O Pesadelo do Negociador

Alastair Crooke – 26 de junho de 2023

Perguntas desconfortáveis que [nós] ainda não estamos preparados para responder. 

Foto cortesia do Strategic Culture Foundation

O presidente Putin afirmou que está aberto, a qualquer momento, para conversar com um interlocutor americano.

Por que, então, ninguém se apresentou? Por que, quando há uma ansiedade crescente entre o público americano de que a guerra na Ucrânia parece travada em uma escalada eterna, e os temores são palpáveis de que “Joe Biden e os ‘belicistas do Congresso’ estejam levando os EUA a um ‘holocausto nuclear’”? Este foi o aviso do ex-candidato presidencial, Tulsi Gabbard, no programa amplamente assistido de Tucker Carlson.

A urgência de interromper a escalada é clara: enquanto o espaço para manobra política diminui continuamente, o ímpeto entre os neoconservadores em Washington, assim como em Bruxelas, para desferir um ataque fatal à Rússia não se esgota. Longe disso, a conversa na preparação para a cúpula da OTAN é de preparação para uma ‘longa guerra’.

Urgência? Sim. Parece tão simples – comece a falar. Mas visto da perspectiva de um suposto mediador americano, a tarefa é tudo menos isso.

O público ocidental não foi condicionado a esperar a possibilidade do surgimento de uma Rússia mais forte. Pelo contrário, eles suportaram ‘especialistas’ ocidentais zombando dos militares russos; denegrindo a liderança russa como incompetente e sendo apresentada em suas TVs com os ‘horrores’ da ‘invasão’ russa.

É – no mínimo – um ambiente altamente adverso para qualquer interlocutor “arriscar o pé”. O Dr. Kissinger (há um ano quando esteve em Davos) ficou “queimado” quando sugeriu provisoriamente que a Ucrânia poderia ter de ceder território à Rússia.

Qual seria a missão? Bem, claramente seria encontrar aquela ‘rampa de saída’ a que Kissinger aludiu. Mas o primeiro problema seria como enquadrar a missão de um possível mediador da perspectiva de um público dos EUA que experimentou um ano de propaganda (muito dela fantasiosa) e muito da qual é hostil a Moscou (o parceiro de diálogo pretendido).

Quando Putin fala de ‘um interlocutor americano’, ele deve se referir a alguém que possui credibilidade dentro da esfera mais ampla dos EUA – e algum mandato de autoridade (por mais nebuloso que seja). No passado, o senador George Mitchell desempenhou esse papel duas vezes (nos conflitos israelo-palestinos e irlandeses). Havia outros mediadores também, é claro.

Quais eram as qualidades particulares do senador Mitchell? Bem, em primeiro lugar, ele tinha a reputação de convencer ambas as partes em conflito de que podia ver e entender sua posição; que ele não era refém da circunstância imediata, mas também poderia assimilar o longo curso da história. A empatia era essencial, mas seu trabalho, no entanto, era desenterrar a estrutura subjacente ao conflito – e dar um ‘conserto’ para isso.

Nosso suposto negociador teria que considerar como enquadrar sua missão de forma a obter apoio de pelo menos parte da estrutura de poder dos EUA. Contudo, aqui está o primeiro problema: o conflito – para o público ocidental – foi enquadrado deliberadamente em roupagens binárias extremas e ultra-humanitárias: “A Rússia – sem provocação – invadiu um Estado soberano e cometeu atrocidades contra seu povo”.

A escolha da narrativa esconde o propósito geopolítico maior de destruir qualquer perspectiva de surgimento de um heartland da Eurásia que possa ameaçar a primazia dos EUA. É mais uma vez o playbook/manual de guerra do Kosovo: uma ‘intervenção humanitária’ hipócrita para “salvar” o povo kosovo do massacre e da tirania.

A abordagem ‘realista’ – apresentando racionalmente ‘os fatos’ para o conflito – não funcionou por alguns anos: na Síria, em particular, o ‘partido da guerra’ entendeu que uma única foto de uma criança morrendo nos braços de sua mãe superou qualquer explicação racional para o conflito e obscureceu todas as saídas dele. Foi usada impiedosamente para anular qualquer entendimento alternativo. Abordar o lado emocional no Ocidente invariavelmente prevalece sobre os fatos.

Este é sempre o ‘pesadelo’: à medida que as ‘conversas’ avançam, uma atrocidade – um atentado a um ônibus, civis sangrando na rua – varre a razão e a desloca com emoção crua.

Enquadrar a missão de um suposto interlocutor dos EUA, portanto, não é fácil. Os arquitetos do conflito na Ucrânia – tendo enquadrado o conflito como uma missão humanitária – a questão então se torna, como então chegar ao resultado político desejado? Como contornar (ou superar/ressignificar) a questão humanitária?

Desafiar o ataque de propaganda sem precedentes é inútil. O ‘partido da guerra’ sempre descobrirá uma nova atrocidade (e se não houver uma à mão, sempre haverá os produtores e diretores de empresas de TV sempre prontos para atender).

Taticamente, portanto, é melhor refinar “o enquadramento” (em vez de enfrentá-lo frente a frente). Sim, pode haver uma dimensão humanitária decorrente da ação militar (sempre há), mas potencialmente pode ser possível mudar o foco para esse outro em grande parte não relatado desastre humanitário’: As centenas de milhares de jovens ucranianos sendo mortos, inutilmente, em uma guerra invencível [ênfase da tradutora].

Pode parecer superficial simplesmente mudar a retórica para dizer que sua missão é “humanitária” – a de salvar vidas ucranianas. Simplificando, no entanto, todo negociador deve proteger suas costas. Brutus está atrás, tanto quanto na frente.

No entanto, esse é apenas o primeiro obstáculo enfrentado por qualquer interlocutor americano imaginário. O enquadramento reducionista extremo ocidental – afirmando uma “invasão russa injustificada” acompanhada por “atrocidades” concomitantes – é simplesmente o movimento que remove o contexto circundante da questão em disputa. O ‘olho’ ou o intelecto é separado e desvinculado do ‘objeto’ sob escrutínio: precisamente aquela questão de ‘como surgiu esta guerra’ em primeiro lugar, e como sua estrutura subjacente surgiu.

Em suma, o enquadramento ocidental é a tentativa de criar uma ‘clareira’ abstrata ou vazio espacial em torno da Operação Especial da Rússia na qual a coisa visível – a ‘invasão’ – deve ser posicionada e colocada diante do espectador externo como a causa única, e explicação suficiente para os eventos, de modo que o cidadão americano comum não se aprofunde mais.

O ‘Senador Mitchell’ (ou quem quer que seja) não pode reverter totalmente a visão monocular, mas deve insistir em seu discurso público de sempre enfatizar ‘ver com dois olhos’: Talvez seguindo uma sugestão do discurso de JF Kennedy em 1963, notando enfaticamente que quase exclusivamente entre as “grandes potências mundiais” os EUA e a Rússia nunca estiveram em guerra entre si. E reconhecendo as enormes baixas humanas que a Rússia sofreu durante a Segunda Guerra Mundial.

No não-ocidente, essa qualidade de ser capaz de ‘ver’ as duas posições (às vezes aspectos aparentemente opostos ao mundo ao nosso redor) não desperta absolutamente nenhuma preocupação. É precisamente a tendência do Iluminismo ocidental de fragmentar o ‘todo’ e depois categorizar, que nos leva a ver o conflito – quando o que estamos observando são diferentes polaridades se apresentando distintamente.

A questão mais espinhosa, no entanto, é a artimanha do “partido da guerra” de apresentar a Ucrânia como um Estado soberano homogêneo nos moldes do século XIX de uma composição de Estado-nação etnicamente coerente (sombras dos Jovens Turcos e a limpeza do Estado Turco, para torná-lo ‘turco etnicamente puro’).

Esta é a Grande Fabricação. A Ucrânia nunca foi ‘aquilo’. Sempre foi ‘fronteiras’ – ‘nem uma coisa nem verdadeiramente outra’. E houve uma resistência feroz desde o início (1917) por parte daqueles que se sentiam culturalmente russos, a serem “jogados” em uma miscelânea “Ucrânia” – o Estado de retalhos etnicamente conflituoso que emergiu da estratégia das minorias de Lenin.

Em 1917, foi declarado um novo Estado, violentamente combatido pelos nacionalistas ucranianos, a República Donetsk-Krivoy-Rog, (baseada em torno do Donbass), que pediu para permanecer como parte da União Soviética. Mas Lenin não aceitaria nada disso. Foi o início da contínua matança étnica que se seguiu à essa iniciativa fracassada de obter autonomia para Donbass.

Aqui está o ‘roçar’. Existem maneiras de administrar duas comunidades com visões mutuamente incompatíveis do futuro e com leituras históricas irreconciliáveis. (Esta foi a principal tarefa do senador Mitchell na Irlanda). Mas um resultado bem-sucedido só é possível quando ambas as partes (ainda que relutantemente) aceitam que a ‘Outra parte’ é uma expressão legítima dos pontos de vista de sua comunidade, mesmo que ambas as partes simultaneamente rejeitem a visão do Outro para o futuro – e, categoricamente, recusem sua leitura da História.

Esta aquiescência é essencialmente a pré-condição necessária para qualquer solução política – onde dois povos culturalmente e etnicamente divergentes, em completo desacordo um com o outro, compartilham um território.

Alcançar esse ponto de partida para um resultado político – mantendo a estrutura de um Estado ucraniano unitário – era, na verdade, precisamente o objetivo dos Acordos de Minsk.

E os líderes europeus (como eles próprios admitem) conspiraram para sabotar Minsk (e, portanto, a perspectiva de uma população alcançar autonomia dentro de ‘todo o Estado’). A Europa preferiu armar um lado, a fim de esmagar militarmente “o outro” (as repúblicas de Donetsk e Lugansk).

Somando-se a essa trágica decisão europeia (alimentada pela aspiração neoconservadora norte-americana de usar a Ucrânia como um porrete para atacar, rachar e fragmentar a Rússia), os europeus exageraram seu investimento na ‘narrativa ucraniana credenciada’ – um movimento que serviu apenas para facilitar a reviravolta tóxica ao rancor étnico que hoje domina Kiev.

A perspectiva de qualquer resolução do tipo Minsk foi destruída. Se esta história terminar restando apenas um “naco da Ucrânia”, os europeus terão apenas que buscar a responsabilidade em si mesmos.

O interlocutor americano imaginado terá pouca escolha a não ser reconhecer a realidade. As várias psicologias (mais importantes que a razão durante a guerra prolongada) estão agora muito amarguradas para qualquer tentativa de reorientar as estruturas subjacentes ao conflito.

A única solução é a ‘separação’, que já está ’em curso’ e pode se estender até o rio Dnieper e Odessa (mas que pode se estender ainda mais, com imprevisíveis ‘abocanhadas’ até o território mastigado, pelos vizinhos do Ocidente).

Francamente, os europeus trouxeram esse resultado para si mesmos, com seu engano sobre Minsk. Eles apostaram toda a prosperidade futura da Europa em um projeto neoconservador liderado pelos EUA para derrubar a Rússia – e perderam. Moscou não está interessada agora nem mesmo em conversar com a classe política da UE: eles não têm nenhuma ‘atuação’ de qualquer maneira; a atuação que importa reside em Washington.

Qualquer interlocutor dos EUA achará tudo isso – difícil de “vender” em casa. Uma Rússia mais forte, uma Ucrânia truncada, não receberá nenhum agradecimento das elites do poder nos EUA – apenas farpas venenosas dirigidas ao mensageiro. Mas um sucesso-chave não deve ser perdido de vista.

Nosso suposto interlocutor dos EUA pode se concentrar em descobrir como um Ocidente (inevitavelmente diminuído) pode existir, em segurança, com um heartland eurasiano próspero e politicamente em expansão. Difícil. Alguns nos Estados Unidos vão “enlouquecer” só de pensar e tentarão miná-lo; mas a grande maioria do mundo agradecerá generosamente a quem puder realizar essa tarefa essencial.

Isso nos leva ao último ponto – o timing. As poderosas elites americanas dominantes querem mesmo uma ‘rampa de saída’ neste ponto?

The Washington Post relatou em 15 de junho:

“À medida que a Ucrânia lança sua tão esperada contraofensiva contra ocupantes russos entrincheirados, tanto Kiev quanto seus apoiadores esperam uma rápida retomada de território estrategicamente significativo. Qualquer coisa a menos apresentará aos Estados Unidos e seus aliados perguntas incômodas que eles ainda não estão preparados para responder. […] Enquanto se dirige para a campanha de reeleição do próximo ano, Biden precisa de uma grande vitória no campo de batalha para mostrar que seu apoio incondicional à Ucrânia poliu a liderança global dos EUA, revigorou uma forte política externa com apoio bipartidário e demonstrou o uso prudente da força militar americana no exterior” [ênfase minha].

E se a vitória no campo de batalha não vier? Bem, talvez a resposta seja que essa lacuna será disfarçada com a promessa de mais armas e mais dinheiro, de modo a manter vivo algum vislumbre de uma perspectiva ucraniana, até às eleições americanas de 2024. A menos, é claro, que o centro de Kiev ‘não se mantenha’ e imploda repentinamente (talvez mais rápido do que muitos esperam). Não aposte em uma longa guerra: o ‘acampamento’ de Kiev é, como uma casca de crisálida abandonada com a lagarta, em busca de folhagens – em novas direções.

Fonte: https://strategic-culture.org/news/2023/06/26/the-negotiator-nightmare


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