03-03-2016
Numerosas investigações científicas testemunham o elevado nível cultural e espiritual da Rus’ daqueles dias, um nível que, frequentemente, era superior ao dos países europeus ocidentais contemporâneos. Muitos pensadores ocidentais notáveis reconheceram que a Rus’ fazia parte do contexto europeu. Ao mesmo tempo, o povo russo possuía uma matriz cultural própria e um tipo de de espiritualidade original e nunca se misturou com o Ocidente. Neste contexto, é útil recordar o que foi para o meu povo, em muitos aspectos, uma época crítica e trágica – a invasão mongol . O grande poeta e escritor russo, Alexander Pushkin escreveu: “Os bárbaros não se atreveram a deixar uma Rus escravizada para trás e regressar às estepes orientais. O iluminismo cristão foi salvo pela Rússia, devastada e moribunda. Também conhecemos uma visão alternativa oferecida pelo ilustre historiador e etnólogo Lev Gumilyov, que acreditava que a invasão mongol tinha preparado o aparecimento de uma nova etnia russa e que a Grande Estepe nos tinha dado um impulso adicional para o desenvolvimento.
Seja como for, é evidente que o período acima referido foi extremamente importante para a afirmação do papel independente do Estado russo na Eurásia. Recordemos, neste contexto, a política seguida pelo Grão Príncipe Alexandre Nevsky, que optou por submeter-se temporariamente aos governantes da Horda de Ouro, que eram tolerantes com o cristianismo, a fim de apoiar o direito dos russos de ter uma fé de sua própria escolha e decidir o seu destino, apesar das tentativas do Ocidente Europeu de colocar os territórios russos sob controlo total e privar a população russa da sua identidade. Creio que esta política sábia e voltada para o futuro está nos nossos genes.
A Rus vergou mas não foi quebrada pelo pesado jugo mongol e conseguiu sair desta provação terrível como sendo um único estado, que mais tarde foi considerado quer pelo Ocidente, quer pelo Oriente, como o sucessor do Império Bizantino, que deixou de existir em 1453. Era um país imponente que se estendia ao longo do que era praticamente todo o perímetro oriental da Europa e assim, a Rússia começou uma expansão natural em direcção aos Montes Urais e à Sibéria, absorvendo territórios enormes. Já então era um poderoso factor de equilíbrio para as combinações políticas europeias, incluindo a bem conhecida Guerra dos Trinta Anos, que deu à luz o sistema de relações internacionais da Westfália, cujos princípios, sobretudo o respeito pela soberania do Estado, que mesmo hoje são de grande importância.
Neste ponto, estamos aproximarmo-nos de um dilema que tem sido evidente durante vários séculos. Enquanto o estado de Moscovo em rápido desenvolvimento, desempenhava naturalmente, um papel cada vez mais preponderante nos assuntos europeus, os países europeus estavam inquietos sobre o gigante em desenvolvimento no Oriente e tentaram isolá-lo sempre que possível e impedi-lo de participar nos assuntos mais importantes da Europa.
A contradição aparente entre a ordem social tradicional e um esforço enorme de modernização baseado na experiência mais avançada, também remonta há séculos. Na realidade, um estado em franco desenvolvimento é obrigado a tentar dar um salto em frente, contando com a tecnologia moderna, o que não implica necessariamente ter de renunciar ao seu “código cultural.” Há muitos exemplos de modernização de sociedades orientais sem haver uma ruptura radical com as suas tradições. Isto é mesmo muito típico da Rússia que, essencialmente, é um ramo da civilização europeia.
A propósito, a necessidade de modernização baseada em empreendimentos europeus foi claramente manifestada na sociedade russa sob o Czar Alexandre, se bem que o talentoso e ambicioso Pedro, o Grande, lhe tenha dado um forte impulso. Baseando-se em medidas nacionais, duras e resolutas, e na política externa bem sucedida, Pedro, o Grande, conseguiu colocar a Rússia na categoria dos países importantes da Europa, em pouco mais de duas décadas. Desde essa altura, a posição da Rússia não poderia mais ser ignorada. Nenhum assunto europeu podia ser resolvido sem a opinião da Rússia.
Não seria correcto pensar que todos estavam felizes com esta situação. Foram levadas a cabo repetidas tentativas de retroceder este país para a época anterior a Pedro, o Grande, ao longo dos séculos posteriores, mas não conseguiram. Em meados do séc. XVIII, a Rússia desempenhou um papel fundamental num conflito alargado a toda a Europa – a Guerra dos Sete Anos. Naquele tempo, as tropas russas fizeram uma entrada triunfal em Berlim, a capital da Prússia sob Frederico II, que tinha a reputação de ser invencível. A Prússia foi salva de uma derrota inevitável, apenas, porque a Imperatriz Isabel faleceu de morte súbita e foi sucedida por Pedro III, que simpatizava com Frederico II. Esta viragem na história da Alemanha, ainda é referida como o Milagre da Casa de Brandenburg. O tamanho, o poder e a influência da Rússia cresceram substancialmente sob o reinado de Catarina, a Grande, pois, como o então chanceler Alexander Bezborodko declarou: “Nenhum canhão na Europa poderia ser disparado sem o nosso consentimento.”
Gostaria de citar a opinião de uma pesquisadora respeitável da História russa, Hélène Carrère d’Encausse, secretária permanente da Academia Francesa. Ela disse que o Império Russo era o maior império de todos os tempos, na totalidade de todos os parâmetros – pelo seu tamanho, pela capacidade de administrar os seus territórios e pela longevidade de sua existência. Seguindo filósofo russo Nikolai Berdyayev, ela insiste que a História impregnou a Rússia, com a missão de ser a ligação entre o Oriente e o Ocidente.
Pelo menos durante os dois últimos séculos, todas e quaisquer tentativas de unir a Europa sem a Rússia ou contra ela, conduziram inevitavelmente a tragédias sombrias, cujas consequências foram sempre superadas com a participação decisiva do nosso país. Refiro-me, em parte, às guerras napoleónicas e após a conclusão das mesmas, a Rússia alterou o sistema de relações internacionais que se baseava nos interesses nacionais, pelo equilíbrio de forças e consideração mútua e impediu o poder e a influência de um Estado na Europa. Lembramos que o Imperador Alexander I teve um papel activo na elaboração das decisões do Congresso de Viena em 1815, que garantiram o desenvolvimento da Europa, sem confrontos armados graves durante os 40 anos que se seguiram.
Aliás, até certo ponto, as idéias de Alexander I podiam ser descritas como um protótipo do conceito de subordinar os interesses nacionais aos objectivos comuns, principalmente, a manutenção da paz e da ordem na Europa. Como disse o Imperador russo: “Não pode haver nunca mais uma política inglesa, francesa, russa ou austríaca. Só pode haver apenas uma política – uma política comum que deve ser aceite por ambos os povos e soberanos para obter a felicidade comum “.
Da mesma maneira, o sistema de Viena foi destruído na sequência do desejo de marginalizar a Rússia dos assuntos europeus. Paris estava obcecada com esta ideia durante o reinado do Imperador Napoleão III. Na tentativa de forjar uma aliança contra a Rússia, o monarca francês, agindo como um grão mestre de xadrez infeliz, estava disposto a sacrificar todas as outras peças do jogo. Como é que tal aconteceu? Na verdade, a Rússia foi derrotada na Guerra da Criméia de 1853-1856, cujas consequências que conseguiu superar em breve devido a uma política consistente e clarividente, levada a cabo pelo Chanceler Alexander Gorchakov. Quanto a Napoleão III, terminou o seu governo como prisioneiro dos alemães e o pesadelo do confronto franco-alemão pairou sobre a Europa Ocidental durante décadas.
Aqui está outro episódio relacionado com a Guerra da Criméia. Como sabemos, o Imperador austríaco recusou-se a ajudar a Rússia, que, alguns anos antes, em 1849, tinha vindo em sua ajuda durante a revolta húngara. Em seguida, o ministro dos Negócios Estrangeiros austríaco, Felix Schwarzenberg, disse a famosa frase: “A Europa ficaria surpreendida pela profundidade da ingratidão da Áustria.” De um modo geral, o desequilíbrio dos mecanismos políticos e económicos europeus provocaram uma cadeia de acontecimentos que conduziram à Primeira Guerra Mundial.
Em particular, regressando àquela época da diplomacia russa e também ás ideias avançadas que estavam à frente do seu tempo. As conferências da paz da Haia de 1899 e 1907, convocadas por iniciativa do Imperador Nicolau II, foram as primeiras tentativas de chegar a um acordo sobre a contenção da corrida às armas e impedir os preparativos de uma guerra devastadora. Mas muitas pessoas não sabem nada sobre ele.
A Primeira Guerra Mundial ceifou vidas, causou o sofrimento de incontáveis milhões de pessoas e levou ao colapso de quatro impérios. Neste contexto, é oportuno lembrar ainda outro aniversário, que irá acontecer no próximo ano – o 100º aniversário da Revolução Russa. Hoje somos confrontados com a necessidade de desenvolver uma avaliação equilibrada e objectiva desses factos, especialmente num ambiente onde, particularmente no Ocidente, muitos estão dispostos a usar esta data para montar ainda mais ataques de informação sobre a Rússia, para retratar a revolução 1917 como um golpe bárbaro que denigre toda a História europeia. Pior ainda, querem equiparar o regime soviético ao nazismo, e culpam-no parcialmente pelo início da Segunda Guerra Mundial.
Sem dúvida, a Revolução de 1917 e a guerra civil que se seguiu foram uma tragédia terrível para a nossa nação. No entanto, todas as outras revoluções também foram trágicas. Isso não impede os nossos colegas franceses de exaltarem a sua revolução, a qual, para além dos slogans de liberdade, igualdade e fraternidade, também está ligada ao uso da guilhotina e a rios de sangue.
A Revolução Russa foi, sem dúvida um grande acontecimento que teve impacto na História do mundo, de maneira muito duvidosa. Foi considerada como uma espécie de experiência na implementação das ideias socialistas, que foram então amplamente difundidas em toda a Europa. As pessoas apoiaram-nas, porque grandes massas da população eram atraídas para a organização social, confiando nos princípios colectivos e comunitários.
Os pesquisadores honestos observam claramente o impacto das reformas na União Soviética na formação do chamado estado de bem-estar na Europa Ocidental no período após a Segunda Guerra Mundial. Os governos europeus decidiram introduzir medidas sem precedentes de protecção social sob a influência do exemplo da União Soviética, num esforço para tornar as ideias das forças políticas de esquerda menos boas, especialmente tendo-as colocado em prática antes deles ou melhor do que eles.
Pode dizer-se que os 40 anos a seguir à Segunda Guerra Mundial foram uma época surpreendentemente boa para a Europa Ocidental, que foi poupada à necessidade de tomar as suas próprias decisões importantes devido ao confronto EUA-URSS e usufruiu oportunidades únicas para conseguir um desenvolvimento estável.
Nestas circunstâncias, os países da Europa Ocidental implementaram várias ideias sobre a conversão dos modelos capitalista e socialista, que, como sendo a forma preferida de progresso socio-económico, foram promovidas por Pitirim Sorokin e outros pensadores ilustres do século XX. Durante os últimos 20 anos, temos vindo a assistir ao processo inverso na Europa e nos Estados Unidos: a redução da classe média, o aumento da desigualdade social e o desmantelar dos controlos sobre os grandes negócios/empresas.
O papel que a União Soviética desempenhou na descolonização e na promoção dos princípios das relações internacionais, tais como o desenvolvimento independente das nações e seu direito à auto-determinação, é inegável.
Não me vou debruçar sobre os pontos relacionados com a Europa a resvalar para a Segunda Guerra Mundial. Claro que as aspirações anti-russas das elites europeias e o seu desejo em libertar a máquina de guerra de Hitler contra a União Soviética tiveram um papel preponderante. Corrigir a situação após este terrível desastre envolveu a participação do nosso país como sendo um parceiro-chave na determinação dos parâmetros da ordem Europeia e mundial.
Neste contexto, a noção de “choque de dois totalitarismos” , que agora é inculcada activamente nas mentes europeias, incluindo nas escolas, é infundada e imoral. A União Soviética, apesar de todos os seus males, nunca teve como objectivo destruir nações inteiras. Winston Churchill, que toda a sua vida foi um oponente de princípio da União Soviética e desempenhou um papel importante que vai desde a aliança da Segunda Guerra Mundial para um novo confronto com a União Soviética, disse que a benevolência, ou seja, a vida de acordo com a consciência, é a maneira como a Rússia aje.
Se deitarem um olhar imparcial aos países europeus mais pequenos, que anteriormente faziam parte do Pacto de Varsóvia, e que agora são membros da União Europeia e da NATO, é claro que o problema não foi sobre a subjugação da liberdade, que os intelectuais ocidentais gostam de mencionar, mas sim uma mudança de liderança. O Presidente russo, Vladimir Putin, falou sobre este assunto há pouco tempo. Os representantes desses países admitem à porta fechada que não podem tomar qualquer decisão importante sem a luz verde de Washington ou Bruxelas.
Parece que, no contexto do 100º aniversário da Revolução Russa, compreender a continuidade da História da Rússia, é importante para nós e ela deve incluir todos os períodos sem excepção e a importância da síntese de todas as tradições positivas e a experiência histórica como base para fazer progressos dinâmicos e defender o papel legítimo do nosso país, como sendo um dos principais centros do mundo moderno e um fornecedor dos valores do desenvolvimento sustentável, de segurança e de estabilidade.
A ordem mundial do pós-guerra dependia do confronto entre os dois sistemas mundiais e estava longe de ser ideal, mas foi suficiente para preservar a paz internacional e para evitar a pior tentação possível – o uso de armas de destruição maciça, principalmente, armas nucleares. Não há nenhuma solidez na crença popular de que a dissolução da União Soviética significou a vitória ocidental na Guerra Fria. Foi o resultado da vontade de nosso povo para a mudança, para além de uma cadeia de acontecimentos desafortunados.
Estes desenvolvimentos resultaram numa mudança verdadeiramente tectónica no panorama internacional. Na verdade, mudaram a totalidade da política global, considerando que o fim da Guerra Fria e o confronto ideológico relacionado com ela ofereceu uma oportunidade única para mudar a arquitetura europeia sobre os princípios da segurança indivisível e igual e de uma cooperação alargada, sem linhas divisórias.
Tivemos uma oportunidade prática para consertar a divisão da Europa e implementar o sonho de uma pátria comum europeia, que foi abraçada por muitos pensadores e políticos europeus, incluindo o presidente Charles de Gaulle, da França. A Rússia estava totalmente aberta a esta opção e promoveu várias propostas e iniciativas a este respeito. Logicamente, criámos uma nova fundação para a segurança europeia através do reforço dos componentes militares e políticos da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) na_Europa . Vladimir Putin disse numa entrevista recente ao jornal alemão Bild que o político alemão Egon Bahr propôs abordagens semelhantes.
Infelizmente, os nossos parceiros ocidentais fizeram uma escolha diferente. Optaram por expandir a NATO para leste e avançar o espaço geopolítico que controlavam para mais perto da fronteira russa. Esta é a essência dos problemas contínuos que azedaram as relações da Rússia com os Estados Unidos da América e com a União Europeia. É notável que George Kennan, o arquiteto da política dos EUA de contenção da União Soviética, disse nos últimos anos da sua velhice que a reafirmação da expansão da NATO foi “um erro trágico.”
O problema implícito desta política ocidental é que ignorou o contexto global. O mundo globalizado actual é baseado numa interligação sem precedentes entre os países e, por isso, é impossível desenvolver as relações entre a Rússia e a União Europeia, como se elas permanecessem no cerne da política global como acontecia durante a Guerra Fria. Devemos tomar nota dos processos poderosos que estão em andamento na Ásia-Pacífico, no Médio Oriente, na África e na América Latina.
As mudanças rápidas em todas as áreas da vida internacional são o sinal principal da fase actual. De maneira sintomática, muitas vezes, elas tomam um rumo inesperado. Assim, o conceito de “Fim da História” desenvolvido pelo conhecido sociólogo norte-americano e pesquisador político Francis Fukuyama, que foi popular na década de 1990, tornou-se hoje, claramente incompatível. De acordo com este conceito, a rápida globalização sinaliza a vitória final do modelo capitalista liberal, enquanto todos os outros modelos devem adaptar-se à mesma, sob a orientação de professores ocidentais sábios.
Na realidade, a segunda onda da globalização (a primeira ocorreu antes da Primeira Guerra Mundial) levou à dispersão do poder económico mundial e, portanto, da influência política e ao aparecimento de centros de poder, novos e grandes, principalmente na Ásia, na Região do Pacífico. A rápida ascensão da China é o exemplo mais claro. Devido às taxas de crescimento económico sem precedentes, apenas em três décadas, tornou-se na segunda e, calculada de acordo com a paridade do poder aquisitivo, a primeira economia do mundo. Este exemplo ilustra um facto axiomático – há muitos modelos de desenvolvimento – o que exclui a monotonia da existência dentro de um quadro ocidental uniforme, de referência.
Por consequência, houve uma redução relativa na influência do chamado “Ocidente histórico” que estava acostumado a ver-se como o mestre do destino da raça humana durante quase cinco séculos. A competição na conformação da ordem mundial no século XXI endureceu. A transição da Guerra Fria para um novo sistema internacional provou ser muito mais longa e mais dolorosa do que parecia há 20 ou 25 anos.
Neste contexto, uma das questões básicas em assuntos internacionais é a forma como esta competição, habitualmente natural, está a ser adquirida pelos poderes mais importantes do mundo. Vemos como os Estados Unidos e a aliança ocidental liderada pelos Estados Unidos, estão a tentar manter as suas posições dominantes por qualquer meio disponível ou, usando o léxico americano, para garantir a sua “liderança global”. Estão a ser usadas muitas maneiras diversas de exercer pressão, sanções económicas e até mesmo a intervenção armada directa. Estão a ser travadas guerras de informação em larga escala. A tecnologia da mudança inconstitucional do governo tem sido experimentada e testada, através da implementação de “revoluções coloridas”“. É importante notar que as revoluções democráticas parecem ser destrutivas para as nações que são alvo de tais acções. O nosso país, que passou por um período histórico de incentivar transformações artificiais no exterior, continua firmemente a preferir mudanças evolutivas que devem ser realizadas, da maneira e a uma velocidade que esteja em conformidade com as tradições dessa sociedade e com o seu nível de desenvolvimento.
A propaganda ocidental acusa habitualmente a Rússia de “revisionismo” e do suposto desejo de destruir o sistema internacional estabelecido, como se fossemos nós que bombardeámos a Jugoslávia em 1999, violando a Carta das Nações Unidas e a Acta Final de Helsínquia , como se fosse a Rússia a ignorar o direito internacional ao invadir o Iraque em 2003 e a distorcer as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, ao derrubar o regime de Muammar Gaddafi pela força na Líbia, em 2011. Há muitos exemplos.
Esse discurso sobre o “revisionismo” não sobrevive a um exame rigoroso. É baseado na lógica simples e até primitiva, de que só Washington pode definir o tom dos assuntos mundiais. Em linha com esta lógica, a princípio, formulada antes por George Orwell, mudou-se para o nível internacional e soa desta maneira: todos os Estados são iguais, mas alguns estados são mais iguais do que outros. No entanto, hoje as relações internacionais são muito sofisticadas – um mecanismo a ser controlado por um centro. Isso é óbvio, tendo em conta os resultados da interferência dos EUA: Não há praticamente nenhum estado na Líbia; o Iraque está a oscilar, à beira da desintegração, etc., etc.
Uma solução confiável para os problemas do mundo moderno só pode ser alcançada através de uma cooperação séria e honesta, entre os estados principais e as suas associações, a fim de enfrentarem os desafios comuns. Tal interacção deve incluir todas as cores do mundo moderno e basear-se na sua diversidade cultural e civilizacional, bem como reflectir os interesses dos componentes-chave da comunidade internacional.
Sabemos por experiência própria que, quando esses princípios são aplicados na prática, é possível alcançar resultados concretos e palpáveis, como o acordo sobre o programa nuclear iraniano, a eliminação das armas químicas da Síria, o acordo para acabar com as hostilidades na Síria e o desenvolvimento dos parâmetros básicos do acordo climático global. Isso mostra a necessidade de restaurar a cultura de compromisso, a confiança no trabalho diplomático, que pode ser difícil, mesmo exaustivo, mas que continua a ser, em essência, a única maneira de garantir uma solução mutuamente aceitável para resolver os problemas, por meios pacíficos.
As nossas abordagens são partilhadas pela maioria dos países do mundo, incluindo os nossos parceiros chineses, outras nações do BRICS e da SCO, e os nossos amigos do EAEU, do CSTO e da CEI . Por outras palavras, podemos dizer que a Rússia está a lutar NÃO contra alguém, mas pela resolução de todos os assuntos numa base de igualdade e de respeito mútuo, que é a única solução que pode ser considerada uma base confiável para uma melhoria das relações internacionais a longo prazo.
A nossa tarefa mais importante é unir os nossos esforços, não contra alguns desafios improváveis, mas contra os que são muito reais, entre os quais a agressão terrorista, que é o desafio mais premente. Os extremistas do ISIS, do Jabhatan-Nusra e similares conseguiram, pela primeira vez, estabelecer o controlo sobre vastos territórios na Síria e no Iraque. Eles estão a tentar alargar a sua influência a outros países e regiões e estão a cometer actos de terrorismo em todo o mundo. Subestimar esse risco é sofrer de miopia criminosa.
O Presidente russo, fez um apelo para a formação de uma frente ampla, a fim de derrotar os terroristas militarmente. As Forças Aero Espaciais russas deram um contributo importante para este esforço. Ao mesmo tempo, estamos a trabalhar afincadamente para estabelecer acções colectivas em relação à solução política para os conflitos nesta região em crise.
É importante ressaltar que o sucesso a longo prazo só pode ser alcançado, baseado no movimento para a parceria das civilizações, que se fundamenta na interacção respeitosa de diversas culturas e religiões. Acreditamos que a solidariedade humana deve ter uma base moral constituida pelos valores tradicionais que são amplamente partilhados pelas religiões mais importantes do mundo. Neste contexto, gostaria de chamar a atenção para a declaração conjunta do Patriarca Kirill e do Papa Francisco, na qual, entre outras coisas, manifestaram o apoio à família como sendo o centro natural da vida dos indivíduos e da sociedade.
Repito, não estamos à procura de um confronto com os Estados Unidos ou com a União Europeia ou com a NATO. Pelo contrário, a Rússia está aberta à mais ampla cooperação possível com os seus parceiros ocidentais. Continuamos a acreditar que a melhor maneira de garantir os interesses dos povos que vivem na Europa, é formar um espaço económico e humanitário comum, desde o Atlântico ao Pacífico, de modo que a recém-formada União Económica da Eurásia possa ser um elo de integração entre a Europa e a Ásia do Pacífico. Esforçamo-nos por fazer o nosso melhor para ultrapassar os obstáculos desse caminho, incluindo a resolução da *crise da Ucrânia causada pelo golpe de Estado em Kiev, em Fevereiro de 2014, com base nos **acordos de Minsk.
Gostaria de citar Henry Kissinger, diplomata sábio e politicamente experiente, que, falando recentemente em Moscovo, disse que “a Rússia deve ser encarada como um elemento essencial de qualquer equilíbrio global novo e não, essencialmente, como uma ameaça para os Estados Unidos … Estou aqui para discutir a possibilidade de um diálogo que procura entrelaçar o nosso futuro, em vez de enunciar detalhadamente os nossos conflitos. Isto exige o respeito de ambos os lados pelos interesses e valores vitais da outra parte. Nós partilhamos essa abordagem. E vamos continuar a defender os princípios da lei e da justiça nas relações internacionais.
Falando sobre o papel da Rússia no mundo, na qualidade de grande potência, o filósofo russo Ivan Ilyin disse que a grandeza de um país não é determinada pelo tamanho do seu território ou pelo número de habitantes, mas pela capacidade do seu povo e do seu governo de se responsabilizar pelo fardo dos grandes problemas do mundo e lidar com esses mesmos problemas de forma criativa. Uma grande potência é aquela que, afirmando a sua existência e o seu interesse … introduz uma ideia criativa, legítima e importante para todo o conjunto da assembleia das nações, para todo o “concerto” dos povos e dos Estados. É difícil não concordar com estas palavras.
*crise da Ucrânia – A informação disponível na Wikipedia está absolutamente deturpada e é tendenciosa. Para uma informação correcta, queiram por favor, aceder ao site The Saker http://thesaker.is/?s=ukraine
**Texto do protocolo
O texto do protocolo consiste em doze pontos:
- Assegurar o cessar-fogo imediato por ambos os lados em conflito.
- Garantir a supervisão e verificação do cessar-fogo pela OSCE.
- Descentralizar o poder, inclusivamente através da aprovação de uma lei ucraniana sobre a descentralização do poder, nomeadamente através de uma lei sobre o “regime provisório de governação local em certas zonas dos Oblasts (regiões) de Donetsk e Lugansk” (“Lei sobre o estatuto especial”).
- Assegurar a monitorização permanente da fronteira Russo-Ucraniana e a sua verificação pela OSCE, através da criação de zonas de segurança nas regiões fronteiriças entre a Ucrânia e a Federação Russa.
- A libertação imediata de todos os reféns e de todas as pessoas detidas ilegalmente.
- Uma lei prevenindo o julgamento e a punição de pessoas implicadas nos eventos que ocorreram nalgumas áreas dos Oblasts de Donetsk e de Lugansk, exceptuando em casos de crimes que sejam considerados graves.
- A continuação de um diálogo nacional inclusivo.
- A tomada de medidas para melhorar a situação humanitária na região de Donbass, no Leste da Ucrânia.
- Garantir a realização antecipada de eleições locais, em conformidade com a lei ucraniana (acordada neste protocolo) acerca do “regime provisório de governação local em certas zonas dos Oblasts de Donetsk e de Lugansk” (“Lei sobre o estatuto especial”).
- Retirada dos grupos armados ilegais, do equipamento militar, assim como dos combatentes e dos mercenários pró-governamentais.
- Aprovação do programa de recuperação económica e de reconstrução da região de Donbass, no Leste da Ucrânia.
- Garantir a segurança pessoal dos participantes nas negociações.
Memorando complementar
Durante as duas semanas seguintes à assinatura do Protocolo de Minsk, houve violações frequentes do cessar-fogo, por ambas as partes envolvidas no conflito. As conversações continuaram em Minsk. Um seguimento a este protocolo foi acordado em 19 de setembro de 2014. O memorando resultante clarificou a aplicação do protocolo. Entre as medidas de pacificação acordadas, foram incluídas as seguintes:
- Remoção de todo o armamento pesado, 15 kms para trás de la linha da frente de combate, por parte de ambos os lados implicados no conflito, de modo a criar uma zona desmilitarizada de 30 kms.
- Proibição das operações ofensivas.
- Proibição dos voos de aviões de combate sobre a zona de segurança.
- Retirada de todos os mercenários estrangeiros da zona de conflito.
- Configuração de uma missão da OSCE para supervisionar a aplicação do Protocolo de Minsk.
Em 26 de setembro, os membros do Grupo de Contacto Trilateral sobre a Ucrânia reuniram-se novamente para discutir a delimitação da zona-tampão (eventualmente equivalente às “linhas verdes” exitentes entre Israel e a Palestina ou em Chipre) onde o armamento pesado seria eliminado pelas partes implicadas no conflito.[12] A linha de demarcação entre a República Popular de Donetsk (DNR) e a Ucrânia foi acordada entre os representantes da DNR e os negociadores ucranianos, de acordo com o Vice-primeiro-ministro da Ucrânia, Vitalí Yarema.[13] Em 2 de dezembro de 2014, o parlamento ucraniano modificou unilateralmente a “Lei sobre o estatuto especial” proposta no Protocolo de Minsk, ainda que o mesmo parlamento tenha aprovado certos aspetos da lei que foi acordada en Minsk, como parte do acordo de cessar-fogo.[14]
Mais informação em
Tradutora: Maria Luísa de Vasconcellos
Email: luisavasconcellos2012@gmail.com
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