7/11/2020, Alistair Crooke, Strategic Culture Foundation
Um efeito já evidente da eleição nos EUA foi o colapso da prometida ‘Onda Azul’ – implosão que marca ‘o começo do fim’ de um feitiço poderoso que tomou conta do ocidente. Falo do feitiço ao qual Ron Chernow, o aclamado historiador dos presidentes dos EUA deu crédito e prestígio, ao desdenhar, como episódio efêmero o “momento de completa confusão” pelo qual os EUA estariam passando, um “interlúdio surreal na vida dos EUA”. Já não é possível insistir que o momento atual seria ‘normal’. Vença ou não vença a corrida para a Casa Branca, o Trumpismo Republicano permanece ‘presidente’ de metade dos EUA.
Biden, por outro lado, serviu como uma possibilidade de Restauração – uma volta a algum consenso oco na política norte-americana – de alguma ‘sanidade’ de fatos, ciência e verdade. Biden, houve quem esperasse, seria agente de avassaladora vitória eleitoral que determinaria inapelavelmente o fim da terrível interrupção no ‘normal’, que seria Trump. Apoiadores de Biden foram arregimentados, Mike Lind, intelectual e professor norte-americano observou, em torno da ideia de os EUA andarem rumo a uma sociedade ‘gerenciada’ – baseada na ‘ciência’ – que seria controlada e refinada essencialmente por uma classe gerencial, de experts.
Com o tempo, Lind sugere, a sociedade norte-americana começaria a se afastar mais e mais facilmente de suas raízes republicanas, mediante um processo que já estaria em andamento: via movimentos para alterar a ordem Constitucional e outras leis, para fazer acontecer uma mudança no modo como os EUA são governados.
A noção contudo, de o que os EUA – como Ideia – constituem hoje, foi fraturada, como duas placas tectônicas, que agora se movem em direções muito diferentes. E provavelmente movem-se ainda para mais longe uma da outra, com cada ‘placa’ cada vez mais firmemente convencida de que ‘venceu’, mas a doçura da vitória lhe teria sido roubada.
A fratura do ‘Normal’, por sua vez, proporciona algum tipo de descanso para grande parte do mundo.
Permanece o fato de que a eleição produziu um resultado no qual é fartamente claro que metade do eleitorado norte-americano votou precisamente para expulsar do mundo a outra metade. É empate – com a Suprema Corte e o Senado em mãos de um dos partidos, e a Câmara de Representantes e a Casa Branca (possivelmente) em mãos do outro. Como Glenn Greenwald alerta:
Não importa qual seja o resultado final, sempre haverá, num lado ou no outro, talvez dos dois, dúvidas substanciais sobre sua legitimidade. E para isso não é preciso nenhuma alucinação conspiratória. Sistema eleitoral inflado com tais quantidades de caos, erro, resultados adiados e viradas aparentemente inexplicáveis semeará dúvida e desconfiança até entre os cidadãos mais racionais.
Apesar de as contas e os mapas sugerirem que Biden provavelmente terá 270 votos eleitorais, permanece vigente o velho dito segundo o qual ‘o jogo só acaba quando termina’. Os cenários da votação nos ‘estados oscilantes’ chaves só se aplicam se não há houver contestação, fraude ou roubo. Mas nesse caso, há tudo isso. Se você está ‘recheando’ urnas eleitorais, primeiro você espera o fim da votação regular, porque você precisa saber de quantos votos ‘precisa’ (à parte as anomalias matemáticas) para empurrar seu candidato até o topo. Trump, talvez muito apressadamente, divulgou os números de votos Republicanos às 2h30 da madrugada da 4ª-feira. E imediatamente, multidão de votos apareceram em algumas zonas de apuração, por volta das 4h. É o que parece ter acontecido em Wisconsin, onde mais de 100 mil votos pró Biden apareceram, ‘do nada’, pelo que se sabe, num pendrive entregue em mãos, vindo de um distrito Democrata. Com esses votos, Biden passou à frente em Wisconsin – mas o litígio está em andamento. Assim também, parece que votação gigante de “eleitores à distância” surgiu em Michigan, também pesadamente a favor de Biden.
É só o começo de nova fase, ainda mais incerta, que se pode arrastar por semanas. É possível que, no fim, o Congresso tenha de validar a eleição e decidir, no final de janeiro. Enquanto isso, há coisas que já são sabidas com muito mais certeza: a maioria Republicana pode durar até a eleição de 2024. Então, mesmo que Biden esteja na presidência, sua agenda já não sobreviverá àquele ano.
Pode até emergir um presidente, mas não será, como antes, presidente ‘firme’. Ele ou ela não pode apresentar-se como ‘o desejo da maioria’. Seja quem for confirmado pelo Congresso não pode declarar que representa ‘a nação’. O consenso está fraturado e é difícil qualquer liderança que possa reunir os norte-americanos como ‘povo unido’.
“Não há nenhuma força importante, cultural, religiosa, política ou social que hoje mais una que divida os norte-americanos, observa David French em novo livro Divided We Fall: America’s Secession Threat and How to Restore Our Nation [Divididos caímos: Secessão nos EUA e como Restaurar Nossa Nação].
French — conservador anti-Trump — argumenta que as divisões nos EUA são tão grandes, e o sistema político não pessimamente concebido para enfrentá-las, que as diferenças podem, sim, levar à secessão: “Se forçamos e forçamos e forçamos o povo, ninguém pode assumir que o povo não se divida” – escreve ele (pesquisa de 2018 concluiu que cerca de ¼ de cada partido – Democrata e Republicano – definia o partido oposto como “o mal”).
Um racha ideológico e concomitantemente os EUA contestados como Ideia têm implicações geopolíticas imensas, que vão muito além dos EUA como tais – e principalmente para elites da Europa. Os líderes europeus não previram que Trump fosse eleito em 2016. Subestimaram o Brexit. E esse ano outra vez leram erradamente a política norte-americana. Ansiaram por uma vitória de Biden, e até hoje ainda não veem a conexão entre a rebelião popular dos vermelhos Republicanos com Mr. Trump, e os furiosos protestos que agitam a Europa contra o lockdown.
Separar placas tectônicas – mais estrategicamente – usualmente assinala um tipo de dualismo que pressagia conflito civil. Em outras palavras, a separação das placas e o afastamento entre elas converte-se em disputa ideológica pela natureza da sociedade e do tecido institucional da sociedade.
Mike Vlahos, historiador e ex-professor do War College alerta (fazendo eco a Lind), que
“há, aqui, mais que uma luta oculta e em certo sentido escondida – pela qual, com o tempo, as sociedades começam a se afastar mais e mais facilmente das próprias raízes. As elites ocidentais dominantes atualmente tentam cimentar o controle sobre a sociedade [movendo-se rumo a uma sociedade ‘gerenciada’]: Para ter total controle sobre a direção da sociedade, e, claro, um quadro de leis e normas que proteja a riqueza das mesmas elites.”
“Para surpresa de todos, e dado que os Republicanos estão representados por um bilionário que tem muitíssimos amigos em Manhattan – doadores de Wall Street que doam para as duas campanhas, superaram doadores que doaram só para Biden, na proporção de 5:1”.
Por que, pergunta Vlahos, Wall Street investiria num homem – Biden – e num Partido que ostensivamente procuram empurrar os EUA na direção dessa tal sociedade ‘gerenciada’ progressista? Porque estariam convencidos da necessidade de reestruturar as relações econômicas e geopolíticas mundiais? É essa a luta oculta de Vlahos?
Muitos dessa elite entendem que, nesse momento, estamos naquele tipo de monumental ponto de inflexão. Em resumo, a narrativa para ele é simples: o planeta já está economicamente e demograficamente superdistendido; o modelo da expansão econômica infinita explodiu; e a dívida global e o gasto do governo também estão prontos para explodir.
Para esse tipo de mentalidade, só com uma ‘quarta revolução industrial’ será possível ‘tornar quadrado esse círculo’. The Reset visa deliberadamente a interromper todas as áreas da vida, mas numa escala planetária. Terapia de choque, pode-se dizer, para mudar o modo como nós humanos pensam sobre nós mesmos e nossa relação com o mundo.
O Great Reset é como um ‘milagre’ pela banda da oferta, alcançado mediante automação e robótica de pleno espectro. Um mundo onde o dinheiro é digital; a comida é criada em laboratório; onde tudo é contado e controlado por monopólios gigantes; e a existência diária é microgerenciada por Inteligência Artificial sempre presente e sempre pressionando, que registra pensamentos e sentimentos, antes até de as pessoas terem chance de formular esses pensamentos.
Mike Vlahos observa que, de um modo estranho, essa história dos EUA reproduz, como imagem especular, a histórias da antiga Roma no último século da República – com, de um lado a classe da elite romana; e, de outro, os Populares, como equivalentes dos norte-americanos Republicanos:
“É de fato a história da Roma dividida do último século da República, e a segue muito bem – com a transformação pela qual passam hoje [os EUA] – e é uma transformação (…). A sociedade que emergiu no fim da Revolução Romana e da guerra civil (…) teve também um elite, como classe totalmente dominante.
“Foi um novo mundo, com os grandes proprietários de terra e seus latifúndios [fonte de riqueza, sob trabalho escravo], no qual os ‘Grandes Homens’ que lideravam as diferentes facções nas guerras civis tornaram-se poderosos senadores que dominaram a vida romana pelos cinco séculos seguintes – enquanto o Povo, os populares, foi contido como elemento passivo – não indefeso – mas de modo geral dependente e não participante da governança romana: Assim se esvaziou a criatividade da vida de Roma, o que acabou por levar à desintegração.”
“… a desigualdade nos EUA hoje é tão grande quanto no período imediatamente antes da Revolução Francesa, e reproduz o que acontecia em Roma naquele longo século de transformação. O problema que temos agora, e que fará essa revolução mais intensa, é, creio, a conclusão – e a agenda – cínicas dos Democratas, segundo as quais bastaria deixar para trás os norte-americanos dos quais eles não necessitam [na Nova Economia].
Equivale a dizer: toda a América dos Trumpistas Republicanos, e metê-los numa situação de tal miséria e marginalização, da qual não possam recuperar-se a ponto de constituir uma força rival – como foi a Frente Popular.
“Acho que o que estamos vendo aqui [nos EUA] é profundo: a sociedade norte-americana – que emergirá dessa quadra – será completamente diferente. E, francamente, já se sente diferente. Sente-se – como se sentiu nos últimos quatro anos – como se estivéssemos num regime já em curso de guerra civil, na qual profundo desamparo da sociedade é agora o modo normal como transferimos o poder. Questões serão resolvidas [momentaneamente], e o caminho da sociedade é [dolorosamente] carregado de violento conflito. Esse será o caminho dos EUA por várias décadas à frente.
“O problema disso, no curto prazo, é que ainda há porção suficiente da nação que se mantém em pé e pronta para lutar. O problema é: as últimas energias da República Velha podem ainda ser aproveitadas contra essa transformação já aparentemente inevitável?”*******
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