18/12/2018, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
“A verdadeira razão por trás da guerra ‘comercial’ EUA-China pouco tem a ver com o comércio real (…) O que está realmente à base do conflito de civilizações entre EUA e China (…) são as ambições da China de liderar a tecnologia de próxima geração, como a inteligência artificial (IA), que depende de conseguir projetar e produzir chips de ponta; por isso Xi prometeu pelo menos $150 bilhões, para ampliar o setor”, escreve ZeroHedge. (…)
Até aí, nenhuma novidade. Mas por trás dessa ambição há outra, pouco mencionada, o conhecido “elefante na sala”: é que a ‘guerra comercial’ é também o primeiro estágio de uma nova corrida armamentista entre EUA e China – embora se trate de novo ‘gênero’ de corrida armamentista. Essa corrida armamentista de ‘nova geração’ trata de alcançar superioridade nacionalno campo tecnológico para o longo prazo, mediante Computação Quântica, Big Data, Inteligência Artificial (IA), Aeronaves Hipersônicas, Veículos Eletrônicos, Robótica e Ciber-segurança.
O projeto chinês não é secreto: é de domínio público: o ‘Made in China 2025’ (atualmente reduzido, mas longe de esquecido). E o gasto previsto pelos chineses ($ 150 bilhões) para alcançar a liderança na tecnologia – será enfrentado custe o que custar (‘head on’, nas palavras de ZeroHedge),
“por uma estratégia [de oposição] de “America First”: Daí que a ‘corrida armamentista’ nos gastos em tecnologia (…) esteja intimamente ligada aos gastos da Defesa. Nota: o FMI prevê crescimento substancial no gasto militar de EUA e China nas próximas décadas, mas o que muito surpreende é o seguinte: à altura de 2050, a China superará o gasto dos EUA, com investimento de mais de $4 trilhões nos militares, e com os EUA com $1 trilhão menos que isso, ou $3tn (…). Significa que mais ou menos em torno de 2038, praticamente daqui a duas décadas, a China ultrapassará os EUA em gasto militar.”
Essa intimidade muito próxima entre tecnologia e defesa, no futuro pensamento de defesa dos EUA é clara: trata-se sempre de dados, grandes dados [ing. big data] e Inteligência Artificial (IA). Artigo em Defense One expõe isso muito claramente,
“Os domínios de combate ‘espaço’ e ‘ciber’ são campos divorciados, largamente, da nua realidade física da guerra. Mas para Hyten [Gen. John E. Hyten, comandante do Comando Espacial da Força Aérea dos EUA], esses dois espaços não habitados refletem-se especularmente, de outro modo: a guerra moderna trava-se nesses campos – de dados e informações. “O que são as missões que cumprimos hoje no espaço? Prover informação; prover vias para o trânsito da informação; em conflito, negamos aos adversários acesso àquela informação,” – disse ele em pronunciamento na 4ª-feira na conferência anual da Associação da Força Aérea, próximo de Washington, D.C. O mesmo vale para o domínio ‘ciber’.
Os EUA fazem guerra com ferramentas que exigem muita informação (…) Inevitavelmente, mais adversários empregarão eventualmente drones conectados por dados e com suas próprias armas específicas. O pesado componente informacional ativo nas armas contemporâneas, especialmente no armamento usado por forças aéreas, também cria vulnerabilidades. Essa semana, líderes da Força Aérea discutiram o que está sendo trabalhado para reduzir a vulnerabilidade dos EUA, ao mesmo tempo em que a aprofundam para os adversários dos EUA”.
Assim sendo, a ‘linha de frente’ dessa guerra comercial/de tecnologia/de defesa, efetivamente gira em torno de quem possa projetar – e fabricar semicondutores de ponta (dado que a China já lidera nos setores de Big Data, Computação Quântica e Inteligência Artificial). E é nesse contexto que o comentário do general Hyten, sobre reduzir a vulnerabilidade dos EUA, ao mesmo tempo em que os EUA buscam aprofundar a vulnerabilidade dos seus concorrentes ganha maior significado.
Para Washington, o plano é bloquear a exportação (vale dizer, sancionar as exportações) das chamadas “tecnologias fundacionais” – tecnologias capazes de promover o desenvolvimento numa ampla gama de setores.
E o equipamento para fabricar chips, ou semicondutores – o que não surpreende ninguém – é uma das áreas-alvo cruciais, que estão sendo discutidas.
Mas o controle sobre a exportação é só uma parte dessa estratégia de guerra, de ‘negar (big) data’ ao inimigo. Porque o setor de semicondutores é um dos setores no qual a China é realmente vulnerável, uma vez que a indústria global de semicondutores depende crucialmente de apenas seis empresas fabricantes de equipamento, das quais três têm sede em território dos EUA. Juntas, essas seis empresas fabricam praticamente todas as ferramentas de máquinas e programas [ing. hardware and software] necessários para fabricar chips. Implica dizer que se os EUA impõem bloqueio a exportações, a China pode realmente perder acesso as ferramentas basicamente indispensáveis para produzir os chips que tenham projetados. (Sim, a China pode retaliar, fechando o suprimento de terras raras, das quais depende toda a tecnologia sofisticada).
“Você não pode construir uma fábrica de semicondutores sem usar produtos das grandes fabricantes de equipamentos, nenhuma das quais opera em território chinês” – disse Brett Simpson, fundador de Arete Research, empresa de pesquisa, análise e consultoria do mercado de ações. E, como faz também o FT, observa que “a real dificuldade nem é tanto o serviço de projetar oschips, mas a fabricação de chips efetivamente de ponta.”
Assim sendo, esse é o ponto: os EUA tentam posicionar-se no controle não só do conhecimento-tecnologia ‘puro’, mas também, além disso, também no controle da cadeia de suprimento prático, de experiência e knowhow, no esforço para expulsar a China para fora da esfera tecnológica ocidental.
Ao mesmo tempo, outro braço da estratégia dos EUA – como já se viu em ação contra Huawei, empresa líder global na tecnologia 5G (campo em que os EUA já estão atrasados) – é agir para meter medo em todos que se interessem por incorporar a tecnologia 5G nas respectivas infraestruturas nacionais. Esse foi o sentido da prisão de Meng Wanzhou (por não respeitar as sanções impostas pelos EUA).
Mesmo antes da ‘prisão’ dela, os EUA já estavam sistematicamente bloqueando o trabalho da empresa Huawei, servindo-se sempre das palavras mágicas ‘riscos de segurança’ (exatamente como também tentam bloquear os russos dos processos de venda de armas no Oriente Médio, e também dos processos de alta tecnologias: estados ficaram proibidos de comprar equipamentos russos de defesa, porque esses negócios dariam à Rússia uma ‘abertura’ para conhecer as capacidades técnicas da OTAN).
E, como o general Hyten esclareceu perfeitamente, não se trata só de ampliar os impedimentos para acesso tecnológico ou físico, e de promover a vulnerabilidade de adversários no campo dos chips: os EUA também planejam estender seus bloqueios para impedir também o acesso tecnológico ou físico, de concorrentes dos EUA, também aos equipamentos espaciais, ciber, de aviônica e militares.
É outra Guerra Fria – mas dessa vez se trata de negar acesso a tecnologias e a dados.
Ora… A China, com sua economia centralizada, jogará dinheiro e cérebros e criará suas próprias linhas de abastecimento, sua própria “esfera não dolarizada”: para semicondutores; para componentes – e para uso seja civil seja militar. Talvez demore, mas não há dúvidas de que a solução virá.
Uma das consequências dessa nova corrida armamentista entre EUA e China-Rússia – é, claramente, que linhas de suprimento especializadas, com baixas populações, terão de ser descartadas, e surgirão novas, cada uma em sua própria respectiva esfera: vale dizer, de um lado, dentro da esfera OTAN-dólar; de outro lado, na esfera não-dólar, liderada por China e Rússia.
E não haverá só essa diferenciação e separação de linhas de suprimento físicas. Caso os EUA persistam em suas táticas de estilo ‘Guerra ao Terror’ contra Huawei, com ‘entregas especiais’ de empresários estrangeiros, homens ou mulheres, acusados de desobedecer sanções de amplo espectro impostas pelos EUA contra empresas de tecnologia, haverá também diferenciação e separação nos conselhos diretores e de administração, para evitar que funcionários das empresas sejam presos e processados individualmente. Já está acontecendo grave limitação a viagens de executivos de várias empresas para vários países onde mantêm negócios (efeito da prisão de Meng Wahzhou) – e também para evitar que funcionários de empresas norte-americanas sejam presos, por efeito de represália.
A bifurcação da economia global já está em curso. Começou com o regime de sanções geopolítico-financeiras dos EUA (as “Guerras do Tesouro”, ing. Treasury Wars) – e providências, nos estados atacados, para se descolarem da esfera do dólar. Os ‘falcões pró-guerra’ que cercam o presidente dos EUA estão inventando agora uma nova safra de ‘crimes tecnológicos’ para usar como motivo para novas sanções – tudo, ostensivamente, para dar a Trump sempre mais de seu tão desejado ‘poder de barganha’. Claramente, os falcões estão usando o pretexto do poder de barganha para subir muito a aposta contra China, Rússia e seus aliados, muito além do necessário para apenas garantir ‘mais cartas’ na mão do presidente. O mais provável é que estejam tentando um Reset em todo o equilíbrio de poder na disputa EUA contra China e Rússia.
Consequência óbvia e inevitável tem sido a acelerada separação financeira, obrada por países que querem deixar a esfera do dólar; e o desenvolvimento de uma arquitetura sem dólar. Numa palavra, é a desdolarização.
Efetivamente, os EUA parecem preparados para destruir o status em que sempre viveram, de gestor da moeda internacional de reserva, para ‘salvar-se’, para ‘Fazer a América Rica Outra Vez’ [‘Make America Rich Again’, MARA] e impedir a ascensão da China.
Mas enquanto põe fogo na hegemonia do dólar, o governo Trump põe fogo também na própria ‘ordem global’ controlada pelos EUA, que vai deixando de ser global, para se converter em simples esfera reduzida de aliados tecnológicos dos EUA… contra China e o planeta não ocidental.
As consequências domésticas para os EUA serão sentidas na frustração (desconhecida dos norte-americanos) de descobrir o quanto pode ser difícil se autofinanciar, depois de os EUA se habituarem ao autofinanciamento, ao longo dos últimos cerca de 70 anos.
Peter Schiff, principal executivo global e estrategista-chefe da consultoria Euro Pacific Capital, diz que:
“O dólar – que tem status de moeda internacional de reserva [os EUA] estão pondo em risco esse status. E não acho que o mundo goste muito de dar aos EUA esse tipo de poder… poder para que [os EUA] imponham regras próprias e exijam que o resto do mundo obedeça cegamente. Quero dizer: acho que as ramificações disso são maiores e mais amplas do que tudo se que vê em andamento hoje no mercado de ações. Entendo que, no longo prazo, o dólar acabará enfraquecido, e a função que ainda tem de moeda internacional de reserva será comprometida. Quando acontecer, vai-se também o padrão de vida nos EUA: porque vai colapsar.”
“As pessoas tendem a achar que temos todas as cartas, porque temos esse descomunal déficit em relação à China. Mas é o contrário. Acho que o fato de eles nos abastecerem com todo tipo de mercadoria de que nossa economia carece, e o fato de os chineses serem detentores de grande parte da dívida externa dos EUA e mesmo assim continuarem a nos emprestar todo esse dinheiro que permite que os EUA vivamos muito acima dos nossos próprios meios… – Acho que quem está escolhendo a música são eles; os EUA temos de dançar como os chineses decidam.”
Essa Nova Guerra Fria em torno de Big Data e tecnologia polarizará a economia mundial em duas esferas, e de fato já está polarizando o mundo em termos de ‘conosco, ou contra nós’, quer dizer, contra o paradigma norte-americano. Politico observa:
“A campanha global do governo Trump contra a gigante de telecomunicações Huawei está colocando a Europa contra seus próprios interesses – no que tenha a ver com a China. Em meio a um conflito comercial EUA x China, Washington passou os últimos meses pressionando seus aliados da UE, pelos embaixadores, para tomarem posição mais forte contra fornecedores de telecomunicações chineses, como a Huawei e a ZTE.
A violenta pressão dos norte-americanos (…) está expondo falhas entre os aliados dos EUA na Europa, bem como dentro da chamada comunidade de inteligência “Cinco Olhos” – que tem seguido em grande parte a liderança dos EUA – e outros que resistem à pressão americana para desistir da tecnologia chinesa.
Por outro lado, há a Alemanha, que quer provas dos Estados Unidos de que a Huawei representaria um risco de segurança, assim como França, Portugal e uma série de países da UE do centro e do leste.
As atitudes cada vez mais divergentes mostram como Donald Trump está forçando os próprios aliados a tomar partido numa disputa global e a atropelar os próprios interesses econômicos – muitas vezes profundamente associados aos produtores chineses – em nome de manter uma aliança de segurança com Washington”.
O potencial para desdolarização acelerada é um dos aspectos, mas há outra potencial falha inerente à repatriação das linhas de suprimento do varejo. Os ganhos das empresas norte-americanas aumentaram muito ao longo das duas últimas décadas. Parte desse aumento teve a ver com ‘dinheiro fácil’ e ‘crédito fácil’; mas outro elemento decisivo foi o corte nos custos – quer dizer, a ‘expatriação’ dos mais altos custos de produção nos EUA (altos salários, impostos e direitos trabalhistas), para estados onde a mão de obra é mais barata e menos regulada.
A bifurcação da economia global que se aproxima tem portanto, como consequência inevitável, a ‘repatriação’ da produção de baixo custo, para estados mais fortemente regulados – como são os EUA e os países europeus.
Talvez seja excelente – mas com certeza significa que custos e preços aumentarão nos EUA, o que implica que os modelos comerciais serão atingidos diretamente, quando se consumar a ‘repatriação’ dos postos de trabalho. O padrão de vida fatalmente colapsará nos EUA, como Peter Schiff já previu acima.
A alienação e o descontentamento dos “deploráveis” nos EUA e dos “Coletes Amarelos” na Europa são sem dúvida problema profundo – e problema que não será resolvido por alguma Nova Guerra Fria. As raízes de nossos descontentamentos atuais estão precisamente no tal paradigma da liquidez ‘fácil’ e do crédito ‘fácil’, que centrifugou nossas sociedades para o paradigma dos 10% que tudo possuem e 90% que nada possuem, paradigma que tão completamente degradou a noção de estado de bem-estar e segurança.
Claro que esse descontentamento só pode ser realmente superado, se cuidarmos desse nosso paradigma de economia super financeirizada – serviço do qual nossas elites não cogitam nem querem que se cogite.*******
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