Accomarca (1985), um dos exemplos mais notórios de violações de direitos humanos pelo Estado peruano durante os 20 anos de insurgência terrorista no país.

* Notavelmente ausentes da lista estão os dois governos de esquerda do Chile e do Brasil.


Fonte: https://www.nakedcapitalism.com/2022/12/china-and-the-us-are-waging-a-war-for-perus-soul-says-renowned-mexican-geopolitical-analyst.html


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