Alastair Crooke – 17 de outubro de 2022
Mudanças históricas na política mundial acontecem muito devagar. Esse não foi o caso, no entanto, quando os EUA pisaram pela primeira vez no cenário mundial. Aconteceu subitamente em 1898 – com a invasão de Cuba: a velha Europa assistiu com ansiedade palpável… O Manchester Guardian, na época, relatou que quase todos os americanos passaram a abraçar esse novo zeitgeist expansionista. Os poucos críticos foram “simplesmente ridicularizados por suas dores”. O Frankfurter Zeitung alertou contra “as consequências desastrosas de sua exuberância”, mas percebeu que os americanos não ouviriam.
Em 1845, um artigo não assinado já havia dado origem ao slogan ‘Destino Manifesto’ – uma afirmação de que a América tinha o destino de se expandir e ocupar as terras alheias. Sheldon Richman, em America’s Counter-Revolution, escreveu que esta última visão claramente tinha “Império em seu cerne”.
Esse ethos de ‘Destino’ marcou o ponto de virada da antiga dinâmica de descentralização e o início do impulso americano em direção ao alcance imperialista totalizante que o sucedeu. (Nem todos, é claro, estavam a bordo – o ethos conservador inicial dos EUA era Burkeano [em referencia a Edmund Burke – estadista britânico famoso por sua oratória; defendeu a causa dos colonos americanos no Parlamento britânico e defendeu o sistema parlamentar (1729-1797) – nota do tradutor]: ou seja, desconfiado de envolvimentos estrangeiros).
Hoje, o quadro não poderia ser mais diferente. Dúvidas estão por toda parte; o impulso e a confiança no ‘Empire’ se desvaneceram. Os EUA imitam o exausto Império Austro-Húngaro da era pré-Primeira Guerra Mundial – arrastando uma série de nações aliadas para um conflito que – na época – se transformou na Primeira Guerra Mundial. Agora, é a Europa Ocidental que foi arrastada para outra guerra europeia – por definição – devido à sua aliança/lealdade com Washington.
Naquela época, como hoje, todos os estados subestimaram desastrosamente a duração e a gravidade do conflito – e interpretaram mal a natureza e o significado dos eventos.
A guerra de hoje (contra a Rússia) é enquadrada no Ocidente no tropo moral infantil (que, no entanto, parece funcionar para um público anestesiado) – a da Segunda Guerra Mundial: todo rival é outro Hitler, qualquer comentário reflexivo, outro exemplo de apaziguamento de Neville Chamberlain. Um tirano anseia por terras e dominação na Europa, e a única questão é se os bons e os justos podem reunir a determinação de derrotar essa ambição maligna.
Este meme simplista pretende claramente ofuscar dos eleitores o significado da dinâmica subjacente em ação: não apenas um grande ciclo político está em transição, mas isso está ocorrendo precisamente no momento em que o ‘modelo de negócios’ hiperfinanciado ocidental está rachando. Simplificando: a ofuscação narrativa (“estamos vencendo”) esconde riscos (tanto políticos quanto econômicos) cuja gravidade os líderes ocidentais parecem incapazes de (ou relutantes para) compreender.
Os EUA – como a Áustria-Hungria pré-guerra – estão lentamente desmoronando. Isso não pode mais ser falsificado. Washington está perdendo o controle sobre os eventos e cometendo erros estratégicos. Uma certa classe da elite dominante ocidental, no entanto, parece presa a uma leitura da história. Uma interpretação que vê a guerra como restauradora da saúde do Estado: que qualquer conflito – qualquer nós contra eles, seja real ou abstrato (como a guerra contra a pobreza, as drogas, o vírus etc.) – alimenta a centralização e fortalece o Leviatã totalizante. De fato, mesmo conceituada como uma guerra interna do tipo ‘nós contra o inimigo interno’, isso também é visto como uma consolidação do Leviatã.
Esta é a lição que a elite afirma ter aprendido com o Estado moderno. Em certo sentido, porém, essa política tornou-se sua própria bolha de narrativas abstratas: uma bolha centralizadora e totalizante. Uma bolha no entanto, que está começando a estourar.
As classes dominantes ocidentais não entendem – ou seja, não querem entender – ‘as palhas ao vento’, que estão movendo-se em outra direção – por exemplo, a recente cúpula da SCO de Samarcanda. Simplificando: a corrente do Leviatã seguiu seu curso; é isso. A história está se movendo em uma direção diferente, e os líderes ocidentais fingem não perceber.
Essa mudança de chave foi resumida de forma sucinta pelo ministro das Relações Exteriores da Índia recentemente, quando abordado por um europeu exigindo saber se ele apoiava ou não a Ucrânia – ou seja, diante do binário padrão ocidental: o meme ‘conosco ou contra nós’ – o diplomata indiano respondeu simplesmente que já era tempo de os europeus deixarem de pensar que ‘suas guerras’ eram as guerras do globo: ‘Não temos um lado: somos o nosso lado’, respondeu.
Em outras palavras, os ‘interesses’ ocidentais não necessariamente ‘se traduzem’ em se tornarem os interesses obrigatórios do mundo não-ocidental. O mundo não-ocidental é o seu ‘lado próprio’. Esses E=stados insistem em viver de acordo com uma estrutura extraída de sua própria experiência histórica passada; na criação de estruturas políticas moldadas para sua própria civilização e seus próprios interesses, e em economias ajustadas ao grão para seu próprio enquadramento social.
Este é o significado de Samarcanda: Multipolarismo. Ele refuta a presunção ocidental de ‘direito’ excepcional: esperar que os outros coloquem seus interesses atrás dos do Ocidente. Acima de tudo, é uma corrente que enfatiza a soberania e a autodeterminação.
Claramente, tais sentimentos não podem ser considerados antiocidentais. No entanto, a pré-disposição binária no Ocidente está tão profundamente arraigada que poucos ‘entendem’ (e aqueles que entendem, não gostam).
Esta é a principal maneira pela qual o significado da crise europeia de hoje é mal interpretado politicamente: o longo ciclo histórico da centralização está se invertendo, voltando para a descentralização (os Estados são seu ‘próprio lado’). Do outro lado estão os EUA – divididos internamente; assolados pela crise; insinuando fraqueza; e, consequentemente, atacando tudo para se agarrar às suas raízes expansionistas originais.
Em segundo lugar, a natureza da guerra é mal concebida no Ocidente ao ser vista apenas através das lentes do conflito na Ucrânia. Este último é apenas um pequeno episódio na ‘longa guerra’ travada por europeus e anglo-saxões contra a Rússia. Isso, por si só, fez ressurgir velhos fantasmas revanchistas da Europa – fato que ao mesmo tempo agrava as tensões e complica qualquer eventual resolução da crise.
Um notório mal-entendido e negligência, no entanto, diz respeito à natureza da política e ao papel desempenhado pelos combustíveis fósseis. A energia está de fato no centro disso. Como poderia a atual classe dominante em Washington ‘esquecer’ que a economia real ocidental é um sistema de rede baseado na física, alimentado por energia? A modernidade depende dos combustíveis fósseis. Uma transição suave para a energia verde ao longo do tempo, portanto, também depende em grande parte da disponibilidade contínua de combustível fóssil barato e abundante. Sem energia dos tipos certos, os empregos desaparecem e a quantidade total de bens e serviços produzidos cai vertiginosamente.
No entanto, os líderes ocidentais lançaram este entendimento básico ao vento. Em que eles estavam pensando ao defender que a Europa deveria sancionar a energia russa barata e, em vez disso, confiar no caro GNL americano? Sobre reafirmar uma hegemonia “baseada em regras”? Sobre “valores europeus”? Isso foi devidamente pensado?
E, em mais um ato de loucura ligada à energia, o governo Biden agora alienou a Arábia Saudita e os produtores da OPEP. A OPEP é um cartel que tenta gerir a produção e a procura através da fixação do preço do petróleo. A equipe Biden esqueceu que petróleo e gás – de maneira real – são a própria essência da geopolítica? O preço, o fluxo e o encaminhamento da energia estão no fundo, a principal ‘moeda’ da política global.
No entanto, o G7 decidiu retirar a Arábia Saudita de seu papel. Em vez disso, propôs o “cartel de compradores dos Estados ocidentais” que definiria o preço do petróleo (e, por sugestão de Mario Draghi) estenderia um teto de preço também ao gás. Dito de forma simples: isso era dar um golpe no ‘modelo de negócios’ da Arábia Saudita e desmoronar a principal função da OPEP – agora fortalecida como OPEP +.
Não contente em fazer isso, o governo Biden passou a vender um milhão de barris por dia das reservas estratégicas que minavam ainda mais o modelo de negócios saudita, ao mesmo tempo em que buscava reduzir os preços do petróleo por meio de manipulação de mercado.
Esperava-se que a Arábia Saudita entregasse o seu papel duramente conquistado na OPEP para a definição de preços ao G7? Por que deveria? É justificavel com base no fato de que o partido de Biden enfrenta eleições de meio de mandato desafiadoras em novembro?
Isso é exatamente o que os Estados estavam protestando na Cúpula de Samarcanda – o senso ocidental de direito. Isso, é claro, Mohammad bin Salman deve adiar as perspectivas eleitorais de Biden e sorrir quando seu ativo geopolítico for retirado.
Em vez disso, evocou um desafio total. O ex-embaixador indiano, MK Bhadrakumar, escreve:
“… a OPEP está reagindo proativamente. Sua decisão de reduzir a produção de petróleo em 2 milhões de barris por dia e manter o preço do petróleo acima de US$ 90 por barril zomba da decisão do G7 [de forçar um teto aos preços]. A OPEP+ estima que as opções de Washington para combater a OPEP+ são limitadas. Ao contrário da história energética passada, os EUA não têm hoje um único aliado, dentro do grupo OPEP+.
Devido à crescente demanda doméstica por petróleo e gás, é perfeitamente concebível que as exportações dos EUA de ambos os itens possam ser reduzidas. Se isso acontecer, a Europa será a maior prejudicada. Em uma entrevista com FT na semana passada, o primeiro-ministro da Bélgica, Alexander De Croo, alertou que, à medida que o inverno se aproxima, se os preços da energia não forem reduzidos, “correremos o risco de uma desindustrialização maciça do continente europeu e as consequências a longo prazo disso – podem ser muito profundas.”
Ele acrescentou estas palavras assustadoras: “Nossas populações estão recebendo faturas que são completamente insanas. Em algum momento, ele vai estourar. Eu entendo que as pessoas estão com raiva. . . as pessoas não têm como pagar”. De Croo estava alertando sobre a probabilidade de agitação social e turbulência política nos países europeus”.
Este é o velho ‘pecado’ imperial. Esperando e insistindo em deferência, enquanto transmite fraqueza inerente. Washington e seus aliados estão tentando obrigar o servilismo em todas as frentes. No entanto, a retórica belicosa está saindo pela culatra – os Estados progressivamente perderam sua apreensão em relação a Washington.
Assim, as ameaças dos EUA inspiram cada vez mais não deferência – mas desafio. O problema é que a teia de narrativas binárias de guerra ‘nós contra eles’ tornou-se cada vez mais artificial e implausível – e, consequentemente, quase impossível manter o Ocidente unido.
Essa tendência global em direção ao desafio pode, em última análise, provar ser o divisor de águas – superando em muito qualquer resultado da guerra na Ucrânia – para uma ordem global alterada. Particularmente, porque Biden escolheu um momento delicado para fazer guerra aos produtores de petróleo. Então, temos três bolhas distintas que parecem prontas para estourar em conjunto, criando uma tempestade muito ‘imperfeita’ que pode engolir o que resta da ‘força’ ocidental.
Aqui está o ponto: não apenas um superciclo político está em transição, mas bolhas estão estourando em todas as frentes:
A ‘bolha’ da guerra na Ucrânia está se esvaziando, com os EUA e a Europa chegando ao fundo do ‘barril de inventário’ das armas; assim como do tanque das finanças de Kiev, e isso enquanto suas forças sofrem pesadas perdas. Além disso, Kiev e a OTAN enfrentam a perspectiva assustadora de uma grande ofensiva russa talvez em breve – talvez no início de novembro.
A segunda bolha que estoura é a do ‘modelo de negócios’ da Europa. Grande parte da indústria da UE simplesmente não é competitiva, tendo ‘perdido’ o gás e o petróleo russos baratos. Simplificando: o custo da energia está levando a indústria europeia à falência.
A terceira é a maior de todas: é a bolha da “inflação zero – taxa de juros zero/QE” que começou a estourar. É enorme. E estrategicamente, o Golfo representa o último conjunto de ‘liquidez’ genuína que historicamente tem sido um comprador confiável e detentor de títulos do Tesouro dos EUA.
Mais significativamente, essa hiperfinanceirização de décadas começou a descarrilhar, à medida que as taxas de juros disparam. O que estamos vendo no Reino Unido é apenas um ‘canário na mina’: muitos fundos estão altamente alavancados novamente (como antes de 2008) e expostos a derivativos novamente usando matemática deslumbrante para fingir que retornos acima do benchmark podem ser criados sem risco do nada (como antes de 2008). Isso sempre acaba mal. Toda essa alavancagem de alto risco e sem cobertura precisará ser desfeita em algum momento.
E neste exato momento, Biden decide entrar em guerra com os Estados produtores de energia do Golfo que quase exclusivamente detêm a credibilidade dos títulos do Tesouro dos EUA na palma de suas mãos. Washington não transpira nenhuma consciência aparente da gravidade dos eventos combinados – nem de qualquer necessidade de agir com cuidado.
Fonte: https://strategic-culture.org/news/2022/10/17/leviathan-super-cycle-ends-western-leaders-pretend-they-didnt-notice/
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