Outra tentativa malsucedida de enfraquecer o Irã
Primeiro, um rápido quem é quem
Por mais que o Reino da Arábia Saudita e o Qatar tenham tido suas diferenças e problemas no passado, dessa vez a crise é de magnitude muito mais ampla do que jamais antes. Abaixo, um resumo apenas tentativo e necessariamente superficial de quem apoia quem:
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Apoiam o Qatar(minha opinião)
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Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Egito, Maldivas, Iêmen, Mauritânia, Ilhas Comoros, Líbia (governo de Tobruk), Jordânia , Chad , Djibouti , Senegal , Estados Unidos, Gabão.
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Os números estão a favor dos sauditas, mas… e a qualidade?
Perguntas, muitas perguntas
A situação é muito fluida e tudo pode mudar a qualquer momento, mas mesmo assim: o que se vê de estranho no quadro acima? Turquia e Alemanha apoiam o Qatar, mesmo sabendo que os EUA apoiam o Reino da Arábia Saudita. Dois dos maiores membros da OTAN em posição contrária aos EUA.
Observemos também a lista dos que apoiam os sauditas: exceto EUA e Egito, são todos irrelevantes do ponto de vista militar (e os egípcios absolutamente não se envolverão militarmente). Não se pode dizer o mesmo dos que se opõem aos sauditas, e não, sobretudo, de Irã e Turquia. Assim se vê que, se o dinheiro pesa a favor dos sauditas, todo o poder de fogo, dessa vez, pesa a favor do Qatar.
E Gabão? Senegal? Desde quando esses dois países envolveram-se em políticas no Golfo Persa? Por que estão assumindo posição nesse conflito remoto? E exame rápido das 10 condições que os sauditas exijam que os Qataris cumpram também não ajuda os EUA a compreender por que esses países envolveram-se:
– Imediato rompimento de relações diplomáticas com o Irã.
– Expulsão do Qatar, de todos os membros do movimento Hamas da resistência Palestina.
– Congelar todas as contas bancárias de membros do Hamas e interromper qualquer tipo de negociação com eles.
– Expulsão, do Qatar, de todos os membros da Fraternidade Muçulmana.
– Expulsão de elementos anti-CCG [anti-Conselho de Cooperação do Golfo].
– Pôr fim ao apoio a ‘organizações terroristas’.
– Pôr fim à interferência em assuntos do Egito.
– Suspender completamente as transmissões do canal noticioso Al-Jazeera.
– Pedir desculpas formais a todos os governos do Golfo Persa pelos ‘abusos’ cometidos por Al-Jazeera.
– Que [o Qatar] assuma que não empreenderá ação alguma, de nenhum tipo, que contradiga as políticas do CCG; também se exige que o Qatar assine a Carta de constituição do CCG.
E os sauditas distribuíram uma lista de indivíduos e organizações que eles exigem que sejam banidos (a lista está aqui).
Se se examinam essas condições, vê-se bem claramente que o Irã e os palestinos (especialmente o Hamas) são considerados fatores de alto valor na lista de exigências. Mas o que têm Gabão ou Senegal a ver com isso?
Ainda mais interessante: por que ISRAEL não aparece listado como país que apoia o Reino da Arábia Saudita?
Como sempre, os próprios israelenses são muito mais honestos quanto ao papel deles em tudo isso. Ok, talvez não tenham dito “nós fizemos a coisa”, mas escrevem artigos do tipo “Five reasons why Israel should care about the Qatar crisis” [Cinco razões pelas quais Israel deve dar atenção à crise no Qatar], no qual se listam todas as razões pelas quais os israelenses estão maravilhados com a ação da Arábia Saudita:
– Fere o Hamas.
– Aproxima Israel, Arábia Saudita, Egito e o Golfo.
– Mostra que a influência dos EUA está de volta à região.
– Legitima o terrorismo.
– Reforça em geral a mão de Israel e, em particular, a mão do governo de Israel.
Esse tipo de honestidade é novo e refrescante, mesmo que essa lista vise primariamente ao público israelense doméstico.Verificação rápida com uma fonte palestina – sim, sim, é verdade: os israelenses estão apoiando o Reino da Arábia Saudita. Não chega a ser surpresa, e não importa o quando a mídia-empresa ocidental dedique-se a não noticiar esse fato.
E quanto aos EUA? Será que realmente se beneficiam da crise?
Os EUA mantêm no Qatar a base aérea que provavelmente é a maior do planeta, a Al Udeid Air Base. Além disso, o quartel-general avançado do Comando Central (CENTCOM) dos EUA também está localizado no Qatar. Dizer que são instalações cruciais de infraestrutura é dizer pouco – pode-se dizer que são as duas instalações militares mais importantes dos EUA, fora do território nacional norte-americano. Claro que se pode concluir que a última coisa que os EUA querem é qualquer tipo de crise ou, mesmo, de tensões, em qualquer região próxima daquelas instalações vitais, e é claro que sauditas e norte-americanos agem em uníssono contra o Qatar. Não faz sentido, ok? OK. Mas, agora que os EUA embarcaram numa política fútil de escalada militar na Síria, não se pode dizer que seja surpresa que os dois principais aliados dos EUA na região estejam fazendo a mesma coisa.
Além disso, quando, afinal de contas, antes, as políticas do governo Trump para o Oriente Médio fizeram qualquer sentido lógico? Durante a campanha eleitoral, chegaram a ser, digamos, 50/50 (excelente para o ISIS; absolutamente estúpida, para o Irã). Mas desde o golpe de janeiro contra Flynn e a rendição de Trump aos neoconservadores, o que se vê é uma modalidade de estupidez delirante depois da outra.
Objetivamente, a crise em torno do Qatar não é absolutamente boa para os EUA. Mas nada disso significa que um governo que foi invadido por ideólogos de linha dura estaria disposto a aceitar essa realidade objetiva. O que se tem aqui é governo extremamente fraco governando país que se vai enfraquecendo rapidamente, mas tenta desesperadamente provar que ainda teria muito peso para aplicar pelo mundo. E se o plano é realmente esse, é péssimo plano, condenado ao fracasso e plano que resultará em muitas consequências não desejadas.
De volta ao mundo real
O que temos aqui é caso severo de encenação & enganação, e o que está realmente em curso é nova tentativa canhestra, outra vez, empreendida pelos Três Estados Bandidos (EUA, Arábia Saudita, Israel), para enfraquecer o Irã.
Claro que há aqui outros fatores que também contribuíram para o resultado, mas o grande negócio, o xis do problema é o que eu chamaria de rápido crescimento do “impulso gravitacional do Irã” e a correspondente “decadência orbital” de toda a região, cada vez mais próxima do Irã. E só para piorar, os Três Estados Bandidos estão visivelmente e inexoravelmente perdendo influência sobre a região: os EUA no Iraque e na Síria; Israel, no Líbano; e Arábia Saudita, no Iêmen – os três embarcaram em operações militares que acabaram em fracasso abjeto e as quais, longe de mostrar que os Três Países Bandidos seriam poderosos, só mostraram o quanto são realmente fracos. Ainda pior que tudo isso é o fato de que os sauditas enfrentar severa crise econômica sem fim à vista, enquanto o Qatar já é o país mais rico do planeta, graças, principalmente, ao gigantesco campo de gás que o Qatar partilha com o Irã.
Poderia parecer que o Qatar afinal nem seja ameaça muito grave à Arábia Saudita, por ser – diferente do Irã – também país salafista. Na verdade, tudo isso é parte do problema: ao longo das últimas poucas décadas, os Qataris sentiram que a nova riqueza lhe dava meios completamente desproporcionais às suas limitações físicas. O Qatar não apenas criou o mais influente império midiático do Oriente Médio, al-Jazeera, mas, além disso, embarcou em política externa própria que fez dos qataris atores protagonistas nas crises na Líbia, no Egito e na Síria. Sim, sim, o Qatar converteu-se, sim, em grande financiador do terrorismo, mas, até aí os EUA, Arábia Saudita ou Israel também são grandes financiadores/apoiadores de terroristas, o que esvazia esse pretexto. O verdadeiro ‘crime’ dos qataris foi terem-se recusado, por razões puramente pragmáticas, a participar da massiva campanha anti-Irã que Arábia Saudita e Israel impuseram a toda a região. Diferentes da longa lista de países que foram obrigados a declarar em alto e bom som que apoiavam a posição saudita, os qataris tiveram meios e condições para responder simplesmente “não”, e definir a própria rota.
Agora, o que os sauditas mais querem é que o Qatar renda-se às ameaças e que a coalizão comandada pelos próprios sauditas prevaleça, sem que tenham de fazer guerra “quente” contra o Qatar. Hoje, já praticamente todos creem que alcançarão esse resultado, mas eu, pessoalmente, tenho muitas dúvidas (adiante, volto a esse ponto).
E a Rússia, em tudo isso?
Russos e qataris bateram cabeça já várias vezes, especialmente por causa de Síria e Líbia, onde o Qatar teve papel extremamente vicioso, como financiadores de vários grupos terroristas takfiris. Além disso, o Qatar é o principal concorrente da Rússia em muitos mercados de gás natural liquefeito. Houve também outras crises entre os dois países, inclusive o que parece o assassinato de um líder terrorista checheno Zelimkhan Yandarbiyev e a subsequente prisão e tortura de dois empregados da embaixada russa, acusados de envolvimento naquele assassinato (foram condenados a prisão perpétua, mas adiante foram devolvidos à Rússia). Seja como for, russos e qataris são povos eminentemente pragmáticos e os dois países quase sempre mantiveram relação cordial, embora cautelosa, que até incluiu alguns projetos econômicos conjuntos.
É altamente improvável que a Rússia chegue a intervir diretamente nessa crise, a menos, claro, que o Irã seja diretamente atacado. A boa notícia é que ataque direto ao Irã é bem pouco provável, porque nenhum dos Três Estados Bandidos tem de fato coragem para encarar o Irã (e o Hezbollah). Mas a Rússia, sim, usará seu soft power, político e econômico, para tentar atrair o Qatar, devagar, para a órbita russa, segundo a estratégia semioficial do Ministério de Relações Exteriores da Rússia, que é de“fazer dos inimigos agentes neutros, dos neutros amigos, e dos amigos aliados”. Como com a Turquia, os russos ajudarão de boa-vontade, especialmente porque sabem que essa ajuda lhes renderá preciosa influência na região.
Irã, o verdadeiro alvo de todos
Os iranianos já dizem abertamente que o recente ataque terrorista em Teerã foi ordenado pela Arábia Saudita. Tecnicamente falando, significa que o Irã está agora em guerra. Na realidade, claro, o Irã – que é a superpotência local real – está agindo comcalma e contenção: os iranianos compreendem perfeitamente que esse mais recente ataque terrorista é sinal de fraqueza, se não de desespero, e que a melhor reação é fazer como os russos, depois das bombas em São Petersburgo: manter-se focados, calmos e determinados. Como os russos, os iranianos também se ofereceram para enviar comida ao Qatar, mas é pouco provável que venham a intervir militarmente, a menos que os qataris enlouqueçam mesmo completamente. Além disso, com forças turcas estacionadas em breve no Qatar, os iranianos não têm necessidade de fazer exibição de força militar. Eu diria que o simples fato de que, nem EUA nem Israel, nunca mais se terem atrevido a atacar diretamente o Irã desde 1988 (desde que a Marinha dos EUA derrubou um Airbus iraniano, voo 655) é a melhor prova do verdadeiro poder militar iraniano.
Tudo isso considerado, em que direção estamos indo?
É realmente impossível prever, no mínimo porque as ações dos Três Estados Bandidos não podem ser descritas sequer como “racionais”. Ainda assim, se se assume que ninguém enlouquecerá completamente, meu sentimento pessoal é que o Qatar conseguirá impor-se e essa mais recente tentativa dos sauditas para provar o quão poderoso ainda é o Reino deles fracassará, como fracassaram todas as anteriores (Bahrain 2011, Síria 2012 ou Iêmen 2015). Nem o tempo corre a favor dos sauditas. Quanto aos qataris, já indicaram claramente que não pensam em se render e que lutarão. Os sauditas já tomaram a decisão vergonhosa de impor um bloqueio contra país muçulmano durante o mês santificado do Ramadan. Será que escalarão e cometerão ato de agressão contra outro país muçulmano, durante o Ramadan? É possível, mas difícil de acreditar que os próprios sauditas possam ignorar tão completamente a opinião pública muçulmana. Mas se não escalarem, a própria operação deles perderá muito impulso. Ao mesmo tempo, estarão dando aos qataris tempo para se prepararem politicamente, economicamente, socialmente e militarmente. O Qatar pode ser país pequeno, e a população não é grande, mas são riquíssimos, e podem mobilizar rapidamente qualquer quantidade necessária de fornecedores e contratados dispostos a ajudá-los. É caso em que as famosas “forças do mercado” atuarão a favor do Qatar.
O ministro de Relações Exteriores do Qatar é esperado em Moscou no sábado e parece óbvio que conversarão sobre: mesmo que a Rússia não ponha todo seu peso político para apoiar os qataris, o Kremlin pode aceitar a tarefa de mediador entre o Reino da Arábia Saudita e o Qatar. Se acontecer, seria a ironia máxima: o principal resultado da operação de sauditas, israelenses e EUA dará aos russos poder de influência ainda maior na região. Quanto ao Qatar, o resultado da crise se articulará no campo dos saberes Nietzscheanos: “O que não nos mata nos fortalece.”
Conclusão
Vejo essa mais recente crise como mais uma tentativa desesperada, dos Três Estados Bandidos, para provar que ainda são os tremendões do quarteirão; como das outras vezes, essa tentativa também fracassará. Por exemplo, simplesmente não creio que os qataris venham a fechar a rede al-Jazeera, uma de suas “armas” mais poderosas. Tampouco os vejo rompendo todas as relações diplomáticas com o Irã, porque os dois países são como irmãos siameses, unidos pelo imenso campo de gás Pars Sul. A imensa riqueza dos qataris significa também que eles têm poderosos apoiadores em todo o mundo, os quais, nesse momento em que escrevo essas linhas, estão provavelmente ao telefone em contato com gente influente, dizendo em termos bem claros que melhor não se meterem com o Qatar.
Se para mais não servir, essa crise servirá para empurrar o Qatar na direção do abraço receptivo de outros países, inclusive Rússia e Irã, e enfraquecerá ainda mais os sauditas.
Os Três Estados Bandidos têm o mesmo problema: a sua capacidade para ameaçar, abusar ou castigar está-se desgastando rapidamente e cada vez menos e menos países os temem, pelo mundo. O maior erro que cometem é que, em vez de tentar adaptar suas políticas a essa nova realidade, sempre escolhem subir a aposta, mais e mais, mesmo que fracassem sempre, e isso os faz parecer cada vez mais fracos e só faz aprofundar o dilema em que se debatem. Essa é perigosa espiral descendente, mas mesmo assim os Três Estados Bandidos parecem incapazes de conceber qualquer outra política.
Concluo essa coluna com uma comparação entre o que estão fazendo nesses dias os presidentes Putin e Trump, porque é comparação que me parece altamente simbólica da nova era em que vivemos hoje:
– Trump, depois de bombardear umas poucas “tecnicalidades” (veículos 4×4 com uma metralhadora) e caminhões na Síria, pôs-se a tuitar que Comey não passa de mentiroso e vazador.
– Putin participou da mais recente reunião de cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), que recebia Paquistão e Índia como novos membros plenos. A OCX representa agora mais da metade de toda a população que vive no planeta Terra, e ¼ do PIB mundial. Pode-se chamá-la de “outro G8”, ou de “o G8 que interessa”.
Pela minha avaliação, essa rápida comparação de agendas diz tudo.
[assina] The Saker
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