Previa-se que a ferrovia viesse a ser o principal corredor de transporte ligado a substanciais investimentos indianos em Chabahar, seu porto de entrada para o Golfo de Omã, como Nova Rota da Seda alternativa, para o Afeganistão e Ásia Central.
A modernização de infraestrutura das ferrovias e estradas a partir do Afeganistão para seus vizinhos Tajiquistão e Uzbequistão seria o próximo passo.
Toda a operação estava inscrita num acordo trilateral Índia-Irã-Afeganistão assinado em 2016 em Teerã pelo Primeiro Ministro Narendra Modi, o Presidente iraniano Hassan Rouhani e o então Presidente afegão Ashraf Ghani.
As desculpas não oficiais de Nova Delhi giram em torno do medo de que o projeto fosse atacado pelos EUA, com sanções. Nova Delhi conseguiu que o governo Trump suspendesse as sanções contra Chabahar e contra a ferrovia até Zahedan. O problema foi convencer uma gama de investidores parceiros, todos aterrorizados pelo risco de sofrerem sanções.
A verdade é que toda a saga tem mais a ver com o pensamento desejante de Modi, que conta com receber tratamento preferencial, nos termos da estratégia do governo Trump para o Indo-Pacífico, que se baseia de fato num Quad (“Quarteto”) – EUA, Índia, Austrália e Japão, estrutura destinada a conter a China. Esta é a causa de Nova Delhi ter decidido cortar as importações de petróleo do Irã.
Assim, para todos os efeitos práticos, a Índia jogou o Irã debaixo do ônibus. Não é de admirar que o Irã tenha resolvido avançar por conta própria, especialmente agora que está escorado pelo “Plano Abrangente de Parceria Estratégica entre a República Islâmica do Irã e a República Popular da China” (ing. Comprehensive Strategic Partnership between I.R. Iran, P.R. China), acordo de $400 bilhões de dólares e duração de 25 anos, e que sela a parceria estratégica entre China e Irã.
Neste caso, podem ficar sob o controle chinês duas “pérolas” estratégicas no Oceano Índico, a apenas 80 quilômetros de distância uma da outra: Gwadar, no Paquistão, entroncamento chave do Corredor Econômico China-Paquistão (ing. China-Pakistan Economic Corridor, CPEC)de $60 bilhões de dólares; e Chabahar.
Até agora, Teerã nega que o porto de Chabahar venha a ser arrendado a Pequim. Mas há possibilidade real, além dos investimentos chineses numa refinaria de petróleo perto de Chabahar, e, mesmo, no longo prazo, no próprio porto, de uma ligação operacional entre Gwadar e Chabahar. Essa ligação seria complementada pelos chineses que operariam o porto de Bandar-e-Jask, no Golfo de Omã, 350 quilômetros a oeste de Chabahar e muito perto do hiperestratégico Estreito de Ormuz.
Corredores são sempre atraentes
Nem alguma divindade indiana em surto de ressaca conseguiria imaginar “estratégia” mais contraproducente para os interesses indianos, caso Nova Delhi realmente recue da decisão de cooperar com Teerã.
Consideremos o essencial: Teerã e Pequim estarão trabalhando no que, de fato, é expansão massiva do Corredor Econômico China Paquistão, com Chabahar conectado a Gwadar e a seguir à Ásia Central e ao Mar Cáspio, pelas ferrovias iranianas. Estará também ligado à Turquia e ao Mediterrâneo Oriental, via Iraque e Síria, diretamente até a União Europeia.
Esta progressão capaz de mudar o jogo acontecerá no coração de todo o processo de integração da Eurásia – unindo China, Paquistão, Irã, Turquia e, claro, a Rússia, que já está ligada ao Irã pelo Corredor de Transporte Internacional Norte-Sul (ing. International North-South Transport Corridor).
Por enquanto, dadas as reverberações potentes em múltiplas áreas – melhoramento da infraestrutura energética, reformas de portos e refinarias, construção de um corredor de conectividade, investimentos na indústria manufatureira e suprimento pesado de petróleo e gás (questão de segurança nacional para a China) – não há dúvidas de que o acordo Irã-China está mesmo, no momento, sendo minimizado por ambos os lados.
Legenda: Vista aérea do porto iraniano de Chabahar que pode mudar de patrocinador: da Índia para a China.
As razões são autoevidentes – evitar que a ira da administração Trump suba a níveis ainda mais incandescentes, dado que ambos os atores são considerados pelos EUA como “ameaças existenciais”. Mesmo assim, Mahmoud Vezi, chefe de gabinete do Presidente Rouhani, garante que o acordo final Irã-China será assinado em março de 2021.
Enquanto isso, o Corredor Econômico China-Paquistão vai de vento em popa. O que Chabahar supostamente faria para a Índia, já está a pleno vapor em Gwadar. O trânsito comercial para o Afeganistão começou há dias, com cargas a granel vindas dos Emirados Árabes Unidos. Gwadar já começou a estabelecer-se como entroncamento chave no trânsito para o Afeganistão, muito adiante de Chabahar.
O fator estratégico é essencial para Cabul. O país depende de rotas por terra a partir do Paquistão – e algumas podem ser muito inseguras – assim como de Karachi e Porto Qasim. Especialmente para o sul do Afeganistão, a ligação por terra desde Gwadar, cruzando o Baluquistão é muito mais curta e segura.
O fator estratégico é ainda mais vital para Pequim. Para a China, Chabahar não seria prioridade, porque o acesso para o Afeganistão é mais fácil via Tadjiquistão, por exemplo.
Mas a história muda completamente, quando se trata de Gwadar – que se vai convertendo, lenta, mas firmemente, no principal entroncamento da Rota da Seda Marítima, conectando a China e o Mar da Arábia, o Oriente Médio e a África. Islamabad já está recolhendo recursos robustos, em impostos e taxas de passagem.
Resumindo, é jogo de ganha-ganha, mas sempre considerando que desafios e protestos a partir do Baluquistão não vão simplesmente desaparecer, e exigem de Pequim e Islamabad gestão muito cuidadosa.
Para a Índia, o caso de Chabahar-Zahedan não é o único retrocesso recente. O Ministro de Relações Exteriores indiano admitiu recentemente que o Irã desenvolverá “sozinho” o enorme campo de gás Farzad-B no Golfo Pérsico; e que a Índia pode vir a juntar-se à República Islâmica “de forma apropriada em estágio posterior”. O mesmo tipo de “estágio posterior” aplicado por Nova Delhi para Chabahar-Zahedan.
Os direitos de produção e exploração de Farzad-B já foram garantidos há anos para a empresa estatal indiana ONGC Videsh Limitada. Mas aí, mais uma vez, nada acontece, por efeito do proverbial fantasma das sanções.
Vale lembrar que essas sanções já estavam ativadas no governo de Barack Obama. Mesmo assim, naquela época Índia e Irã pelo menos comerciavam bens por petróleo. Projetava-se que Farzad-B voltaria a operar depois da assinatura do JCPOA (chamado “Acordo do Irã”) em 2015. Mas então as sanções de Trump, outra vez, tudo congelaram.
Não é preciso ser mestre e doutor em Ciência Política para saber quem pode acabar por tomar Farzad-B: a China, especialmente depois que, ano que vem, for assinado o acordo de parceria para os próximos 25 anos.
Contra seus próprios interesses energéticos e geoestratégicos, a Índia na realidade ficou reduzida ao status de mero refém da administração Trump. O objetivo verdadeiro dessa política de dividir para reinar aplicada contra Irã e Índia é impedir que os dois países comerciem usando as respectivas moedas, deixando o EUA-dólar fora do processo, especialmente nos negócios de energia.
O grande quadro, no entanto, sempre tem a ver com o avanço da Nova Rota da Seda através da Eurásia. Com evidências crescentes de integração cada vez mais forte entre China, Irã e Paquistão, o que se vê claramente é que a Índia só permanece integrada com as próprias inconsistências.*******
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