23/10/2021, Pepe Escobar, Asia Times [tradução autorizada pelo autor]
Tradicionalmente, a sessão plenária é o ponto alto das discussões anuais do Clube Valdai – destaque na Eurásia e reuniões de intelectuais que todos ganham muito se acompanharem.
Com alta frequência, o presidente Putin é o principal orador. Esse ano, em Sochi, como examinei em coluna anterior, o tema central foi “Abalo Global no Século 21: o Indivíduo, os Valores e o Estado” (ing. Global Shake-up in the 21st Century: The Individual, Values and the State).
Putin atacou de frente a questão, no que já se pode considerar como um dos mais importantes discursos geopolíticos na história recente (transcrição ainda incompleta pode ser lida aqui): e com certeza um dos mais poderosos momentos de Putin no centro do palco. Depois, houve ampla e abrangente sessão de Perguntas & Respostas (início em 4:39:00).
Pode-se prever que o discurso de Putin levará à apoplexia sortimento variado de Atlanticistas, de neoconservadores e de intervencionistas liberais. É irrelevante: para observadores imparciais, sobretudo no Sul Global, o que importa é dar toda a atenção ao modo como Putin partilhou sua visão de mundo – incluindo momentos da mais franca sinceridade.
Logo no início, evocou os dois caracteres chineses para “crise”, como “perigo” e “oportunidade”, fundindo essas noções com um dito russo que ensina a “combater dificuldades com a mente; e perigos, com a experiência”.
Essa referência oblíqua, elegante, à parceria estratégica Rússia-China, levou a uma avaliação concisa do tabuleiro de xadrez como se mostra hoje:
“O realinhamento do equilíbrio de poder pressupõe redistribuição do poder que tenha cabido a cada um, em favor de elevar e desenvolver países que até agora se sentiram deixados de lado. Dito bem claramente, a dominação pelo Ocidente sobre as questões internacionais, que começou há vários séculos, e por um curto período foi quase absoluta no passado século 20, está cedendo lugar a um sistema muito mais diversificado.”
Assim se abriu a trilha para outra caracterização também oblíqua de Guerra Híbrida, como o novo modus operandi:
“Antes, guerra perdida por um lado significava vitória do outro lado, responsabilizado pelo que acontecia. Por exemplo, a derrota dos EUA na Guerra do Vietnam, não converteu o Vietnã num “buraco negro”. Ao contrário, floresceu ali um bem-sucedido estado em desenvolvimento, que admitidamente dependeu do apoio de um aliado forte. Hoje, as coisas são diferentes: não importa quem assuma o poder, a guerra não para: apenas muda de forma. Regra geral, o hipotético vencedor ou reluta ou simplesmente não consegue garantir o pós-guerra de recuperação, em paz, e só faz piorar o caos e o vácuo de poder, gerando perigo para todo o mundo.”
Discípulo de Berdyaev
Em vários momentos, especialmente durante a sessão de Perguntas&Respostas, Putin confirmou que é entusiasta admirador de Nikolai Berdyaev. É impossível compreender Putin sem compreender Berdyaev – que foi filósofo, teólogo e essencialmente filósofo da Cristandade.
Na filosofia da história de Berdyaev, o significado de vida é definido em termos do Espírito, comparado à ênfase que a modernidade dá à economia e ao materialismo. Não surpreende que Putin nunca tenha sido marxista.
Para Berdyaev, é como se a História fosse método de memória-tempo mediante o qual o Homem trabalha na direção do próprio destino. É a relação entre o divino e o humano, que modela a história. Dá importância enorme ao poder da liberdade humana.
Putin fez várias referências à liberdade, à família – no caso dele, família de modestos recursos – e à importância da educação; elogiou apaixonadamente o que a Universidade Estatal de Leningrado ensinou-lhe. Em paralelo, reduziu a farelo o ‘wokeism’, o trangenerismo e a cultura do cancelamento promovidos “sob o rótulo de progresso”.
Aí vai apenas uma, de uma série de passagens cruciais sobre o tema:
“Somos surpreendidos pelos processos que têm lugar em países acostumados a se verem, eles mesmos, como pioneiros do progresso. Os levantes sociais e culturais que acontecem nos EUA e na Europa Ocidental não são, absolutamente, assunto nosso; não nos intrometemos nem interferimos. Mas há quem, nos países ocidentais, vive convencido de que o apagamento agressivo de páginas completa da própria história – a “descriminação reversa” da maioria em favor de minorias, ou a exigência de que se abandone a compreensão usual de coisas básicas como mãe, pai, família ou mesmo da diferença entre os sexos… Há quem viva convencido de que esse apagamento agressivo de diferenças seria pilar fundamental do movimento rumo a renovação da sociedade.”
Assim, em grande parte do discurso, de 40 minutos, e em suas respostas, Putin codificou alguns marcadores do que antes já ficara definido como “conservadorismo saudável”: “Agora que o mundo vive colapso estrutural, a importância do conservadorismo saudável como base para a política aumentou muitas e muitas vezes, porque os riscos e perigos multiplicam-se, e a realidade que nos cerca é frágil.”
De volta à arena geopolítica, Putin foi perfeitamente claro: “somos amigos da China. Mas não contra qualquer um.”
Geoeconomicamente, mais uma vez o presidente da Rússia dedicou-se a construir explicação didática, ampla e abrangente – mesmo, se pode dizer, apaixonada – de como funciona o mercado de gás natural, combinado à aposta derrotista, pela Comissão Europeia, no spot market, e em por que o gasoduto Nord Stream 2 pode mudar o jogo.
O professor Zhou Bo da Universidade Tsinghua tratou de um dos desafios chaves, que está posto no mundo geopolítico, nas Perguntas & Respostas; destacou que “se o Afeganistão tem um problema, a Organização de Cooperação de Xangai tem um problema. Assim, como a OCX, liderada por China e Rússia, pode ajudar o Afeganistão?”
Na resposta, Putin destacou quatro aspectos. A economia tem de ser restaurada; os Talibã têm de erradicar o tráfico de drogas; a responsabilidade tem de ser assumida “pelos que lá estiveram durante 20 anos” – ecoando a declaração conjunta depois do encontro entre a troika ampliada e os the Talibã em Moscou na 4ª-feira; e os fundos do estado afegão devem ser desbloqueados.
Mencionou também, indiretamente, que a grande base militar russa no Tadjiquistão não é exatamente propriedade para efeitos decorativos.
Putin voltou ao Afeganistão mas Perguntas & Respostas, destacando outra vez que a OTAN não pode “autoabsolver-se de responsabilidade.” Argumentou que os Talibã “estão tentando combater os radicais extremistas.” Falou da “necessidade de começar pelo componente étnico”; mencionou os 47% de tadjiques dentro da população afegã – talvez os números estejam superestimados; mas a mensagem tratava da exigência de haver governo inclusivo.
Conseguiu um ponto de equilíbrio: por um lado, “estamos partilhando com eles [os Talibã] uma visão de fora”; e também disse que a Rússia está “em contacto com todas as forças políticas” no Afeganistão.
Aqueles russos maçantes
Compare-se agora tudo que acima se lê e o atual circo montado na OTAN em Bruxelas, completado com novo “plano máster para deter a crescente ameaça russa”.
Ninguém jamais perdeu dinheiro por subestimar a capacidade da OTAN para alcançar e se instalar nos píncaros da estupidez inconsequente. Moscou sequer se dá o trabalho de insistir em falar àqueles palhaços: como disse o ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov, “a Rússia deixará de fingir que algumas mudanças nas relações com a OTAN sejam possíveis em futuro próximo.”
Moscou, doravante, só falará com os patrões – em Washington. Afinal de contas, a linha direta entre o comandante do Estado-maior, general Gerasimov, e o Comandante Supremo dos Aliados da OTAN, general Todd Wolters, permanece ativa.
Aconteceu assim, na avaliação de Lavrov, imediatamente depois de “todos os nossos amigos na Ásia Central (…) nos terem dito que são contra (…) abordagens venham dos EUA ou venham de qualquer outro estado-membro da OTAN”, em termos de qualquer operação “contraterrorista” estacionada em qualquer dos “-stões” da Ásia Central.
E ainda assim o Pentágono continua a provocar Moscou. Lloyd “Raytheon” Austin, misto de secretário da Defesa e lobbyista woke, que supervisionou a Grande Escapada, dos EUA em fuga do Afeganistão, vive agora a pontificar que a Ucrânia deve de fato unir-se à OTAN.
Trata-se provavelmente da derradeira estaca a impalar o zumbi “com morte cerebral” (copyright Emmanuel Macron), que enfrenta afinal o próprio destino: ataques simultâneos no Mar Báltico e no Mar Negro, de armas atômicas russas.*****
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