Série Crônicas do Colapso no Ocidente – N. Patrushev: “Existe hoje um renascimento generalizado do tráfico de crianças órfãs e de órgãos humanos retirados da Ucrânia”

Lady Bharani – 14 de outubro de 2022

Damos prosseguimento a uma série de discussões sobre os sinalizadores do colapso no Ocidente. Tais indicadores fazem-se cada vez mais presentes em nossas sociedades, nas esferas financeira, comercial, política, social e cultural. Uma boa fonte de consulta sobre esse assunto é a obra The Five Stages of Collapse (2013)/Os Cinco Estágios do Colapso (2015), de Dmitry Orlov.

Aqui Quantum Bird responde às minhas perguntas dentro deste escopo, de forma pontual, concisa e muito generosa. Sua análise articula muito bem alguns desses sinalizadores do colapso, nos oferecendo um quadro mais abrangente – e demasiado preocupante – do nosso atual contexto civilizatório.

Lady Bharani pergunta a Quantum Bird

Pergunta: Este é um ponto delicado mas que precisa ser discutido. Há poucos meses, Patrushev afirmou que, em meio ao atual conflito OTAN vs Rússia, já vemos

“um renascimento da venda generalizada de crianças órfãs retiradas da Ucrânia para posterior adoção ilegal na Europa. O Ocidente já está enfrentando um renascimento do mercado paralelo para a compra de órgãos humanos de segmentos socialmente vulneráveis da população ucraniana para operações clandestinas de transplante para pacientes europeus.”

Sei que você já chama atenção para esse fato há anos, tanto na Europa quanto no Brasil. Qual a real abrangência desse tráfico e por que evitamos tanto em discutir sobre isso?

Quantum Bird: Sim, é verdade, venho há anos alertando os interlocutores para esse fenômeno. Podemos dizer que, na atualidade, entre as causas primárias desse fenômeno estão a grande concentração de renda em escala global, que juntamente com as guerras, cria a pressão migratória e as condições para a operação de esquemas para traficar seres humanos em situação de vulnerabilidade. Infelizmente, o tráfico de seres humanos é muito prevalente no Brasil, que ocupa a posição de fornecedor de gente, principalmente para a prostituição. Entretanto, é um fenômeno global.

Em um tipo bem comum de esquema, as pessoas traficadas são geralmente atraídas pelos traficantes com promessas de uma vida melhor no país de destino, geralmente os EUA, a Europa e o Oriente Médio. Uma vez extraídas de seus países, elas são privadas de sua liberdade e exploradas como escravos em diferentes atividades e subempregos, incluindo prostituição. Outros são simplesmente sequestrados. Em ambos os casos, uma vez que a “vida útil” da pessoa para uma certa atividade se esgota, por um motivo ou por outro, ou uma boa oferta aparece, ela é desmembrada e seus órgãos são vendidos no mercado negro internacional, para clientes ricos, de países ditos “desenvolvidos”, que não estão dispostos a esperar numa fila de transplantes.

Existe um canal no YouTube que presta um excelente serviço documentando e investigando casos desse tipo. Chama-se Sobrevivendo na Turquia. Todos deveriam assistir. As autoridades brasileiras estão cientes desse problema e vêm trabalhando na repressão dessas atividades e na assistência às vítimas. Como um exemplo de imigração ilegal sistêmica e histórica, gostaria de citar a situação em Minas Gerais, na região do vale do Rio Doce, principalmente na área de Governador Valadares, onde existe toda uma economia local girando em torno das atividades relacionadas à imigração ilegal, principalmente para os EUA. Como essas atividades se superpõem ao tráfico de seres humanos é uma questão em aberto e pouco comentada. Temos simplesmente poucos dados públicos sobre isso, mas devemos sempre ter em mente que os ambientes e infraestrutura envolvidos, como também os atores, são quase sempre os mesmos.

Foto de matéria da Al Jazeera “Escravidão na Líbia: a vida dentro de um contêiner“, publicada em 26 de janeiro de 2018, indicada abaixo como leitura recomendada. [Jawahir Hassan Al-Naimi/Al Jazeera]

No plano global, todos vimos como a venda de escravos africanos ressurgiu a céu aberto, em mercados e feiras públicas na Líbia depois da intervenção da OTAN (Europa + EUA, quem mais seria, né?) para assassinar o governante [Muammar Gaddafi], mudar o regime e destruir aquele país, que estava entre os mais prósperos do continente africano. Existem várias denúncias de como órgãos de soldados ucranianos jovens e saudáveis, feridos no conflito na Ucrânia, estão sendo extraídos e comercializados em várias cidades da Europa. Isso enquanto o desmantelamento contínuo do sistema público de saúde ocidental garante que as pessoas comuns (muito fora do círculo dos 1%, digamos) morram nas filas esperando por transplantes e tratamentos.

Devemos entender que a logística envolvida na prática de tais crimes não é trivial, e de fato, demanda a intervenção de vários profissionais altamente especializados. Devemos também nos fazer perguntas básicas a respeito de tudo isto. Por exemplo, como fica o pós-operatório e o controle de saúde de um sujeito que recebe um transplante ilegal? Seguramente ele não pode ir normalmente a um hospital comum e declarar “Comprei um coração na feira faz um tempo e queria fazer uma revisão para ver como está…”, ou “comprei esse rim, mas meu corpo está rejeitando ele, vocês podem me ajudar?”.

Tudo isto é de fato muito complexo, mas parece operar com relativa segurança e sem maiores distúrbios, sugerindo a ampla participação de atores estatais, bem como a normalização de tais atividades junto às classes médias, de onde de fato saem os profissionais gabaritados para o serviço.

Por fim, a maioria das pessoas evita tais assuntos porque, na pós-modernidade, valores humanos concretos foram substituídos por uma postura superficial e puramente estética de sinalização de virtudes. E essas virtudes, digamos assim, nunca vão contra o capital, ou a posição pretensamente hegemônica e excepcional dos centros imperialistas. Outro aspecto é o pensamento duplo e a moral seletiva que tudo isto engendra. Quem está sendo traficado e desmembrado para venda de seus órgãos? Onde isto acontece? Quem pode pagar por isso? Então…


Fontes:

1. Nikolai Patrushev, Secretary of the Russian Security Council, in an interview with Rossiyskaya Gazeta – 30 de abril de 2022 – traduzido pelo Saker LatinoAmérica: Nikolai Patrushev, secretário do conselho de Segurança da Rússia em entrevista à Rossiyskaya Gazeta

2. Sobrevivendo na Turquia – Canal no YouTube de Daniele Boggione – Casos de brasileiros e brasileiras no Oriente Médio

Leitura recomendada: Escravidão na Líbia: a vida dentro de um contêiner – por Fatma Naib – matéria da Al Jazeera de 26 de janeiro de 2018


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