21/6/2019, Ramin Mazaheri, no Saker Blog, (por permissão de PressTV)
Estou profundamente cético quanto à possibilidade real de os EUA algum dia terem iniciado um ataque de mísseis ao Irã, ataque que, na sequência teria sido cancelado – como o The New York Times ‘noticiou’.
Claro, todos sabemos que o ‘jornal oficial’ dos EUA faz jornalismo de péssima qualidade praticamente sempre – confiam repetidas vezes em fontes não identificáveis, precisamente como se viu nesse ‘noticiário’ recente. Fontes não identificadas e não identificáveis não podem ser dadas por confiáveis –, e nada muda se o The New York Times recorre sempre, outra e outra vez, ao mesmo recurso.
Mas o jornalismo de péssima qualidade não para por aí: o Times exibiu manchete alarmista, de tabloide pró-guerra, tipo Trump Aprova Ataques ao Irã, mas Recua Abruptamente e chega a acrescentar:
“Não ficou claro se Mr. Trump simplesmente mudou de ideia sobre os ataques, ou se o governo mudou de rota por motivos logísticos ou de estratégia. Tampouco se sabe se os ataques podem voltar a ser ordenados.”
Palavras translúcidas como lama, pode-se dizer. Editor mais esperto teria bloqueado essa matéria… mas ok: é o The New York Times.
Qualquer pessoa e país têm lá seus próprios estilos de negociar.
O estilo histórico dos EUA define-se por nunca, absolutamente nunca, os norte-americanos cumprirem o que prometem; e por se recusarem a negociar, até que o poder de pressão dos EUA sobre o interlocutor tenha alcançado o ponto máximo. O estilo dos EUA de Donald Trump, influenciado agora pelo estilo de vendedor de imóveis do presidente, tem sido usar o caos e a instabilidade como modo para criar tumulto entre os oponentes dos EUA e assim aumentar o próprio poder de influência. Trump Usa o Caos para Fazer o que Deseja – como se lia em manchete recente de The Atlantic.
O estilo do Irã define-se pela transparência nos respectivos valores morais – o que gera consternação e indignação entre os políticos militantes da realpolitik supervalorizada no ocidente. O estilo do Irã também é marcado pela paciência no processo de fazer avançar a própria estratégia de longo prazo – por exemplo, em 2016 o Irã assinou um acordo de relações estratégicas de 25 anos com a China – outra nação de negociadores conhecidos pela paciência.
A Europa e as nações da Eurozona – governados pelas estruturas não democráticas da União Europeia e do Eurogrupo, respectivamente – têm um estilo de negociar que se pode definir como uma fachada de classe dominante, para encobrir o mais patético, embora agressivo, servilismo.
Claro que negociações entre esses grupos e indivíduos chegaram, há alguns meses, a um grande impasse; também é claro que as novas linhas e novas posições agora se vão tornando mais claras.
Como se vê já há quase 40 anos, a posição do povo do Irã continua a surpreender e confundir o Ocidente. Ah, sim, sim, os iranianos são acostumados a negociar com governos servis e líderes-fantoches…
O dito “ataque abortado” ao Irã prova que a derrubada de um drone norte-americano é vista pelos EUA como perda imensa: tão imensa que muitos em Washington parecem decididos a iniciar uma guerra, por causa do tal drone. Mas a reação bem-sucedida dos iranianos ao drone atacante é simples desenvolvimento de uma série de eventos e de discussões que se manifestam já há bom tempo e que provam a unidade da nação iraniana, depois que o país viu fracassar as negociações com o Ocidente.
(Escrevo “o Ocidente”, não porque eu seja “antiocidental”, mas porque os países não ocidentais que assinaram o “acordo nuclear iraniano” (China & Rússia) efetivamente mantiveram-se fiéis à própria palavra.)
Depois que Washington renegou o “acordo nuclear iraniano” em maio de 2018, foi natural que houvesse angústia existencial no Irã –, o país dedicara muitos anos à diplomacia; e de repente o arqui-inimigo nacional diz que a diplomacia passava a ser impossível. Natural que o povo iraniano se sentisse exasperado pela beligerância e as falsas promessas do Ocidente; natural também que os iranianos não vissem instantaneamente para que lado dirigir-se.
Mas fato é que hoje, um ano depois, a nação já se recompôs e avançou.
Há discussão pública frequente, rotineira, nas casas de chá e nos mais altos níveis de governo, e há forte concordância em torno da ideia de que o Irã não deve deixar-se degradar ainda mais em novas discussões diplomáticas. Claro que o Irã não tem medo. O Irã não aprecia o modo como o Ocidente traiu as próprias promessas.
A política muda, mas tudo sugere que o Irã esperará até depois das eleições de 2020 nos EUA, para reiniciar seriamente novos esforços diplomáticos. Isso dará à União Europeia algum tempo – e, com sorte, talvez arranjem espinha dorsal menos curvada.
Quanto aos autodesignados “mestres do Universo” em Washington – a decisão dos iranianos, até aqui, de não responder aos telefonemas está sendo administrada em doses, como uma bofetada após outra.
Ao não pular à primeira possibilidade de negociações; ao derrubar um drone; quando o Irã declara publicamente e polidamente que retomará o enriquecimento de urânio; e os ataques ainda inexplicados no Golfo Persa – todos esses movimentos desmoralizam ativamente os EUA, cada dia mais, nas semanas recentes.
O Irã está expondo os EUA em posição nada lisonjeira. Daí que nem chega a surpreender que Washington e The New York Times tenham escolhido a via de agitar sabres e fazer barulho do lado de fora, com esse “quase-ataque”.
A mim não impressionam. Francamente. E acredito que o Irã reagirá de modo semelhante.
Os iranianos parecem hoje unidos na posição que adotaram: negociar é prática de boa-fé; e é indispensável honrar a própria palavra, ou não faz sentido negociar; e não se negocia – nenhum júri discorda disso. Se Ocidente atacar – infelizmente não terá sido a primeira vez.
Claro, trata-se simplesmente do mais recente capítulo num sempre mesmo esforço para desestabilizar o Irã, até a guerra civil. A Guerra Irã-Iraque, a derrubada de um avião iraniano de passageiros, sanções que impedem o acesso a medicamentos, sanções que impedem a venda de petróleo iraniano – durante 40 anos, os EUA e seus aliados dedicam-se em tempo integral a desestabilizar o Irã na esperança de gerar uma resposta reacionária que derrubaria a Revolução Islâmica Iraniana de 1979.
Já há bastante tempo os iranianos compreenderam essa realidade – e estão unidos nesse ponto de vista, tão firmemente quanto estão unidos no desejo de que o Ocidente honre acordos diplomáticos. Infelizmente, os ocidentais não compreendem essa realidade – que os EUA trabalham incansavelmente para gerar uma guerra civil no Irã, para gerar o caos e pôr fim à Democracia Muçulmana. O público ocidental está sendo enganado pela própria mídia, pelos tais 1% e por décadas de iranofobia orquestrada.
Washington e Trump meteram-se, eles mesmos, numa arapuca: depois de um “ataque abortado”, a única escalada possível é “ataque atacado”, “ataque real”.
Claro que não há futuro possível em ataque contra o Irã. O Irã de 2019 não é o Afeganistão nem o Iraque, para listar dois fracassos recentes dos militares dos EUA. Aos EUA só interessa continuar a própria política de ataque ao Irã: dado que é impossível invadir o Irã, é preciso continuar a fomentar a instabilidade dentro do Irã.
De minha parte, lembro que o Irã não se prestará a joguinhos com adversário preso nas cordas, menos ainda com adversário guiado por político inexperiente, que tão pouca importância dá à noção do “bem público”.
É possível que no ano e meio final de mandato que lhe resta o governo errático de Trump volte ao bom-senso sobre o Irã? Talvez Europa, China e Rússia façam ver que o Irã é forte demais para ser designado inimigo eterno a perseguir? Talvez o mundo venha a ver que o Irã tem – no Estreito de Ormuz – um trunfo a jogar, para exigir o fim das mentiras, das sanções e exclusões?
Tudo isso exigirá mais tempo. Mas Trump provavelmente sabe – pelo menos instintivamente – que o Irã não é a Síria; e que qualquer ataque gerará consequências reais para o povo e para interesses dos EUA. Por isso Trump cancelou o ataque (supondo que algum dia o tal ataque tenha sido realmente ordenado).*******
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