Exílio em plena rua principal:[1] o som do mundo unipolar que desaparece

Pepe Escobar – 22 de junho de 2022 – [traduzido por Vila Mandinga]


Vamos direto ao ponto, aos Dez Mais de Putin da Nova Era, anunciados pelo presidente russo, ao vivo, no fórum de São Petersburgo, para ambos, Norte e Sul Globais.

A era do mundo unipolar acabou.

A ruptura com o Ocidente é irreversível e definitiva. Nenhuma pressão do Ocidente mudará alguma coisa.

A Rússia renovou os laços com a própria soberania. Reforçar a soberania política e econômica é absoluta prioridade.

A União Europeia perdeu completamente a soberania política. A crise em curso mostra que a UE não está pronta para atuar como ator independente e soberano. Não passa de conjunto de vassalos dos norte-americanos, destituídos de qualquer soberania político-militar.

Não há soberania parcial. Ou você é nação soberana, ou você é colônia.

A fome nas nações mais pobres pesará na consciência do Ocidente e da eurodemocracia.

A Rússia fornecerá grãos para as nações mais pobres da África e do Oriente Médio.

A Rússia investirá para desenvolver a própria economia interna e para reorientar seu comércio na direção de nações independentes dos EUA.

A futura ordem mundial já está rolando. Será constituída por Estados soberanos fortes. O barco levantou âncora. Sem volta.
Como se sente, o Ocidente coletivo, apanhado agora sob um furacão de fogo cruzado? Bem… a coisa fica ainda mais devastadora, quando adicionamos ao novo roteiro o que há de mais recente no front da energia.

O presidente executivo da Rosneft, Igor Sechin, enfatizou em São Petersburgo que a crise econômica global está ganhando força não por causa das sanções, mas porque é exacerbada por elas. A Europa “comete suicídio energético” ao sancionar a Rússia; as sanções contra a Rússia acabaram com a tão elogiada “transição verde”, já que ela se tornou desnecessária para manipular os mercados. E a Rússia, com seu vasto potencial energético, “é a Arca de Noé da economia mundial”.

Por sua parte, o presidente executivo da Gazprom, Alexey Miller, não poderia ser mais contundente, ao falar do declínio acentuado no fluxo de gás para a UE devido à recusa e/ou à incapacidade da Siemens para reparar o motor de bombeamento Nord Stream 1: “Bem, claro que a Gazprom foi forçada a reduzir o volume de fornecimento de gás para a Europa, em mais de 20%. Mas vocês sabem, os preços aumentaram 20% e, mais, aumentaram várias vezes! Portanto, desculpem se digo que não nos sentimos ofendidos por ninguém. É situação que não nos preocupa.”

Se essa sobrecarga no medidor de dores não foi suficiente para arremessar o Ocidente coletivo (ou OTANistão) em quadro de Histeria Terminal, o comentário afiado de Putin, sobre a possibilidade de liberar Mr. Sarmat, para que visite os “centros de tomada de decisão em Kiev” (que vivem de encomendar o atual bombardeio e correspondentes mortes de civis em Donetsk), definitivamente, sim funcionou:

“Quanto às linhas vermelhas, permitam mantê-las para mim, porque isso significará ações bastante duras nos centros de tomada de decisão. Mas essa é área que não se pode divulgar fora da liderança político-militar do país. Os que fizerem por merecer nossas ações, que concluam eles mesmos quanto ao que podem enfrentar, se cruzarem a linha” (Putin, em São Petersburgo).

Baby, por favor, pare de desmoronar[2]

Alastair Crooke descreveu magistralmente o zugzwang[3] no qual o Ocidente enredou-se e que o pôs a vagar sem rumo, atordoado e confuso. Examinemos agora a situação do lado oposto do tabuleiro de xadrez, com foco na cúpula dos BRICS nessa 5ª-feira, em Pequim.

Assim como chegou a hora da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), da União Econômica Eurasiana (EAEU) e da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ANSA), agora é hora também de um BRICS revigorado, a intensificar também o próprio jogo. Em conjunto, aí estão as principais organizações/instrumentos que estarão abrindo os caminhos para a era pós-unipolar.

China e Índia (que entre elas foram as maiores economias do mundo durante séculos antes do breve interregno colonial ocidental) já estão próximas e aproximando-se ainda mais da “Arca de Noé da economia mundial”.

O G20 – refém da escória FIRE (ing. Finance, Insurance and Real Estate / Finanças, Seguros e Imobiliárias) grupo definido por Michael Hudson como núcleo do cassino neoliberal financeirizado – vai desaparecendo lentamente, enquanto aumenta um potencial novo G8: movimento diretamente ligado à expansão do grupo BRICS, um dos principais temas da cúpula dessa semana. Um BRICS expandido com configuração paralela à do G8 está fadado a ultrapassar facilmente em importância o grupo centrado no Ocidente, e também em termos de PIBs comparados com paridade de poder de compra (PPC).

O grupo BRICS em 2021 já integrou Bangladesh, Egito, Emirados Árabes Unidos e Uruguai ao seu Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Em maio, nos debates em nível de chancelaria, Argentina, Egito, Indonésia, Cazaquistão, Nigéria, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Senegal e Tailândia somaram-se aos representantes dos cinco membros iniciais do BRICS. Os líderes de algumas dessas nações estarão ligados à reunião de cúpula de Pequim.

Os países BRICS jogam jogo completamente diferente do G20, porque o grupo visa as bases: é tudo questão de “construir confiança”, o que se faz lentamente – conceito muito chinês. Estão criando uma agência de classificação de crédito independente – longe da gangue anglo-norte-americana – e aprofundando um arranjo de reservas cambiais. O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) – incluindo os escritórios regionais na Índia e na África do Sul – esteve envolvido em centenas de projetos. O tempo dirá: um dia o NBD tornará supérfluo o Banco Mundial.

Comparações entre BRICS e Quad, aquele mingau de letras inventado pelos EUA, são tolices. O Quad não passa de mais um mecanismo bruto para tentar conter a China. Mas não há dúvida de que a Índia caminha na corda bamba, pois é membro do BRICS e do Quad, e tomou decisão muito equivocada de sair da Parceria Econômica Regional Abrangente (PERA) – o maior acordo de livre comércio do planeta – optando, em vez disso, por aderir ao Quadro Econômico Indo-Pacífico (QEIP) norte-americano.

Já a Índia, habilmente guiada a longo prazo pela Rússia, está sendo orientada a procurar terreno comum essencial com a China em várias questões-chave.

O BRICS, especialmente em sua versão expandida como BRICS+, deve aumentar a cooperação na construção de cadeias de suprimentos verdadeiramente estáveis e um mecanismo de liquidação/compensação para o comércio de recursos e matérias-primas, que inevitavelmente tem de se basear em moedas locais. Então o caminho estará aberto para o Santo Graal: um sistema de pagamento do BRICS, como alternativa confiável ao dólar norte-americano usado como arma de guerra e ao sistema SWIFT.

Enquanto isso, uma torrente de investimentos bilaterais da China e da Índia no setor manufatureiro e de serviços em torno de seus vizinhos deve puxar para cima os participantes menores, no Sudeste Asiático e no Sul da Ásia. Pensem no Camboja e em Bangladesh como engrenagens importantes numa vasta linha de suprimentos.

Yaroslav Lissovolik já havia proposto um conceito BEAMS, como núcleo dessa unidade de integração do BRICS, unindo “as principais iniciativas de integração regional das economias do BRICS, como a Iniciativa Baía de Bengala para Cooperação Técnica e Econômica Multissetorial (ing. BIMSTEC), UEE, o acordo de livre comércio ANSA-China, Mercosul e Comunidade Sul-africana de Desenvolvimento/União Aduaneira do Sul da África (ing. SADC/SACU)”.[4]


É só (BRICS) rock’n roll[5]

Agora, Pequim parece ansiosa para promover “um formato inclusivo de diálogo abrangendo todas as principais regiões do Sul Global , agregando as plataformas de integração regional na Eurásia, África e América Latina. No futuro, esse formato pode ser expandido para incluir outros blocos de integração regional da Eurásia, como o Conselho de Cooperação do Golfo (ing. GCC), UEE e outros.”

Lissovolik observa como o caminho ideal a partir de agora deve ser “a maior inclusividade do BRICS por meio da estrutura BRICS+, que permite que economias menores, que são parceiras regionais do BRICS, tenham voz na nova estrutura de governança global”.

Antes de se dirigir por vídeo ao fórum de São Petersburgo, o presidente Xi ligou pessoalmente para Putin para dizer, dentre outras coisas, que ele podia contar com o apoio da China em todos os temas de “soberania e segurança”. Eles também, inevitavelmente, discutiram a relevância do BRICS como plataforma chave para o mundo multipolar.

Enquanto isso, o Ocidente coletivo mergulha mais fundo no redemoinho. Enorme manifestação nacional de sindicatos na segunda-feira passada paralisou Bruxelas – capital da UE e da OTAN –, quando 80 mil pessoas manifestaram sua indignação ante o custo de vida, que não para de subir. A manifestação exigia que as elites gastassem dinheiro “em salários, não em armas”. O grito uníssono era “Stop OTAN”.

É zugzwang tudo de novo. As “perdas diretas” da UE, como destacou Putin, provocadas pela histeria das sanções, “podem ultrapassar US$ 400 bilhões por ano”. Os ganhos de energia da Rússia atingiram níveis recordes. O rublo chegou ao ponto mais alto, em sete anos, de valorização em relação ao euro.

É quase inacreditável que o artefato cultural pode-se dizer mais poderoso de toda a era da Guerra Fria e da supremacia ocidental – os perenes Rolling Stones, esteja atualmente em turnê por uma UE apanhada “num furacão de fogo cruzado”.

Em todos os shows, o grupo apresenta, pela primeira vez ao vivo, um de seus primeiros clássicos: Out of Time [Na hora errada].

Soa muito como um réquiem. Então cantemos todos “Baby baby baby / você chegou na hora errada”. Vladimir (“é gás, gás, gás”) Putin e seu auxiliar Dmitry (“Só Faça o Que Eu Mando”) Medvedev parecem ser os caras que realmente se divertem, aí, quebrando tudo. É só rock’n roll (BRICS), mas a gente gosta.


  1. Exile on Main Street, Rolling Stones, álbum, 1972.
  2. Baby please, stop breaking down, Rolling Stones, 1972, gravado no álbum “Exile on Mainstreet” [NTs].

  3. Zugzwang. Do jogo de xadrez. Aplica-se à situação em que o jogador, obrigado a jogar, só tem movimentos que agravarão sua situação. “As brancas estão em Zugzwang”. 22/6/2022, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation, acessível em The AltWorld
  4. Sobre isso, ver 4/6/2018, “BEAMS of the Sunrise: A Look at BRICS 5-Year Cycles”, Yaroslav Lissovolik, in Clube Valdai (ing.) [NTs].
  5. It’s only rock’n roll [NTs].

Fonte: https://www.unz.com/pescobar/exile-on-main-street-the-sound-of-the-unipolar-world-fading-away/

One Comment

  1. Amazing. This is the real International life. Many thanks, Pepe Scobar.

    24 June, 2022
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