Por Enlil para o Saker Latinoamérica — 8 de maio de 2022
Nas frentes de Izyum-Severodonetsk (Kharkov Oblast-República Popular de Lugansk) tem acontecido pesados combates nas últimas semanas; as Forças Armadas Ucranianas sofreram grandes perdas humanas e materiais sobretudo nos enfrentamentos da última semana de abril e começo deste mês.
Na medida que avançam no terreno as Forças Russas e das Repúblicas Populares de Donestk (DPR [1]) e Lugansk (LPR [2]) estão capturando quantidades significativas de armas; dentre elas chama a atenção vetustas PM M1910/30 (Pulemyot Maxima M1910/30 [3]) operadas pelas Forças Armadas Ucranianas.
A PM M1910 de primeira geração russa é uma metralhadora de recuo média baseada na Maxim gun britânica, cujo projeto original foi desenvolvido em 1883 por Hiram Stevens Maxim. A arma ainda na fase de teste de protótipos começou a ser utilizada pelos britânicos em 1886 em suas infames guerras coloniais na África, assim como também foi fornecida ao Império Alemão com o mesmo objetivo a partir de 1888.
A metralhadora começa a ser produzida em série pela Vickers e é adotada oficialmente pelo Exército Britânico em 1888; vários países europeus também começam a utilizá-la e a Maxim gun no fim do século XIX e começo do XX se torna uma referência no desenvolvimento de metralhadoras, tendo múltiplas variantes e derivadas.
O Exército Imperial Russo comprou 58 metralhadoras Maxim em 1899 e contratou a Vickers em 1902 para fabricar a arma na Rússia; no entanto, a fabricação só começou em 1910; nesse ínterim, durante a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1906, o Exército Imperial Russo empregou as Maxim em combate e fez um pedido urgente de outras 450 unidades de fornecedores estrangeiros, que foram em sua maioria entregues às tropas da linha de frente antes do fim da guerra.
A PM M1910 russa se difere da Maxim gun britânica sobretudo por ser fabricada para disparar projéteis no calibre 7.62×54mmR; foi produzida em larga escala durante os anos 1910, 1920 (incluindo todo período da Guerra Civil Russa), 1930 e 1940 até o fim da Segunda Guerra Mundial.
O modelo inicial (com poucas modificações nos anos 1920) recebeu uma modernização em 1930 e as Maxim soviéticas modernizadas passaram a ser designadas PM M1910/30; no entanto, no fim dos anos 1930 a metralhadora já era obsoleta; em 1940 recebe novas pequenas modificações e continuou sendo produzida e largamente utilizada até o fim da Segunda Guerra Mundial. Até 1944 cerca de 270.000 PM M1910 e PM M1910/30 haviam sido produzidas na URSS.
A partir de 1943 a PM M1910/30 começa a ser substituída definitivamente no RKKA pela SG-43 Goryunov.
A Ucrânia herdou da URSS grandes depósitos de armas, desde reserva operacional a armas obsoletas que tinham saído de serviço das Forças Armadas soviéticas, algumas há décadas. Dentre essas armas havia dezenas de milhares de PM M1910/30; nos centros de armazenagem do Ministério da Defesa Ucraniano constavam 35.000 dessas armas em 2011, segundo lista equipamentos militares que podiam ser alienados. No entanto, a Guerra no Donbass logo adiante muda alguns “destinos”…
As Forças Armadas Ucranianas tiveram perdas catastróficas de material na Guerra do Donbass, sobretudo nos primeiros anos (2014-2016); para repor o material perdido tiveram que recorrer cada vez mais a arsenais e armazéns de estocagem da época da URSS; na medida que material mais moderno era perdido, e não havia reservas, começaram a ser incorporados à ativa grandes quantidades de material obsoleto, muito deles na reserva já na época da URSS; algumas vezes o material obsoleto de um modelo também se esgotava e um ainda mais antigo era incorporado.
Nesse contexto a PM M1910/30, que no inventário do Ministério da Defesa Ucraniano do começo da década de 2010 constava como material passível de alienação, foi tirada da “reserva” e novamente incorporada ao serviço ativo; primeiramente em batalhões de “voluntários” em 2014 e ao Exército Ucraniano pelo menos desde setembro de 2015, oficialmente desde dezembro de 2016.
No vídeo abaixo ela é vista sendo empregada por um batalhão de “voluntários” em outubro de 2014 na batalha pelo Aeroporto de Donetsk:
Segundo a reportagem acima:
“Com uma Metralhadora da Primeira Guerra Mundial, Combatentes Defendem o Aeroporto de Donetsk.
Os defensores do Aeroporto de Donetsk estão lutando em tanques velhos e desgastados, falta munição e roupas quentes. Soldados de batalhões voluntários recebem armas obsoletas.”
Vídeo da PM M1910/30 em uso pelo Exército Ucraniano na frente de combate na Guerra do Donbass em setembro de 2015:
Vídeo da PM M1910/30 já incorporada oficialmente ao Exército Ucraniano sendo utilizada na frente de combate na Guerra do Donbass em dezembro de 2016:
Com a decisão oficial em 2016 algumas publicações ucranianas divulgaram que, com o Exército Ucraniano armado novamente com Maxims, “as carroças devem ser esperadas em breve”.
O caso da PM M1910/30 é simbólico da situação das Forças Armadas Ucranianas na guerra contra as Repúblicas Populares do Donbass, iniciada em 2014; um indicativo “gráfico” da precariedade material do Exército Ucraniano em áreas críticas no começo da guerra; além do desdém de Kiev e do alto oficialato com a tropas, um dos motivos principais dessa situação é a notória corrupção nas Forças Armadas e no complexo industrial-militar ucraniano; a partir do fim da URSS os grandes arsenais e tecnologia militar herdados pelo país passaram a ser vilipendiados por oligarcas, oficialato das Forças Armadas e civis na indústria de defesa ucraniana; grande parte dos melhores sistemas de armas, em estado de conservação, tecnologicamente avançados e tecnologias foram vendidos, para empresas/agentes privados ou governos, legal ou ilegalmente. A corrupção e roubo foram de tal magnitude que ao longo da Guerra no Donbass houve várias explosões suspeitas de paióis ucranianos; há fortes indícios que alguns (senão a maioria) desses sinistros não foram negligência, mas sim criminosos para ocultar grandes roubos de armas e munições.
Agora, a partir da Operação Especial russa na Ucrânia, e o virtual desaparecimento da complexo industrial-militar ucraniano, captura e destruição da maioria dos arsenais restantes, é a vez dos países da OTAN se locupletarem no país despachando seus arsenais obsoletos, fora do padrão OTAN (caso dos países do antigo Pacto de Varsóvia ou Bálcãs que entraram na organização) e variantes antigas de sistemas de armas atuais em sua guerra de procuração via Ucrânia contra a Rússia, satisfazendo os interesses de seus políticos, oficialato das Forças Armadas e complexos industriais-militares.
Enlil: Editor do canal público Frente Oriental no Telegram (https://t.me/frenteoriental), dedicado a História, Geopolítica e Defesa, com foco em China, Irã, Rússia e conflitos no Oriente Médio (sobretudo envolvendo as forças do “Eixo da Resistência” do Irã-Iraque-Síria-Líbano e Iêmen), na África e outras regiões da Ásia (sobretudo Central).
Notas:
[1]. DPR: Donetsk People’s Republic (República Popular de Donetsk).
[2]. LPR: Lugansk People’s Republic (República Popular de Lugansk); é chamada tanto como LPR, abreviação do inglês, quanto LNR (Luganskaya Narodnaya Respublika), latinização do cirílico russo.
[3]. Pulemyot Maxima obraztsa 1910/30 goda (Maxim’s machine gun Model 1910/30: Metralhadora Maxim Modelo 1910/30).
[4]. Também podem ser vistas na foto outras armas da primeira metade do século XX como fuzis Mosin-Nagant e Tokarev SVT-40.
[5]. RKKA: Rabóche-Krest’yánskaya Krásnaya Ármiya (Exército Vermelho dos Trabalhadores e Camponeses).
Be First to Comment