O balé da neutralidade da Rússia sobre Israel-Palestina

Pepe Escobar – 18 de outubro de 2023 – [Originalmente publicado pelo The Cradle. Traduzido e publicado aqui com a permissão do autor]

Seria possível que o presidente russo filo-semita Vladimir Putin esteja lenta mas seguramente repensando a sua avaliação geopolítica de Israel? Chamar isto do enigma chave nos corredores do poder de Moscou é, na verdade, um eufemismo.

Não há sinais exteriores de tal mudança sísmica – pelo menos no que diz respeito à posição russa oficialmente “neutra” no drama intratável Israel-Palestina.

Exceto por uma declaração impressionante na sexta-feira passada, na Cúpula da Comunidade de Estados Independentes (CEI) em Bishkek, quando Putin criticou os “métodos cruéis” utilizados por Israel para bloquear Gaza, e comparou-os com “o sítio de Leningrado durante a Segunda Guerra Mundial”.

“Isso é inaceitável”, declarou o presidente russo, e alertou que quando todos os 2,2 milhões de civis de Gaza “têm que sofrer, incluindo mulheres e crianças, é difícil alguém concordar com isto”.

Os comentários de Putin podem ter sido um indício das mudanças em curso na opaca frustrantemente relação Rússia-Israel. Uma segunda dica é este artigo muito importante publicado na última sexta-feira no Vzglyad, um site de estratégia de segurança próximo ao Kremlin, intitulado diplomaticamente “Por que a Rússia permanece neutra no conflito no Oriente Médio”.

[John Helmer analisou e publicou o artigo traduzido para o inglês na integra. A versão traduzida para o português brasileiro está disponível aqui : https://sakerlatam.xyz/bandeira-branca-num-buraco-negro-a-neutralidade-russa-e-uma-forca-ou-um-comercio/ . Como leitura adicional indicamos https://sakerlatam.xyz/o-silencio-dos-ursos-a-russia-esta-se-reorientando-para-os-arabes/ .- nota do tradutor]

É crucial notar que há apenas seis meses e refletindo um quase consenso entre a comunidade de inteligência da Rússia, os editores do Vzglyad apelavam a Moscou para transferir o seu considerável peso político para apoiar a questão número um para os mundos árabe e islâmico.

O artigo destacou os pontos-chave que Putin expressou em Bishkek: não há alternativa às negociações; Tel Aviv foi submetida a um ataque brutal e tem o direito de se defender; um verdadeiro acordo só é possível através de um Estado palestiniano independente com capital em Jerusalém Oriental.

O presidente russo é a favor da solução original de “dois estados” da ONU e acredita que um Estado palestino deve ser estabelecido “por meios pacíficos”. Mas, por mais que o conflito tenha sido “um resultado direto da política falida dos Estados Unidos no Médio Oriente”, Putin rejeita os planos de Tel Aviv de lançar uma operação terrestre em Gaza.

Esta cobertura qualificada certamente não é uma prova de que Putin está se inclinando para aquilo que é quase um consenso no Estado-Maior, os siloviki em várias agências de informação e o seu Ministério da Defesa: Eles consideram que Israel pode ser um inimigo de facto da Federação Russa, aliado com a Ucrânia, os EUA e a NATO.

Siga o dinheiro

Tel Aviv tem sido extremamente cautelosa para não antagonizar frontalmente a Rússia na Ucrânia, e isto pode ser uma consequência direta das relações notoriamente cordiais entre Putin e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu.

No entanto, muito mais importantes do que Israel no tabuleiro de xadrez geopolítico são as atuais relações de Moscou com os estados árabes, especialmente a Arábia Saudita, parceira da OPEP+, que ajudou a frustrar os esforços ocidentais para controlar os preços do petróleo.

Também altamente central na elaboração de políticas regionais da Rússia é a sua parceria estratégica com o Irã, que colheu dividendos na Síria e no Cáucaso, e que ajuda a conter o expansionismo dos EUA. Finalmente, as idas e vindas complexas e multifacetadas de Moscou com Ancara são cruciais para as ambições econômicas e geopolíticas russas na Eurásia.

Todas as três potências da Ásia Ocidental são Estados de maioria muçulmana, filiações importantes para a Rússia multipolar que tem a sua própria população muçulmana considerável.

E para estes três atores regionais, sem distinção, a atual punição colectiva de Gaza transgride qualquer possível linha vermelha.

Israel também já não é tão significativa nas considerações financeiras de Moscou. Desde a década de 1990, imensas quantidades de fundos russos transitaram para Israel, mas agora, uma parte substancial está a regressar diretamente à Rússia.

O notório caso do bilionário Mikhail Friedman ilustra bem esta nova realidade. O oligarca deixou a sua casa no Reino Unido e mudou-se para Israel uma semana antes do lançamento da Dilúvio de Al-Aqsa – o que por sua vez o levou a pegar às pressas o seu passaporte russo e a dirigir-se para Moscou em busca de segurança.

Friedman, que lidera o Grupo Alfa com grandes interesses em telecomunicações, bancos, varejo e seguros, e é um rico sobrevivente da crise financeira de 1998, é suspeito pelos russos de “contribuir” com até 150 milhões de dólares para o regime inimigo em Kiev.

A reação do presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, não poderia ter sido mais contundente – ou menos preocupada com os sentimentos de Israel sobre o assunto:

“Qualquer pessoa que tenha deixado o país e se tenha envolvido em atos repreensíveis, celebrando tiros em território russo e desejando a vitória ao regime nazi de Kiev, deveria perceber que não só não é bem-vindo aqui, mas se regressar, Magadan (um notório porto de trânsito para o gulag na era Stalin) está esperando por eles.”

Russofobia se encontra punição coletiva

Enquanto o Ocidente Coletivo recorreu a um monomaníaco “Somos todos israelitas agora”, a estratégia do Kremlin é posicionar-se visivelmente como o mediador de escolha neste conflito – não apenas para os mundos árabe e muçulmano, mas também para o Sul Global/Maioria Global. .

Esse foi o propósito do projeto de resolução russo desta semana no Conselho de Segurança da ONU, pedindo um cessar-fogo em Gaza, que foi previsivelmente derrubado pelos suspeitos do costume.

Três membros permanentes do Conselho de Segurança – EUA, Reino Unido e França, além da sua neo-colônia Japão – votaram contra. Para o resto do mundo, isto parecia exatamente o que era: a russofobia irracional ocidental e os Estados fantoches dos EUA validando o bombardeamento genocida de Israel sobre Gaza, densamente habitada por civis.

Extraoficialmente, os analistas de inteligência apontam para como o Estado-Maior Russo, o aparelho de inteligência e o Ministério da Defesa parecem estar organicamente alinhados com os sentimentos globais sobre as agressões excessivas de Israel.

O problema é que as críticas oficiais e públicas russas à incitação psicótica e à violência em série de Netanyahu, juntamente com o seu ministro de direita da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, e o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, têm sido inexistentes.

Pessoas em Moscou insistem que a posição oficial “neutra” do Kremlin está em conflito frontal com as suas agências de defesa e segurança – especialmente GRU e SVR – que nunca esquecerão que Israel esteve diretamente envolvida no assassinato de russos na Síria.

Essa opinião reforçou-se desde Setembro de 2018, quando a Força Aérea de Israel utilizou um avião de reconhecimento eletrônico Ilyushin-20M como cobertura contra mísseis sírios, fazendo com que fosse abatido e matando todos os 15 russos a bordo.

Este silêncio nos corredores do poder é espelhado pelo silêncio na esfera pública. Não houve debate na Duma sobre a posição russa em relação a Israel-Palestina. E não há debate no Conselho de Segurança desde o início de Outubro.

No entanto, uma sugestão subtil foi dada pelo Patriarca Kirill, líder da Igreja Ortodoxa Russa, que sublinhou que a “coexistência pacífica” tem uma “dimensão religiosa” e requer “paz justa”. Isto não se alinha exatamente com a anunciada limpeza étnica de “animais humanos” (créditos do Ministério da Defesa de Israel) em Gaza.

Em alguns corredores próximos ao poder, há um rumor alarmante de um intrincado jogo de sombras entre Moscou e Washington, em que os americanos negociarão com Israel em troca dos russos negociarem com a Ucrânia.

Embora isto sele o processo já em curso do Ocidente de atirar para debaixo do carro o ator suado de camisola em Kiev, é altamente improvável que o Kremlin confie em qualquer acordo americano, e certamente não num que marginalize a influência russa na estratégica Ásia Ocidental.

Esta solução de dois estados está morta

O balé da “neutralidade” da Rússia continuará. Moscou está transmitindo a Tel Aviv a noção de que mesmo no âmbito da sua parceria estratégica com o Irã, armas que possam ameaçar Israel – se, por exemplo, forem acabar no Hezbollah e o Hamas – não serão exportadas. A contrapartida deste acordo seria que Israel também não vendesse nada que pudesse ameaçar a Rússia a Kiev.

Mas, ao contrário dos EUA e do Reino Unido, a Rússia não designará o Hamas como organização terrorista. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, tem sido muito franco nesta questão: Moscou mantém contatos com ambos os lados; a sua “prioridade número um” é “o interesse dos cidadãos (russos) do país que vivem tanto na Palestina como em Israel”; e a Rússia continuará a sendo “uma parte com potencial para participar nos processos de resolução”.

A neutralidade, é claro, pode chegar a um beco sem saída. Esmagadoramente, para os estados árabes e muçulmanos ativamente cortejados pelo Kremlin, o desmantelamento do colonialismo de assentamentos liderado pelos sionistas deveria ser a “prioridade número um”.

Isto implica que a solução de dois Estados, para todos os efeitos práticos, está totalmente morta e enterrada. No entanto, não há provas de que alguém, sobretudo Moscou, esteja disposto a admitir isso.

Fonte: https://new.thecradle.co/articles/russias-neutrality-ballet-on-israel-palestine

2 Comments

  1. ze tuga said:

    Parece-me ser o caso, a Rússia precisa de ser pragmática e ver Israel como é na realidade, um estado sionista e nazi. E que se comporta como tal.

    19 October, 2023
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  2. Gilmar said:

    Um mundo multipolar onde a politica econômica precede a moral (e isso contradiz com os valores da religião ortodoxa que dizem ser a formadora da moral russa) não será diferente da “era” dos Rothschilds e o império inglês.

    Acompanhei por quase 2 anos, mesmo antes do inicio, a guerra da Ucrânia no VK por sugestão do Pepe, em nome da uma liberdade de expressão. Na verdade testemunhei lá censura e uma estranha conivência do VK com perfis falsos e pornografia.

    Deste periodo os colunistas Roman Martin, Prateek Lampe e inegavelmente Chyntia Chung *1 foram os que melhor recordo, embora tenha acompanhado mais de 10.

    O que vi no espaço “livre” do VK foram dezenas de posicionamentos dubios da elite russa, várias contradições:

    1) transformaram em heróis, ex-presidiários de um grupo mercenário chamado Wagner? Um estado que diz ter virtudes melhores que o hegemon e faz uso de mercenários? Fora o teatro do golpe do Prigozin e a encenação da sua morte.

    Essa critica devia ter vindo do Kadyrov, Dugin ou do Pepe… mas o “Duplo Expresso” mostrou (com o Nacifra, colunista que me enganou por 30 anos e que toda semana aparece na TVT) que em sociedades grandes, dificilmente alguem se manifesta livre de interesses financeiros.

    2) uma represa sempre pode gerar inundações, caso seja intencionalmente destruida. Não seria mais razoável esvaziá-la?
    Nenhum dos lados do conflito teve essa “brilhante” idéia.

    O ato da destruição da represa, foi mais uma encenação previsível. Dava a impressão que quando a guerra começava a entediar se criava uma nova frente.

    3) do IntelSlava, RT e outras fontes russas observei ZERO de videos (footages), fotos e audios com evidências forenses.

    Todo dispositivo deixa assinaturas no arquivo de midia que ele gera, foi exposto a trapaça das impressoras jatos de tinta que imprimiam em um amarelo invisivel, seu numero de série em todas impressões.

    Como um curioso da ciência da computação, entendo bem o que essas omissões forenses fomentam no longo prazo: a ignorância e dependência do estrangeiro.

    Não confio em quem diz que quer criar um mundo melhor, mas tecnicamente comete essas incoerências abissais, a maior delas o cego incentivo a cloud computing (VK, Twitter, FB, Whats App etc), que zera a soberania e inteligência dos clientes e ardilosamente apaga da história o que aconteceu com o software livre de 1991 a 2008 (ja doente, com morte em 2013).

    Pera ai: zerar a soberania e inteligência dos clientes? Isso a Microsoft fazia, com Balmer e Bill, desde os tempos do homebrew que consagrou o gênio, por tras do Apple 1, Woz e não o ator Jobs.

    3) Ainda ontem comentei com meu vizinho que se o Putin fosse para o campo de batalha, ao lado dos que correm risco de morte, a guerra teria durado apenas uma semana.

    Então porque a guerra (“operação especial”) se estende até hoje, com milhares de russos mortos?

    Um intelectual como o Dugin teria a missão de vender o sofisma que o vermelho da bandeira é um dos formadores morais de uma nação.

    Mas que nação é essa que o lider supremo, numa guerra, corre risco tendendo a zero enquanto seus soldados morrem aos milhares?

    Vermelho como formação moral?
    Transformando ex-presidiários em heróis de uma nação?

    Infelizmente essas claras incoerências turvam as esperanças de um mundo melhor, onde existiriam povos e nações.

    Continuaremos tendo aristocracias e massas.

    Leo Jaime, em tempos Collor de Melo (1992):
    “Ou ou ou, nada mudou”.
    https://www.youtube.com/watch?v=PmFKgw354es

    By Gilmar, ou melhor Bocage: em memória do ainda vivo RM.

    *1 https://strategic-culture.su/contributors/cynthia-chung/

    19 October, 2023
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