Thierry Meyssan (Rede Voltaire) – 10 de Outubro de 2023 -[Gentilmente adaptado ao portugês brasileiro e enviado por ZT]
O conflito sangrento que começou na Palestina geográfica acontece após 75 anos de mortíferas injustiças. Do ponto de vista do Direito Internacional, os Palestinianos tem o direito e o dever de resistir à ocupação israelita, tal como os Israelitas tem o direito e o dever de responder ao ataque que sofrem. É da responsabilidade de todos ajudar a resolver as injustiças de que os dois grupos são vítimas, o que não significa apoiar a vingança cruel de alguns deles.
Além disso, o apoio que se possa dar aos povos palestiniano e israelita não deve levar a amnistiar os seus respectivos dirigentes pelos crimes que cometeram, nem as grandes potências que os manipularam.
O Oriente Médio é um universo instável no qual muitos grupos se enfrentam para sobreviver. Para simplificar, consideramos no Ocidente que a sua população se compõe de judeus, cristãos e muçulmanos, mas a realidade é muito mais complexa. Cada religião compõe-se ela própria de uma infinidade de crenças. Por exemplo, na Europa e no Magrebe, estamos cientes que os cristãos se dividem em Igreja Católica, Igrejas Ortodoxas e Igrejas Protestantes, mas no Médio-Oriente existem dezenas e dezenas de Igrejas diferentes. A mesma constatação é verdadeira no seio das religiões judaica e muçulmana.
Cada vez que uma peça é modificada no tabuleiro, todos os outros grupos têm de se reposicionar. É por isso que os aliados de hoje, serão talvez os inimigos de amanhã, enquanto os inimigos de hoje eram os nossos aliados de ontem. Ao longo dos séculos, todos se tornaram simultaneamente vítimas e carrascos. Os estrangeiros que vão ao Oriente Médio identificam-se a priori com pessoas que têm a mesma cultura que eles, a mesma fé, mas ignoram a sua história e não estão preparados para aceitá-la.
Se quisermos promover a paz, não devemos escutar unicamente aqueles de quem nos sentimos próximos. Temos que admitir que a paz supõe resolver não só as injustiças de que sofrem os nossos amigos, mas também as de que sofrem os nossos inimigos. Ora, não é isso que fazemos espontaneamente. Assim, nos meses precedentes, na França, ouvimos exclusivamente o ponto de vista de certos Ucranianos face aos Russos, de certos Arménios face aos Azeris e agora de certos Israelenses face aos Palestinos.
Finalmente, entre as múltiplas fontes às quais podemos recorrer, devemos distinguir aquelas que defendem os seus interesses materiais imediatos, aquelas que defendem a sua pátria e aquelas que defendem princípios. Contudo, as coisas são complicadas por grupos, não religiosos, mas teocráticos. Estes últimos não defendem nenhum princípio superior, antes utilizam uma linguagem religiosa para vencer.
Com essas preliminares apresentadas, vamos ao que interessa.
O Hamas atacou Israel em 7 de Outubro de 2023, às 6 horas da manhã, quer dizer, por ocasião do 50º aniversário da “Guerra de Outubro de 73”, conhecida no Ocidente pelo nome israelense de “Guerra do Kippur”. À época, o Egito e a Síria atacaram Israel de surpresa em auxílio aos Palestinos. Mas Tel Aviv, informada por Amã (Jordânia) e apoiada por Washington, esmagou os exércitos árabes. Anwar el-Sadat traíra os seus, enquanto a Síria acabou perdendo o Golã.
Esta operação combina uma chuva de foguetes simultâneos, destinados a saturar a Cúpula de Ferro, e 22 ataques terrestres no território israelense. Pela primeira vez na Palestina, os disparos de foguetes foram dirigidos sobre centros de comando israelenses de maneira a favorecer as ações dos comandos. Estas últimas são oficialmente destinadas a fazer reféns de modo a poder negociar a sua troca com os 1.256 detidos Palestinos em prisões de alta segurança. As infiltrações tiveram lugar simultaneamente por via terrestre, marítima e aérea (com ultraleves).
A preparação desta operação, a obtenção de Inteligência, a formação de um milhar de comandos e a transferência de armas exigiram meses, senão anos de trabalho. Ora, cegos pela nossa convicção de superioridade, não o vimos. A operação foi concebida por Mohammad Daif, o chefe operacional do Hamas, que havia desaparecido dos radares durante dois anos e reapareceu ao lado do porta-voz do Hamas, “Abu-Obaida”.
Conseguindo detectar os foguetes, mas incapaz de destruir a todos, Israel atingiu pelo menos 3.000 dos 7.000 disparados. As redes sociais e os canais de televisão árabes mostraram que o Hamas capturou vários tanques e pelo menos o posto fronteiriço a Oeste da Faixa. Além disso, ele atacou uma “rave party” no Kibutz Re’im, onde violou e massacrou pelo menos 280 participantes. Por todo o lado, sequestrou um grande número de reféns, incluindo generais. Os seus comandos penetraram em várias cidades israelenses, disparando com metralhadora sobre os moradores. Listam-se pelo menos 700 mortos e 2.200 feridos graves do lado israelense, o dobro do lado Palestino.
Trata-se da mais importante ação palestina desde há meio século.
O que se passa é o fruto de 75 anos de opressão e de violação do Direito Internacional. Dezenas de Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas foram violadas por Israel, sem nenhuma sanção a respeito. Israel é um Estado fora da lei que não hesitou em corromper ou assassinar a quase-totalidade dos dirigentes políticos Palestinos. Deliberadamente, ele impediu o desenvolvimento econômico dos Territórios, ao mesmo tempo que favoreceu a criação de um Estado Palestino separado que controla parcialmente.
A frustração e o sofrimento acumulados ao longo de 75 anos traduzem-se em comportamentos violentos e cruéis de alguns Palestinos, cientes de terem sido há muito tempo abandonados pela Comunidade internacional. No entanto, os tempos mudam. A maioria dos membros das Nações Unidas, tendo testemunhado o fracasso militar do Ocidente e a vitória da Rússia na Síria e na Ucrânia, não se contenta mais em abaixar a cabeça para os Estados Unidos. A Assembleia Geral reafirmou, por ocasião do aniversário da autoproclamação da independência de Israel e do massacre e expulsão dos Palestinos (a Nakhba), que o Direito Internacional está do lado dos Palestinos e não dos Israelenses. O que não impede o Hamas de cometer crimes de guerra.
A situação atual é uma realidade sem saída para os dois lados. Após três quartos de século de crimes, Israel já não pode alegar grande coisa. A sua população está agora dividida. Durante os últimos meses, os “sionistas negacionistas”, isto é, os discípulos do Ucraniano Vladimir Jabotinsky, favoráveis ao supremacismo judaico, tomaram o poder em Tel Aviv apesar da oposição de uma pequena maioria da população e de gigantescas manifestações. Os seus jovens, que aspiram a viver em paz, recusam servir nas Forças Armadas para brutalizar os árabes, mas ainda assim juntaram-se a elas para defender as suas famílias que amam e o seu país, no qual não acreditam mais.
Por lei, os Palestinos formaram um Estado, que obteve o estatuto de observador nas Nações Unidas. Após a morte de Yasser Arafat, o chefe da Fatah, Mahmud Abbas, foi eleito Presidente. Contudo, no seguimento da vitória do Hamas nas eleições legislativas de 2007 e na impossibilidade de fazer o ocidente aceitar um governo do Hamas, os Palestinos envolveram-se numa guerra civil. Em resumo, a Cisjordânia é governada pela Fatah, o Partido laico criado por Yasser Arafat. Mahmud Abbas e os seus próximos são financiados pelos Estados Unidos, pela União Europeia e por Israel. A Faixa de Gaza, por outro lado, está nas mãos do Hamas, o ramo palestino da Irmandade Muçulmana. Ele é governado por indivíduos que veem o Islã não como uma espiritualidade, mas como uma arma de conquista. Eles são pagos principalmente pelo Reino Unido, Qatar, Israel, Turquia, Irã e União Europeia. Os dois campos se opõem em cada nova eleição há 16 anos. Seus líderes vivem em um luxo mafioso, em forte contraste com as condições de vida miseráveis de seu povo.
Quando foi criado, o Hamas foi financiado pelo Reino Unido. Foi apoiado pelos serviços secretos israelenses para enfraquecer o Fatah de Yasser Arafat. Israel então lutou contra ele e assassinou seu líder religioso, Sheikh Ahmed Yassin. Depois, mais uma vez, Israel usou o Hamas para eliminar os líderes da Resistência Palestina marxista. Os combatentes do Hamas, acompanhados por agentes do Mossad e jihadistas da Al-Qaeda, atacaram o campo palestino de Yarmouk no início da guerra contra a Síria [1]. Mas hoje, mais uma vez, o Hamas está lutando contra seu antigo aliado, Israel.
Mohammad Daif é conhecido como o fundador das brigadas Izz al-Din al-Qassam. Como toda a Irmandade Muçulmana, ele é um supremacista islâmico. Ele se reporta a Izz al-Din al-Qassam (1882-1935), um oponente do mandato francês no Líbano e do mandato britânico na Palestina. Portanto, ele não tem nada a ver com o ex-mufti de Jerusalém e aliado nazista Amin al-Husseini, mesmo que compartilhe do mesmo antissemitismo. Em 2010, ele escreveu: “As Brigadas Izz ad-Din al-Qassam (…) estão mais bem preparadas para continuar em nosso caminho exclusivo, onde não há alternativa, que é o caminho da jihad e a luta contra os inimigos da nação muçulmana e da humanidade. Dizemos aos nossos inimigos: vocês estão no caminho da extinção (zawal), e a Palestina continuará sendo nossa, incluindo Al-Quds (Jerusalém), Al-Aqsa (mesquita), suas cidades e vilarejos do mar (Mediterrâneo) ao rio (Jordão), de norte a sul. Vocês não têm direito a nem um centímetro dela”. Mohammad Daif não é um soldado, mas um especialista em tomada de reféns. Sua operação foi projetada para esse fim, não para libertar a Palestina.
No momento em que a saúde do Presidente Mahmud Abbas se deteriora, a Fatah está dividida em três facções militares:
• a de Fathi Abu al-Ardate, o Chefe da Segurança Nacional.
• a de Mohammad Abdel Hamid Issa (aliás “Lino”), comandante da Kifah al-Mussallah (a luta armada). Ela insere-se na corrente de Mohamed Dallan, 0 antigo chefe das Informações palestinianas que assassinou Yasser Arafat. Ela é atualmente apoiada pelos Emirados Árabes Unidos.
• a de Munir Maqdah, antigo chefe militar da Fatah, que se aproximou do Hamas, do Catar, da Turquia e do Irã.
No mês passado, os confrontos colocaram essas três facções contra as facções islâmicas do Hamas, bem como o Jund el-Cham e o al-Chabab al-Moslem, dois grupos jihadistas que lutaram ao lado da OTAN e de Israel contra a República Árabe da Síria. Os combates violentos ocorreram no campo de Aïn el-Héloué (Sidon, sul do Líbano). Na época, eu os interpretei à luz daqueles ocorridos em Nahr el-Bared (norte do Líbano) em 2007 [2], antes de perceber que eles estavam ligados à morte de Mahmoud Abbas [3].
Durante 75 anos, Tel Aviv fez tudo o que estava ao seu alcance para rejeitar a igualdade para todos, fossem judeus ou árabes. Pelo contrário, desde o Chamado de Genebra, promoveu a “solução de dois Estados”, em outras palavras, o plano colonial de última hipótese de Lord William Peel que os britânicos não conseguiram impor, nem no terreno em 1937 nem nas Nações Unidas em 1948, mas que agora é objeto de consenso. Hoje, apenas os marxistas da Frente Popular para a Libertação da Palestina (PFLP) estão pregando no deserto, propondo a criação de um único estado no qual todos os homens teriam a mesma voz [4].
Diante do que ele vê como uma invasão palestina, mas que, do ponto de vista palestino, é simplesmente um retorno para casa, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu prometeu vitória. Mas o que significaria isso? Matar todos os combatentes do Hamas não resolverá 75 anos de injustiça. Seus filhos pegarão a sua tocha como pegaram a de seus pais.
Para atingir o seu objetivo, Benjamin Netanyahu deve primeiro unir os Israelenses que ele mesmo dividiu. Seguindo o exemplo de Golda Meir durante a “Guerra dos Seis Dias”, ele deve fazer sua oposição entrar para o governo. Ele também se encontrou com Yaïr Lapid e com o general Benny Gantz. No entanto, o primeiro impôs como condição que os supremacistas judeus, Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, deixassem o governo, ou seja, que o primeiro-ministro abandonasse seu projeto político e o de seus atuais patrocinadores [5], os membros strausianos do governo Biden [6].
Os dirigentes do Hamas apelaram aos refugiados Palestinos no estrangeiro, a todos os árabes e a todos os muçulmanos para se unirem ao seu combate. Os refugiados Palestinos, significa dizer primeiro a maioria da população da Jordânia e do Líbano. Os árabes, quer dizer o Hezbolla do Líbano e da Síria, dois poderes que renovaram com o Hamas no decurso dos últimos meses. Os muçulmanos significam o Irã e a Turquia.
Neste momento, apenas a Jihad Islâmica, quer dizer, o Irã, e os diversos grupos da Resistência da Cisjordânia se juntaram ao Hamas.
Contrariamente ao que afirma o Wall Street Journal, não é o Irã que dirige o Hamas. Isto é esquecer o acordo feito entre Hassan El-Banna, o fundador dos Irmãos Muçulmanos e Ruhollah Khomeini, o fundador da República islâmica do Irã. Os dois grupos dividiram o mundo muçulmano entre si e abstêm-se de intervir significativamente na esfera de influência do outro. Teerã não pára de afirmar ruidosamente o seu apoio aos Palestinos, mas a sua ação concreta na Palestina limita-se à Jihad Islâmica.
Os dirigentes políticos do Hamas vivem na Turquia, sob a proteção dos Serviços Secretos. É Ancara que dirige o Hamas e a operação “Dilúvio de Al-Aqsa”. Inaugurando, no domingo, 8 de outubro, uma igreja ortodoxa síria, o Presidente Recep Tayyip Erdogan declarou, em tom meloso: “O estabelecimento da tranquilidade, de uma paz duradoura e da estabilidade na região através da solução da questão palestina de acordo com o direito internacional é a prioridade absoluta sobre a qual nos concentramos durante as nossas conversas com os nossos homólogos (…) Infelizmente, os Palestinos e os Israelenses, assim como toda a região, pagam o preço do atraso na administração da justiça (…) Jogar gasolina na fogueira não beneficiará ninguém, incluindo os civis dos dois lados. A Turquia está pronta a fazer a sua parte, da melhor forma possível, para pôr fim aos combates o mais rapidamente possível e aliviar a tensão crescente devido aos recentes incidentes”.
A escolha por Ancara em desencadear esta nova guerra depois de mal derrotada a República de Artsakh, no Azerbaijão, e quando envia material militar para a Rússia, em violação das medidas coercivas unilaterais dos EUA, leva a pensar que os diplomatas turcos já não têm medo de Washington, que, no entanto, tentou assassinar o presidente Erdoğan em 2016. Assim que essa operação terminar, outra se seguirá contra os curdos, na Síria e no Iraque.
Se o Hezbolla entrar em cena, Israel não conseguirá repelir o ataque sozinho. A sua existência só pode ser garantida com o apoio militar dos Estados Unidos. Ora, a opinião pública dos EUA já não apoia Israel, enquanto o Pentágono já não tem o poder para defendê-lo. O que se passa atualmente é uma das consequências da guerra na Ucrânia. Washington não consegue fabricar munições suficientes para os seus aliados ucranianos. Já foi até mesmo forçada a usar e esvaziar seus estoques de Israel, onde mantinha arsenais.
Nas primeiras horas do conflito, o Hezbollah disparou alguns foguetes contra as fazendas de Shebaa, ou seja, território disputado entre o Líbano e Israel. Ao fazer isso, demonstrou seu apoio à resistência palestina, de acordo com a retórica da “unidade das frentes”. Mas não entrou na guerra, pois teme o Hamas, contra o qual lutou na Síria. E não compartilha da ideologia da Irmandade.
Todos os líderes ocidentais garantem condenar as ações terroristas do Hamas e que apoiam Israel. No passado, eles não fizeram nada para resolver as injustiças na Palestina, e essas posições de princípios mostram que não farão isso agora. Por sua vez, a Rússia e a China, recusando-se a tomar partido tanto dos palestinos quanto dos israelenses, pediram, não a aplicação das regras ocidentais, mas o respeito ao Direito Internacional. Estamos agora diante de uma situação em que todos os participantes sabotaram deliberadamente todas as soluções antecipadamente, de modo que é quase impossível evitar que tudo termine em um banho de sangue.
Citações:
[4] “Georges Habache et la Résistance palestinienne”, Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 27 janvier 2008.
[6] Leo Strauss era ao mesmo tempo um judeu fascista alemão e um sionista revisionista. Ele reencontrara o seu ídolo, Vladimir Jabotinsky, em Nova Iorque, acompanhado de Benzion Netanyahu, o pai de Benjamin. NdR.
Original em https://www.voltairenet.org/article219777.html
Escrito esclarecedor. Meyssan estava inspirado.