29/3/2022, Pepe Escobar,The Cradle, Beirute. Foto: The Cradle
Mariupol estava sendo destroçada pelo Batalhão Azov, da extrema direita da Ucrânia, desde bem antes de Moscou lançar suas operações militares. Em mãos dos russos, esse porto estratégico para o comércio do aço pode transformar-se em nodo da conectividade Eurasiana.
Mariupol, porto do estratégico Mar de Azov, permanece no olho da tempestade na Ucrânia.
A narrativa da OTAN é que Azovstal – uma das maiores siderúrgicas da Europa – teria sido quase destruída pelo exército russo e suas forças aliadas de Donetsk, que estariam “sitiando” Mariupol.
A verdade é que o batalhão neonazista Azov tomou dezenas de civis de Mariupol como escudos humanos desde o início da operação militar russa na Ucrânia, e se retirou para Azovstal, como última posição ainda acessível para os neonazistas. Após um ultimato que receberam na semana passada, estão agora sendo completamente exterminados pelas forças russas e de Donetsk e pelos Spetsnaz [Forças Especiais] chechenos.
A siderúrgica Azovstal, parte do grupo Metinvest controlado pelo oligarca mais rico da Ucrânia, Rinat Akhmetov, é de fato uma das maiores plantas metalúrgicas da Europa, autodescrita como uma “empresa metalúrgica integrada de alto desempenho que produz coque, sínter e aço, bem como produtos laminados, barras e formas, de alta qualidade”.
Em meio a uma enxurrada de testemunhos em que se detalham os horrores infligidos pelos neonazistas do Azov à população civil de Mariupol, uma história mais auspiciosa e ainda invisível surge como bom presságio para o futuro imediato.
A Rússia é o quinto maior produtor mundial de aço, além de possuir enormes depósitos de ferro e carvão. Mariupol – uma ‘Meca’ do aço – costumava usar o carvão de Donbass, mas sob o governo neonazista autoimposto desde os eventos de Maidan de 2014, foi convertida em importadora. O ferro, por exemplo, começou a ser fornecido de Krivbas, na Ucrânia, a mais de 200 quilômetros de distância.
Depois que Donetsk firmar-se como república independente ou, via referendo, optar por se tornar parte da Federação Russa, essa situação está fadada a mudar.
A Azovstal tem investimentos na produção de ampla linha de produtos de grande serventia: aço estrutural, trilhos para ferrovias, aço temperado para correntes, equipamentos de mineração, aço laminado utilizado para fabricar aparelhos para outras fábricas, caminhões e vagões ferroviários.
Partes do complexo fabril são bastante modernas, enquanto algumas, com décadas de existência, necessitam muito de melhorias, que a indústria russa certamente pode providenciar.
Estrategicamente, é complexo enorme, bem no Mar de Azov, o qual, agora, para todos os fins práticos, está incorporado à República Popular de Donetsk, e próximo ao Mar Negro. Isso implica viagem curta até o Mediterrâneo Oriental, e integra muitos clientes potenciais na Ásia Ocidental. E atravessando o Suez e chegando ao Oceano Índico, integram-se também clientes em todo o Sul e Sudeste da Ásia.
Assim, a República Popular de Donetsk, possivelmente parte da futura Novorossiya, e mesmo parte da Rússia, estará no controle de muita capacidade para produzir aço para o sul da Europa, oeste da Ásia, e mais além.
Uma das consequências inevitáveis é que a República Popular de Donetsk será capaz de prover um verdadeiro boom de construção de ferrovias de carga na Rússia, China e nos “-stões” da Ásia Central. A construção de ferrovias é modo privilegiado de conectividade para a ambiciosa Iniciativa Cinturão e Franja ou “Rota da Seda”, de Pequim. E também, crucialmente importante, do Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (ing. INSTC), cada vez mais turbinado.
Assim, no médio prazo, deve-se espera que Mariupol converta-se em um dos principais nodos de um boom nas rotas norte-sul – INSTC através da Rússia e conectada aos ‘-stões’ – bem como grandes atualizações da Iniciativa Rota e Franja[2] nos corredores leste-oeste e corredores de conexão de segundo grau.
Eurásia interligada
Os principais atores do INSTC são Rússia, Irã e Índia – que estão agora, após as sanções da OTAN, em modo de interconexão avançada, acrescidos de mecanismos para contornar, nas relações comerciais, o dólar norte-americano. Azerbaijão é outro importante ator do INSTC, embora mais volátil porque privilegia os projetos de conectividade da Turquia no Cáucaso.
A rede do corredor INSTC também se irá progressivamente interligando com o Paquistão – e isso significa o Corredor Econômico China-Paquistão (ing. CPEC), núcleo chave da Iniciativa Rota e Franja, da China, que expande-se lenta mas firmemente para o Afeganistão. A visita improvisada do Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, a Cabul no final da semana passada visou a fazer avançar a incorporação do Afeganistão nas Novas Estradas da Seda.
Tudo isso está acontecendo enquanto Moscou – extremamente perto de Nova Deli – vai simultaneamente expandindo suas relações comerciais com Islamabad. Os três países – detalhe crucialmente decisivo – são membros da Organização de Cooperação de Xangai (ing. SCO).
Assim, o grande projeto Norte-Sul explicita a conectividade fluente, do continente russo ao Cáucaso (Azerbaijão), à Ásia Ocidental (Irã) até o Sul da Ásia (Índia e Paquistão). Nenhum desses atores-chave demonizou ou sancionou a Rússia, apesar da pressão continuada dos EUA para que todos eles o fizessem.
Estrategicamente, temos aí em ação o conceito russo multipolar da Grande Parceria Eurasiática, em termos de comércio e conectividade – em paralelo e de forma complementar à Iniciativa Rota e Franja, porque a Índia, ansiosa para instalar um mecanismo de rúpias para comprar energia, é nesse caso parceiro absolutamente crucial da Rússia, correspondendo ao acordo estratégico de 400 bilhões de dólares entre China e Irã.
Na prática, a Parceria da Eurásia Expandida facilitará conectividade mais suave entre Rússia, Irã, Paquistão e Índia.
O universo da OTAN, entretanto, é congenitamente incapaz de reconhecer a complexidade do alinhamento, para nem comentar a falta que fez qualquer vestígio de capacidade para analisar suas implicações.
O que temos é a interconexão, em campo, da Iniciativa Rota e Franja (chinesa), com o Corredor INTSC e a Parceria da Eurásia Expandida – todas essas noções tratadas como anátema, no Departamento de Estado, em Washington.
Tudo isso, é claro, está sendo projetado num momento geoeconômico que está mudando o jogo, pois a Rússia, a partir dessa quinta-feira, só aceitará rublos, em pagamento pelo gás que seja vendido a “nações não amigas” da Rússia.
Paralelamente à Parceria da Eurásia Expandida, a Iniciativa Rota e Franja, desde que foi lançada em 2013, também está tecendo progressivamente uma complexa e integrada rede de parcerias euroasiáticas: financeiras/econômicas, de conectividade, para a construção de infraestrutura física e de corredores econômicos/comerciais. O papel da Iniciativa Rota e Franja como coadjuvante de instituições de governança global, incluindo fundações normativas, também tem sido crucial, para desespero da aliança da OTAN.
É tempo de desocidentalizar
No entanto, só agora o Sul Global – e agora especialmente o Sul Global – começará a observar todo o espectro do jogo China-Rússia em toda a esfera eurasiática. Moscou e Pequim estão profundamente envolvidas em esforço conjunto para desocidentalizar a governança globalista, se não, afinal, para destruí-la completamente.
Doravante, a Rússia será ainda mais meticulosa na construção da própria institucionalidade, integrando a União Econômica da Eurásia (ing. EAEU), a OCX e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (ing. CSTO) – que é aliança militar eurasiática de estados pós-soviéticos selecionados –, num contexto geopolítico de divisão institucional e normativa irreversível entre Rússia e Ocidente.
Ao mesmo tempo, a Parceria da Eurásia Expandida estará solidificando a Rússia como a última ponte eurasiática, criando um espaço comum em toda a Eurásia que poderia mesmo ignorar a Europa já reduzida à posição de vassalo.
Enquanto isso, na vida real, a Iniciativa Rota e Franja, assim como o Corredor INSTC, estarão cada vez mais ligados ao Mar Negro (alô-alô, Mariupol!). E a própria Iniciativa Rota e Franja pode até estar sujeita a reavaliação, em sua ênfase de ligar a China ocidental à base industrial em retração da Europa ocidental.
Não fará sentido privilegiar os corredores norte da Iniciativa Rota e Franja – China-Mongólia-Rússia, pela Trans-Siberiana, e a ponte terrestre Eurasiana, através do Cazaquistão –, quando se vê a Europa tombando para demência medieval.
O foco renovado da Iniciativa Rota e Franja será o acesso a mercadorias insubstituíveis – o que significa “Rússia” –, assim como a garantia de suprimentos essenciais para a produção chinesa. As nações ricas em commodities, como o Cazaquistão e muitos atores na África, serão os principais futuros mercados para a China.
Em um loop pré-Covid através da Ásia Central, ouve-se constantemente que a China constrói fábricas e ferrovias de alta velocidade, enquanto a Europa, na melhor das hipóteses, escreve livros brancos. Tudo sempre pode piorar.
A UE como território sob ocupação dos EUA está agora decaindo rapidamente, do centro do poder global, para o status de operador periférico inconsequente, mero mercado que esperneia para se manter à tona, numa longínqua periferia da “comunidade de destino compartilhado” da China.
[1] Epígrafe acrescentada pelos revisores.
[2] Os revisores dessa tradução encontramos em Pagina12, bom jornal de Buenos Aires, a expressão “Iniciativa de la Franja y la Ruta” – que reconstruímos como Iniciativa Rota e Franja – que nos parece MUITO MELHOR QUE “Iniciativa Cinturão e Estrada”, que se usa no Brasil, para designar o projeto de integração de países da Eurásia, no qual os chineses trabalham. A conversa de “cinturão” é tradução claramente ‘inspirada’ na doentia tradução do mandarim ao inglês, com “belt” [faixa que cerca e fecha], em vez de aberturas que se irradiam ‘em franja’. Vários autores competentes em português e inglês têm preferido “Novas Rotas da Seda”, também interessante e correta. É tradução ainda não fixada (Ndos Revisores).
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