Lady Bharani e Quantum Bird perguntam ao Professor Ramez Maalouf

Comunidade Saker Latinoamérica – 30 de dezembro de 2022

Oi professor Ramez, seja muito bem-vindo ao Saker Latinoamérica! Estamos felizes pelo senhor ter aceitado o nosso convite!

São apenas duas perguntas, mas, sabemos, ambas condensam muitas informações e remetem a vários desdobramentos. (Os grifos são nossos.)

I – A burguesia brasileira e a burguesia do Brasil

Pergunta: Sabemos que o senhor faz uma distinção entre burguesia brasileira e burguesia do Brasil. Qual seria essa diferença e como ela se aplica ao contexto em que vivemos hoje?

Professor Ramez Maalouf: Bom dia e Feliz Ano Novo! Peço desculpas por responder hoje, mas estou sem computador. Uso o meu celular para responder.

Poderíamos falar em burguesia brasileira se fizéssemos menção à uma burguesia autóctone, isto é, formada por pessoas nascidas no Brasil, que vivem aqui e que mantêm seus negócios aqui, com sede no território nacional. Podem até não ter nascido no Brasil, afinal nós tivemos inúmeros empresários brasileiros de origem estrangeira, mas, seus negócios eram desenvolvidos em território nacional e suas vidas estavam atreladas ao Brasil. Suas residências estavam no território nacional, assim como a sede dos seus negócios.

Bem, isso era a norma até o início da década de 1990, a partir de então, com a instalação do regime liberal, isto é, de um sistema político baseado na liberdade para o grande capital, na esteira da extinção do Bloco Socialista na Eurásia, isso deixa de existir. O Brasil passa a sofrer um processo de desindustrialização aliado a outro processo de desnacionalização das atividades produtivas. Dessa forma, o que era produzido aqui passou a ser importado. Essa mudança foi expressa pelas palavras do então presidente-eleito ultraliberal Fernando Collor de Mello quando chamou os carros montados no Brasil de “carroças”. Veja, o setor automobilístico era totalmente dominado pelas multinacionais, mas, atrás delas, estava a indústria de autopeças, que era quase 100% nacional. Com a liberação das importações, a indústria nacional de autopeças, que até então, se mantinha brasileira, é varrida do mapa, entrando em seu lugar as multinacionais, cujos centros decisórios se encontram fora do Brasil.

Esse processo de liberalização / desnacionalização / desindustrialização, iniciado na década de 1990 e nunca mais revertido, foi tão radical que os empresários brasileiros se tornaram rentistas e, ao invés de buscarem retomar as rédeas das atividades produtivas no país, preferiram simplesmente comprar mansões em Miami e passar a viver em solo estadunidense, claro, obtendo para isso, a cidadania desse país de triste memória para quem lutou por justiça social e pela Democracia no Brasil.

Dessa forma, deixamos de ter uma burguesia brasileira e passamos a ter uma burguesia colonial, saqueadora das riquezas nacionais. Essa burguesia colonial do Brasil não se considera brasileira, mantém seus filhos estudando fora do território nacional, seja no ensino fundamental, seja no ensino médio, seja no ensino superior, seja na pós-graduação. Ela perde a identidade nacional e adota a identidade do colonizador. A isso muito facilita a ideia de que o Brasil, isto é, da ideologia criada sobre o país, é parte da “civilização ocidental”.

Essa ideologia foi explicitada nas obras do general Golbery do Couto e Silva, na década de 1960, nos preparativos para o golpe de Estado e invasão naval ianque de 1964, no ápice da Guerra Fria. Nessas obras, o general, principal mentor ideológico do golpe, afirma que o Brasil não apenas fazia parte do Bloco Ocidental, isto é, do bloco dos países capitalistas subordinados aos EUA, mas, como também era parte da chamada “civilização ocidental”.

A afirmação foi feita ignorando totalmente o fato de que a grande maioria da população brasileira tem origem autóctone e africana, com expressivas populações de origem asiática, também (basta lembrarmos da grande comunidade de imigrantes árabes originada do Sudoeste Asiático, assim como os descendentes de japoneses, coreanos e chineses nas regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo, o mais populoso e rico estado da federação, tem expressiva presença árabe e japonesa, inclusive, na burguesia). Então, essa ideologia de que o Brasil é “ocidental” é um elemento explosivo na atual formação da sociedade brasileira, pois sendo o país uma “nação ocidental”, o “povão”, isto é, a classe trabalhadora, que é “mestiço” e, em grande maioria de origem africana, não é visto como parte dessa “nação brasileira ocidental”, isso ajuda, e muito, a legitimar o saqueio de recursos (financeiros, naturais e humanos) que o país sofre de forma ainda mais acentuada nos últimos 60 anos.

Assim sendo, a classe trabalhadora, que não é [a “nação] brasileira [ocidental”], dentro dessa concepção ideológica “ocidentalista”, pode ser violentada de todas as formas possíveis, para satisfazer à essa burguesia que tem o centro de sua vida fora do território brasileiro. Lembro mais ainda: os filhos dessa burguesia desnacionalizada saqueadora quando estudam no Brasil, ficam matriculados em escolas estrangeiras voltadas para a formação dos filhos dos funcionários das missões diplomáticas ocidentais em território nacional. Portanto, continuam apartados da maioria do povo brasileiro.

Podemos estimar que 10 a 15% da população do Brasil pertencem à classe burguesa ou são trabalhadores altamente remunerados a serviço dessa classe burguesa. Em um país de dimensões continentais como o nosso, isso significa que, sendo estimada a atual população em torno dos 220 milhões de habitantes, entre 22 e 33 milhões de habitantes no Brasil pertencem à classe burguesa, sendo a sua maioria não identificada com a totalidade da nação brasileira (“mestiça” e “negra”).

II – Quinta e Sexta-colunas brasileiras

Pergunta 02: Como isso se relaciona com o conceito de quinta e sexta-colunas que frequentemente usamos em nossas discussões neste blog para descrever as facções que atuam na política nacional e sabotam o estabelecimento de nossa plena soberania?

Professor Ramez Maalouf: A resposta será uma continuação da primeira questão. Como dito antes, a desnacionalização significou a perda da tomada de decisões em território nacional. Os funcionários de alto escalão das multinacionais nascidos no Brasil trabalham para favorecer os interesses estabelecidos de sedes estrangeiras dessas empresas. Já os burgueses (aqui, sempre me referindo aos grandes proprietários dos meios de produção), mesmo que, por ventura, tenham nascido em território nacional, defendem os interesses dos países onde estabeleceram suas residências fora do Brasil. Então, não vamos ter “quintas ou sextas colunas”, vamos ter inúmeras destas “colunas” totalmente atreladas aos interesses do grande capital estrangeiro visando impedir o pleno desenvolvimento do Brasil, que, como todos sabem, é um país continental.

Lembremos que os militares são, junto com a alta burguesia, desde o Golpe / Invasão Ianque de 1964, os principais portadores dessa ideologia de “Brasil, nação ocidental”, não podemos nos surpreender com a intensa ação política dos integrantes das forças armadas nos últimos 60 anos. Essa ação política está sempre associada à brutal ação repressiva das forças de segurança pública nas periferias das áreas metropolitanas contra a classe trabalhadora sob o pretexto de combater a criminalidade. Assim sendo, a aliança entre militares e uma burguesia “desnacionalizada” foi o principal fator, por exemplo, para o processo de recolonização ianque eclodido a partir do golpe de Estado de 2016, que depôs o governo de Dilma Rousseff e prendeu o presidente eleito Lula.



Muito obrigada, Professor Ramez Maalouf e até à nossa próxima série de perguntas!

Recomendamos ainda o seguinte conteúdo:

Na marca 43’12”, o professor Ramez explica e discute seu conceito de burguesia brasileira e burguesia do Brasil e demais assuntos.

2 Comments

  1. Vitor said:

    Muito interessante o texto. Parabéns pela entrevista.

    Um possivel erro: “Assim sendo, a classe trabalhadora, que não é brasileira…” deveria ser “que não é ocidental “?

    Noto que está passagem: “brutal ação repressiva das forças de segurança pública nas periferias das áreas metropolitanas contra a classe trabalhadora sob o pretexto de combater a criminalidade” é extremamente difícil de explicar para a maioria da população educada pela TV e condicionada a apoiar a “”lei e ordem”.

    30 December, 2022
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    • Lady Bhārani said:

      Oi Vitor, boa noite! Tudo bem?!

      Muito obrigada pelo comentário e agradecemos também o toque! Você entendeu de forma correta e havia margem para que outros leitores não entendessem assim. Já atualizamos o post.

      Na realidade, como você percebeu, o professor Ramez afirma que a classe trabalhadora brasileira, sobretudo por ser mestiça, de expressiva origem africana, e tb indígena, europeia e asiática, não é a que se insere no conceito de nação brasileira ocidental, parte da chamada “civilização ocidental” – concepção gringa e dos colonizadores.

      E Feliz Ano Novo pra você e todos os seus!

      30 December, 2022
      Reply

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