18ª reunião anual do Valdai International Discussion Club
21/10/2021, 21:25, Sochi (ing. distribuída pelo Kremlin, tradução automática revista)
O tema deste ano é a Agitação Global, no Século 21: O Indivíduo, Valores e do Estado. O programa de quatro dias inclui mais de 15 sessões entre presenciais e online.
Vladimir Putin, Presidente da Rússia:
Senhoras e senhores,
Para começar, gostaria de agradecer a vocês por virem à Rússia e participarem dos eventos do Valdai Club.
Como sempre, durante essas reuniões, levantam-se questões urgentes e mantêm-se discussões abrangentes sobre questões que, sem exagero, são importantes para as pessoas em todo o mundo. Mais uma vez, o tema-chave do fórum foi colocada em roupagem simples, eu diria mesmo, sem meias palavras, “Sacudida Global no século 21: O Indivíduo, Valores e o Estado.
Na verdade, estamos vivendo era de grandes mudanças. Se me permitem, conforme a tradição, apresentarei minhas opiniões a respeito da agenda que vocês propuseram.
Em geral, essa frase, “viver era de grandes mudanças”, pode parecer banal, dada frequência com que a usamos. Além disso, essa era de mudanças começou há muito tempo, e as mudanças passaram a fazer parte da vida cotidiana. Daí a pergunta: serão mudanças que merecem mesmo muita atenção? Digo que sim, e concordo com quem montou a agenda dessas reuniões. É claro que são mudanças importantíssimas.
Nas últimas décadas, temos ouvido muitas vezes, citado, um provérbio chinês. O povo chinês é sábio e tem muitos pensadores e pensamentos valiosos que ainda podemos usar hoje. Um deles, como vocês certamente já ouviram, diz: “Deus me livre de viver tempos de mudança”.
Já estamos em tempos de mudanças, gostemos ou não, e essas mudanças estão-se tornando mais profundas e mais fundamentais. Mas consideremos também outra sabedoria chinesa: a palavra “crise” formada de dois caracteres – provavelmente há representantes da República Popular da China na audiência, que hão de me corrigir onde errar – os dois caracteres são “perigo “ e “ oportunidade “. E como dizemos aqui na Rússia, “lute contra as dificuldades com a inteligência; e contra os perigos, com a experiência”.
Claro, devemos estar cientes do perigo e prontos para enfrentá-lo, e não apenas de uma ameaça, mas de muitas ameaças diversas que podem surgir nesses tempos de mudança. No entanto, não é menos importante recordar um segundo componente da crise – as oportunidades que não podemos perder, tanto mais que a crise que enfrentamos é crise dos conceitos, relacionada, até mesmo, à civilização. Basicamente trata-se de crise das abordagens e dos princípios que determinam a própria existência dos humanos na Terra. Sejam o que for, temos de revisar abordagens e princípios, e muito seriamente. A questão é para onde ir, o que desistir, o que revisar ou ajustar. Ao dizer isso, estou convencido de que é necessário lutar pelos valores reais, defendendo-os em todos os sentidos.
A humanidade entrou em nova era há cerca de três décadas, quando foram criadas as principais condições para acabar com o confronto político-militar e ideológico. Tenho certeza de que vocês muito falaram sobre isso, nesse clube de discussão. O nosso Ministro das Relações Exteriores também falou sobre isso. Mesmo assim, gostaria de repetir várias coisas.
A busca por um novo equilíbrio, por relações sustentáveis nas áreas social, política, econômica, cultural e militar e de apoio ao sistema mundial começou naquela época. Há muito tempo procurávamos esse suporte, mas devo dizer que não o encontramos, pelo menos até agora. Enquanto isso, os que se sentiam vencedores após o fim da Guerra Fria (também já falamos sobre isso muitas vezes) e pensavam ter atingido o pico do Monte Olimpo, logo descobriram que o chão ruía por baixo deles mesmo ali, que era então a vez deles , e que ninguém poderia “parar esse momento fugaz”, por mais justo que parecesse aquele estado de coisas.
Em geral, deve ter parecido que nos ajustávamos a essa contínua inconstância, imprevisibilidade e a esse permanente estado de transição. Isso tampouco aconteceu.
Gostaria de acrescentar que a transformação que estamos vendo e da qual fazemos parte é de um calibre diferente das mudanças que ocorreram repetidamente na história da humanidade, pelo menos das que conhecemos. Não se trata simplesmente de mudança no equilíbrio de forças ou de avanços científicos e tecnológicos, embora ambos também estejam ocorrendo. Hoje, enfrentamos mudanças sistêmicas em todas as direções – da condição geofísica cada vez mais complicada de nosso planeta, a interpretação mais paradoxal do que seja o ser humano é das razões de sua existência.
Olhemos em volta. E, repito: permito-me aqui manifestar pensamentos meus, ou que subscrevo.
Em primeiro lugar, as mudanças climáticas e a degradação ambiental são tão óbvias, que mesmo as pessoas mais descuidadas já não conseguem deixar de vê-las. Pode-se insistir nos debates científicos sobre os mecanismos por trás dos processos em andamento, mas é impossível negar que esses processos estão piorando e que algo precisa ser feito.
Desastres naturais como secas, inundações, furacões e tsunamis já são quase o neonormal, e vamos nos habituando a eles. Basta lembrar as devastadoras e trágicas inundações na Europa no verão passado, os incêndios na Sibéria – há muitos exemplos. Não apenas na Sibéria – nossos vizinhos na Turquia também tiveram incêndios florestais, nos Estados Unidos e em outros lugares do continente americano. Às vezes parece que qualquer rivalidade geopolítica, científica e técnica, ou a rivalidade ideológica torna-se inútil, nesse contexto, se os vencedores não tiverem ar suficiente para respirar ou água para beber.
A pandemia de coronavírus tornou-se mais outro lembrete de o quão frágil é nossa comunidade humana. E de que nossa tarefa mais importante é garantir à humanidade uma existência segura e resiliência.
Para aumentar nossa chance de sobrevivência diante dos cataclismos, precisamos absolutamente repensar o modo como conduzimos nossas vidas, como administramos nossas famílias, como as cidades se desenvolvem ou como deveriam desenvolver-se; precisamos reconsiderar as prioridades de desenvolvimento econômico de estados inteiros.
Repito, a segurança é um dos nossos principais imperativos e, seja como for, agora já é óbvio que é. Quem tenta negar isso terá que explicar mais tarde por que erraram tanto e por que não estavam preparados para as crises e choques que nações inteiras já enfrentam.
Segundo. Os problemas socioeconômicos que a humanidade enfrenta agravaram-se a ponto de, no passado, desencadear choques mundiais, como guerras mundiais ou cataclismos sociais sangrentos.
Todo mundo está dizendo que o atual modelo de capitalismo, que subjaz à estrutura social na esmagadora maioria dos países está esgotado; que já não oferece solução para uma série de diferenças cada vez mais emaranhadas.
Em todos os lugares, mesmo nos países e regiões mais ricos, a distribuição desigual da riqueza material exacerbou a desigualdade, principalmente, a desigualdade de oportunidades, tanto dentro das sociedades individuais quanto no nível internacional. Mencionei esse desafio formidável em minhas observações no Fórum de Davos no início deste ano.
Sem dúvida, esses problemas nos ameaçam com grandes e profundas divisões sociais.
Além disso, vários países e mesmo regiões inteiras são regularmente atingidas por crises de carência de alimentos. Provavelmente discutiremos isso mais tarde, mas há todos os motivos para acreditar que essa crise se agravará em futuro próximo e poderá atingir formas extremas.
Também há escassez de água e eletricidade (provavelmente cobriremos isso hoje também), sem falar na pobreza, altas taxas de desemprego ou falta de cuidados de saúde adequados.
Os países atrasados estão plenamente cientes disso e estão perdendo a fé na perspectiva de um dia alcançar os países líderes. O desapontamento estimula a agressão e leva as pessoas a se juntarem às fileiras dos extremistas. As pessoas nesses países têm sentimento crescente de expectativas não realizadas e frustradas e de falta de oportunidades não apenas para elas, mas também para seus filhos. É isso que os faz buscar vidas melhores e resulta em migração descontrolada, o que, por sua vez, cria um terreno fértil para o descontentamento social em países mais prósperos. Não preciso explicar nada disso a vocês, porque todos veem isso com os próprios olhos e, muitos aqui são mais versados nesses assuntos, que eu.
Como já observei, as potências líderes prósperas têm outros problemas sociais urgentes, desafios e riscos em grande quantidade, e muitas delas não estão mais interessadas em lutar por influência, uma vez que, como dizem, já têm o suficiente em seus pratos.
O fato de a sociedade e os jovens em muitos países terem reagido exageradamente de maneira dura e até agressiva às medidas de combate ao coronavírus mostrou – e quero enfatizar isso, espero que alguém já tenha mencionado isso antes de mim em outros locais – que a pandemia sempre foi apenas um pretexto: as causas da irritação e frustração sociais são muito mais profundas.
Tenho outro ponto importante para o qual chamo a atenção de todos. A pandemia, que, em teoria, deveria reunir as pessoas na luta contra essa enorme ameaça comum, em vez disso tornou-se fator de divisão, em vez de fator unificador. Há muitas razões para isso, mas uma das principais é que muitos se puseram a procurar soluções para problemas entre as abordagens habituais – uma variedade delas, mas sempre abordagens antigas – que simplesmente não funcionam. Ou, para ser mais preciso, sim, funcionam, mas muitas vezes e por incrível que pareça, só funcionam para piorar o estado de coisas existente.
A propósito, a Rússia tem apelado repetidamente, e aqui repito o apelo: é preciso parar com as ambições inadequadas e trabalhar em conjunto. Provavelmente falaremos sobre isso mais tarde, mas o que tenho em mente é bem claro. Falo da necessidade de combatermos juntos a infecção por coronavírus. Mas nada muda. Tudo ; tudo permanece o mesmo, apesar das considerações humanitárias.
Agora não falo da Rússia. Deixemos de lado, por enquanto, as sanções contra a Rússia. Refiro-me às sanções que permanecem em vigor contra os Estados que precisam urgentemente de ajuda internacional.
Onde estão os fundamentos humanitários do pensamento político ocidental? Parece que, aí, nada existe, só conversa à toda. Vocês compreendem? Parece que só há conversa vã.
Além disso, a revolução tecnológica, conquistas impressionantes em inteligência artificial, eletrônica, comunicações, genética, bioengenharia e medicina abrem enormes oportunidades. Ao mesmo tempo, em termos práticos, levantam questões filosóficas, morais e espirituais que até recentemente eram de domínio exclusivo dos escritores de ficção científica. O que acontecerá se as máquinas ultrapassarem os humanos na capacidade de pensar? Onde está o limite de interferência no corpo humano além do qual uma pessoa deixa de ser ela mesma e se transforma em outra entidade?
Quais são os limites éticos gerais no mundo no qual o potencial da ciência e das máquinas está-se tornando quase ilimitado? O que isso significará para cada um de nós, para nossos descendentes, nossos descendentes mais próximos – nossos filhos e netos?
Essas mudanças estão ganhando impulso e certamente não podem ser interrompidas, porque são objetivas em geral. Todos nós teremos que lidar com as consequências, independentemente de nossos sistemas políticos, condição econômica ou ideologia prevalecente.
Verbalmente, todos os estados falam de um compromisso com os ideais de cooperação e da vontade de trabalhar juntos para resolver problemas comuns. Infelizmente, são apenas palavras.
Na realidade, acontece o contrário disso. E a pandemia serviu para alimentar as tendências negativas que surgiram há muito tempo e agora só fazem piorar.
A abordagem baseada no provérbio, “mais perto de seu corpo, só a própria camisa”, finalmente se generalizou e já nem tenta esconder-se. Ainda mais grave, muitas vezes trata-se de ostentação. Os interesses egoístas prevalecem sobre a noção do bem comum.
Claro, o problema não é só a má vontade de certos Estados e de elites notórias. Na minha opinião, é mais complicado que isso. Só muito raramente a vida nos aparece claramente dividida em preto e branco. Cada governo, cada líder é principalmente responsável por seus próprios compatriotas, obviamente. O principal objetivo é garantir segurança, paz e prosperidade dos seus.
Assim sendo, as questões internacionais e transnacionais nunca serão tão importantes para uma liderança nacional quanto a estabilidade doméstica. Em geral, isso é normal e correto.
Precisamos enfrentar o fato de que as instituições de governança global nem sempre são eficazes e suas capacidades nem sempre estão à altura do desafio colocado pela dinâmica dos processos globais.
Nesse sentido, a pandemia pode ajudar – mostrou claramente quais as instituições que já têm o necessário, e quais precisam ainda de ajustes.
O realinhamento do equilíbrio de poder pressupõe redistribuição de ações a favor dos países emergentes e em desenvolvimento – que até agora se sentiam excluídos.
Para dizer com plena clareza, a dominação ocidental sobre assuntos internacionais – que começou há vários séculos, já era quase absoluta por curto período no final do século 20 – está dando lugar hoje a sistema muito mais diversificado.
Essa transformação não é processo mecânico e pode-se mesmo dizer que, à sua maneira, é processo sem comparação. Pode-se dizer que a história política não conheceu exemplos de ordem mundial estável estabelecida sem uma grande guerra e que tenha por base os resultados daquela grande guerra, como foi o caso após a Segunda Guerra Mundial. Temos em mãos a oportunidade para criar precedente extremamente favorável.
A tentativa de criar essa ordem estável logo depois do fim da Guerra Fria, e criá-la com base na dominação pelo Ocidente, falhou, como vemos. O estado atual das relações internacionais é produto desse mesmo fracasso e devemos aprender com isso.
Alguns talvez se perguntem hoje: e chegamos a quê? Respondo: Chegamos a algo paradoxal. Apenas um exemplo:
– Há duas décadas, a nação mais poderosa do mundo mantém campanhas militares em dois países que não podem ser comparados aos EUA, por seja o padrão que for. E sempre, no final, a nação mais poderosa do mundo teve que encerrar as suas operações sem ter alcançado sequer um, um objetivo, que fosse, dos que se propusera 20 anos antes. E teve de se retirar desses países causando danos consideráveis a outros e a si mesma. Na verdade, a situação piorou dramaticamente. Mas essa não é a questão.
Antes, guerra perdida por um lado significava vitória do outro lado, responsabilizado pelo que acontecia. Por exemplo, a derrota dos EUA na Guerra do Vietnam, não converteu o Vietnã num “buraco negro”. Ao contrário, floresceu ali um bem-sucedido estado em desenvolvimento, que admitidamente dependeu do apoio de um aliado forte. Hoje, as coisas são diferentes: não importa quem assuma o poder, a guerra não para: apenas muda de forma. Regra geral, o hipotético vencedor ou reluta ou simplesmente não consegue garantir o pós-guerra de recuperação, em paz, e só faz piorar o caos e o vácuo de poder, gerando perigo para todo o mundo.”
Colegas,
Quais lhes parece que sejam os pontos de partida desse complexo processo de realinhamento? Permitam-me tentar resumir os pontos dessa discussão.
Em primeiro lugar, a pandemia do coronavírus mostrou claramente que a ordem internacional é estruturada em torno dos Estados-nação.
A propósito, desenvolvimentos recentes mostraram que as plataformas digitais globais – com todo o seu poder, que pudemos ver nos processos políticos internos nos Estados Unidos – falharam quando tentaram usurpar funções políticas ou estatais. Essas tentativas foram efêmeras. As autoridades norte-americanas, como disse, colocaram imediatamente os proprietários dessas plataformas no seu lugar, o que é exatamente o que se faz na Europa, se olharmos para o montante das multas que lhes são aplicadas e as medidas de desmonopolização que estão sendo tomadas. Vocês estão cientes disso.
Nas últimas décadas, muitos lançaram conceitos extravagantes, alegando que o papel do Estado estaria desatualizado e excessivo. A globalização supostamente teria tornado anacrônicas as fronteiras nacionais, e a soberania seria obstáculo à prosperidade. Vocês já ouviram, eu disse antes e vou dizer de novo.
É o que afirmam também aqueles que pretendem abrir as fronteiras de outros países em benefício das suas próprias vantagens competitivas. É o que realmente aconteceu. E assim ficou claro que alguém em algum lugar está conseguindo grandes resultados. Eles imediatamente voltaram a fechar as fronteiras em geral e, em primeiro lugar, as suas próprias fronteiras alfandegárias e tudo o mais, e começaram a construir muros. Bem, deveríamos não ter visto, ou o quê? Todos veem tudo e todos entendem tudo perfeitamente bem. Claro que fazem.
Já não há sentido em contestar isso. É o óbvio. Mas os eventos, quando falamos da necessidade de abrir fronteiras, os eventos, como eu dizia, foram na direção oposta.
Somente os Estados soberanos podem responder com eficácia aos desafios da época e às demandas dos cidadãos. Assim sendo, qualquer ordem internacional efetiva tem de levar em consideração os interesses e capacidades do Estado e proceder com base nisso, não tentar provar que não deveriam existir estados soberanos.
Além disso, é impossível impor qualquer coisa a alguém, sejam os princípios subjacentes à estrutura sociopolítica ou os valores que alguém, por suas próprias razões, chamou de ‘universais’. Afinal, é claro que quando surge uma crise real, resta apenas um valor universal: a vida humana. E cada estado decide por si mesmo a melhor forma de proteger esse valor, com base em suas habilidades, cultura e tradições.
A esse respeito, observarei novamente o quão grave e perigosa tornou-se a pandemia de coronavírus. Como sabemos, mais de 4,9 milhões morreram nessa pandemia. Esses números assustadores são comparáveis e até excedem as perdas militares dos principais participantes da Primeira Guerra Mundial.
O segundo ponto para o qual gostaria de chamar a atenção dos senhores é a escala de mudança, que nos obriga a agir com extrema cautela, mesmo que apenas por razões de autopreservação. O estado e a sociedade não devem responder radicalmente a mudanças qualitativas na tecnologia, mudanças ambientais dramáticas ou à destruição dos sistemas tradicionais. É mais fácil destruir do que criar, como todos sabemos. Nós, na Rússia, sabemos isso muito bem, lamentavelmente, por experiência própria, que já tivemos várias vezes.
Há pouco mais de um século, a Rússia enfrentou objetivamente sérios problemas, inclusive por causa da Primeira Guerra Mundial em curso, mas seus problemas não eram maiores – é possível até que tenham sido menores, ou não tão agudos quanto os problemas enfrentados por outros países. A Rússia poderia ter lidado com seus problemas de forma gradual e civilizada. Mas choques revolucionários levaram ao colapso e desintegração de uma grande potência.
A segunda vez que isso aconteceu, há 30 anos, quando uma nação potencialmente muito poderosa falhou ao não entrar no caminho das reformas urgentemente necessárias, flexíveis, mas totalmente fundamentadas no momento certo. Como resultado, foi vítima de todos os tipos de dogmáticos, ambos reacionários e os chamados progressistas – todos eles fizeram sua parte, todos os lados fizeram das suas.
“Nenhuma revolução jamais valeu o dano que causou ao potencial humano.”
Esses exemplos de nossa história nos permitem dizer que as revoluções não são modo de resolver uma crise: revoluções agravam a crise. Nenhuma revolução valeu o dano que causou ao potencial humano.
Terceiro. A importância de um apoio sólido na esfera da moral, da ética e dos valores está aumentando dramaticamente no frágil mundo moderno. Na verdade, os valores são um produto, um produto único do desenvolvimento cultural e histórico de qualquer nação.
O entrelaçamento mútuo das nações definitivamente as enriquece. A abertura amplia horizontes nacionais e permite que eles tenham um novo olhar sobre suas próprias tradições. Mas o processo tem de ser orgânico e jamais pode ser rápido. Quaisquer elementos estranhos serão rejeitados de qualquer maneira, possivelmente sem rodeios. Qualquer tentativa de impor os valores de alguém aos demais, com resultado incerto e imprevisível, só pode complicar ainda mais uma situação dramática e, de modo geral, produzir a reação oposta e um oposto do resultado pretendido.
Ficamos surpresos com os processos em andamento nos países tradicionalmente vistos como porta-estandartes do progresso. Claro, os choques sociais e culturais que estão ocorrendo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental não são da nossa conta. Temo-nos mantendo fora disso.
No Ocidente há pessoas que acreditam que uma eliminação agressiva de páginas inteiras da própria história, “discriminação reversa” contra a maioria, no interesse de uma minoria, e a exigência de abandonar as noções tradicionais de mãe, pai, família e até mesmo gênero , eles acreditam que tudo isso seria um marco no caminho da renovação social.
Vejam, eu gostaria de salientar mais uma vez que, sim, eles têm o direito de fazer isso. Nós nos mantemos fora disso. Mas gostaríamos de pedir a eles que, correspondentemente, mantenham-se fora de nossos negócios.
Temos um ponto de vista diferente, pelo menos a grande maioria da sociedade russa – seria mais correto colocar dessa forma – tem opinião diferente sobre o assunto. Acreditamos que devemos confiar em nossos próprios valores espirituais, em nossa tradição histórica e a cultura de nossa nação multiétnica.
Os defensores do chamado ‘progresso social’ acreditam que estejam apresentando à humanidade algum tipo de consciência nova e melhor. À toda a velocidade, içar as bandeiras, como dizemos, em frente.
A única coisa que quero dizer agora é que as prescrições que fazem nada têm de novas. Talvez seja surpresa para algumas pessoas, mas a Rússia conhece isso, já estivemos lá.
Após a revolução de 1917, os bolcheviques, apoiando-se nos dogmas de Marx e Engels, também disseram que mudariam as formas e costumes existentes, e não apenas políticos e econômicos, mas a própria noção de moralidade humana e os fundamentos de uma sociedade saudável. A destruição de antigos valores, religião e relações entre as pessoas, até – e incluindo – a rejeição total da família (também tivemos isso), incentivo para informar sobre os entes queridos – tudo isso foi anunciado como se fosse progresso. A propósito, foi proclamado amplamente apoiado em todo o mundo naquela época e estava bastante na moda, o mesmo que hoje. A propósito, vale lembrar que os bolcheviques eram absolutamente intolerantes a outras opiniões, diferentes das deles.
Isso, creio eu, deve trazer à mente um pouco do que vemos acontecer agora. Olhando para o que está acontecendo em vários países ocidentais, ficamos surpresos ao ver as práticas domésticas, que, felizmente, deixamos, espero, no passado distante. A luta pela igualdade e contra a discriminação transformou-se em dogmatismo agressivo que beira o absurdo, quando as obras de grandes autores do passado – como Shakespeare – não são mais ensinadas em escolas ou universidades, porque se crê que suas ideias sejam retrógradas.
Os clássicos são declarados atrasados e ignorantes da importância do gênero ou raça. Em Hollywood, distribuem-se memorandos que recomendam uma ou outra narrativa considerada adequada e o número de personagens de uma ou outra cor de pele, ou de cada gênero que deveriam aparecer em um filme. Isso é pior até do que o Departamento de Agitprop do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética!
Combater os atos de racismo é causa necessária e nobre, mas a nova ‘cultura de cancelamento’ transformou-a em ‘discriminação reversa’, isto é, racismo reverso. A ênfase obsessiva na raça divide ainda mais as pessoas, quando os verdadeiros lutadores pelos direitos civis sonhavam justamente com apagar as diferenças e recusar-se a dividir as pessoas pela cor da pele. Pedi especificamente a meus colegas que encontrassem a seguinte citação de Martin Luther King: “Tenho um sonho que meus quatro filhos pequenos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo caráter.” Esse é o verdadeiro valor. No entanto, as coisas estão acontecendo de forma diferente lá. Na verdade, a maioria absoluta do povo russo não acha que a cor da pele de uma pessoa ou o gênero seja assunto importante. Cada um de nós é um ser humano. Isso é o que importa.
Em vários países ocidentais, o debate sobre os direitos dos homens e das mulheres transformou-se em perfeita fantasmagoria. Vejam, cuidado para não ir aonde os bolcheviques planejaram ir – não só formar galinhas comunistas, mas também porque estaria tornando comunistas todas as mulheres. Mais um passo… e aconteceu!
Os fanáticos por essas novas abordagens chegam ao ponto de querer abolir totalmente aqueles conceitos. Quem se atrever a dizer que o homem e a mulher existem, o que é um fato biológico, corre o risco de ser condenado ao ostracismo. “Pai número um” e “pai número dois”, “pai que deu à luz” em vez de “mãe” e “leite humano” substituindo “leite materno” porque pode incomodar as pessoas que não têm certeza sobre o próprio sexo.
Mas, atenção, repito: nada disso é novidade. Na década de 1920, os chamados Kulturtraegers soviéticos também inventaram alguns novos idiomas, acreditando que estariam criando nova consciência e, assim, mudando valores.
E, como também já disse, fizeram tal confusão que às vezes ainda dá arrepios.
Sem mencionar algumas coisas verdadeiramente monstruosas, quando as crianças aprendem desde cedo que um menino pode facilmente se tornar menina e vice-versa. Ou seja, os professores realmente impõem a alunos e alunas uma escolha que todos supostamente teríamos. É o que fazem enquanto excluem os pais do processo e forçam a criança a tomar decisões que podem comprometer a vida inteira. Sequer se preocupam em consultar psicólogos infantis – será que uma criança dessa idade é capaz de tomar uma decisão desse tipo?
Dando nomes certos às coisas, isso beira um crime contra a humanidade, e está sendo cometido em nome e sob a bandeira do progresso. Bem, se alguém gosta, que faça.
“Conservadorismo saudável”
Já mencionei que, ao moldar nossas abordagens, os russos seremos guiados por um conservadorismo saudável.
Foi há alguns anos, quando as paixões na arena internacional ainda não estavam tão incendiadas como agora, embora, é claro, possamos dizer que as nuvens então já se formavam.
Agora, quando o mundo passa por ruptura estrutural, aumentou muito a importância do conservadorismo razoável como base para uma rota política – precisamente por causa da multiplicação de riscos e perigos e da fragilidade da realidade que nos rodeia.
Essa abordagem conservadora nada tem a ver com tradicionalismos ignorantes, medo da mudança ou jogo de restringir e limitar. Tampouco tem a ver com nos retirarmos para nossa própria concha. Trata-se principalmente de confiar em uma tradição testada pelo tempo, a preservação e o crescimento da população, avaliação realista de si mesmo e dos outros, alinhamento preciso de prioridades, correlação de necessidade e possibilidade, formulação prudente de objetivos e fundamental rejeição do extremismo como método.
Francamente, no período iminente de reconstrução global, que pode demorar bastante, e cujo desenho final ainda é incerto, o conservadorismo moderado é a meu ver a linha de conduta mais razoável.
As coisas inevitavelmente mudarão em algum ponto, mas até agora, o mais racional parece ser acompanhar o princípio norteador da Medicina – “Fazer o bem e não ser causa do mal”. Primum non nocere, como eles dizem.
Novamente, para nós na Rússia, esses não são postulados especulativos, são lições que recolhemos de nossa difícil e às vezes trágica história. O custo de experimentos sociais mal concebidos às vezes ultrapassa qualquer estimativa. Tais ações podem destruir não só a matéria, mas também os fundamentos espirituais da existência humana, deixando para trás uma ruína moral na qual, por muito tempo, nada pode ser construído para substituir o que se perdeu.
Finalmente, há ainda um ponto que quero expor. Compreendemos muito bem que sem estreita cooperação internacional seria impossível resolver muitos problemas urgentes que o mundo enfrenta.
Mas é preciso ser realista: a maioria dos slogans bonitos sobre o repentino surgimento de soluções globais para problemas globais, que ouvimos desde o final do século 20 jamais se concretizarão.
Para alcançar solução global, os Estados e os povos têm de transferir seus direitos soberanos para estruturas supranacionais, numa extensão que poucos aceitarão – se é que alguém aceitaria. Isso se deve principalmente ao fato de que cada um tem de responder pelos resultados de tais políticas não a algum público global, mas a seus próprios cidadãos e eleitores.
Não significa que seja impossível exercer alguma moderação, em nome de alcançar soluções para os desafios globais. Afinal, desafio global é desafio para todos nós juntos, e para cada um de nós em particular. Se todos conseguissem ver um modo de se autobeneficiar da cooperação, para superar esses desafios, certamente estaríamos mais bem equipados para trabalharmos juntos.
Um dos modos de promover esses esforços poderia ser, por exemplo, elaborar, no nível da ONU, uma lista de desafios e ameaças que determinados países enfrentam, com detalhes sobre o modo como esses desafios e ameaças podem afetar outros países. O esforço pode envolver especialistas de vários países e áreas acadêmicas, incluindo vocês, meus colegas aqui reunidos. Acreditamos que o desenvolvimento de um roteiro desse tipo pode inspirar muitos países a ver as questões globais sob nova luz e a compreender como a cooperação pode ser benéfica para eles.
Já mencionei os desafios que as instituições internacionais enfrentam. Infelizmente, esse fato é óbvio: agora é questão de reformar ou encerrar algumas daquelas instituições. Mas as Nações Unidas, como instituição internacional central, mantêm seu valor duradouro, pelo menos por enquanto. Acredito que em nosso mundo turbulento, a ONU traz às relações internacionais um toque de conservadorismo razoável, tão importante para normalizar a situação.
Muitos criticam a ONU por não se adaptar a um mundo em rápida mudança. Em parte é verdade, mas a culpa por essa situação não é a ONU, mas principalmente de seus membros.
Além disso, esse organismo internacional promove não apenas as normas internacionais, mas também o espírito normativo, que se baseia nos princípios de igualdade e máxima consideração pelas opiniões de todos. Nossa missão é preservar esse patrimônio enquanto reformamos a organização.
Porém, ao fazê-lo, precisamos ter certeza de que não jogamos fora o bebê, com a água do banho, como diz o ditado.
Não é a primeira vez que uso uma alta tribuna para fazer esse apelo à ação coletiva para enfrentar os problemas que continuam a se acumular e a agravar-se. É graças a vocês, amigos e colegas, que o Valdai Club está surgindo ou já se consolidou como importante fórum de destaque.
Por esse motivo recorro a essa plataforma para reafirmar nossa disposição de trabalhar juntos para enfrentar os problemas mais urgentes que acossam hoje o mundo.
Amigos,
As mudanças aqui mencionadas antes de mim, e também por mim, são relevantes para todos os países e povos.
A Rússia, é claro, não é exceção. Como todas as outras pessoas, buscamos respostas para os desafios mais urgentes de nosso tempo.
Claro, ninguém tem receitas prontas. Mas atrevo-me a dizer que o nosso país tem alguma vantagem. Deixe-me explicar que vantagem é essa. Tem a ver com nossa experiência histórica.
Todos devem ter notado que várias vezes no decorrer de minhas observações referi-me à experiência histórica da Rússia. Infelizmente, tivemos de acionar muitas lembranças tristes, mas pelo menos nossa sociedade desenvolveu o que agora se conhece como ‘imunidade coletiva’ contra extremismos que abrem caminho para convulsões e cataclismos socioeconômicos.
As pessoas realmente valorizam a estabilidade e a capacidade de viver vida normal e de prosperar. Ao mesmo tempo, estão confiantes de que as aspirações irresponsáveis de mais um grupo de revolucionários não destruirão seus planos e aspirações. Muitos têm memórias vivas do que aconteceu há 30 anos e de toda a dor que nos custou sair da vala onde nosso país e nossa sociedade encontraram-se após a queda da URSS.
“Conservadorismo otimista”
As opiniões conservadoras que defendemos são um conservadorismo otimista – que é o que mais importa. Acreditamos que seja possível um desenvolvimento estável e positivo. Tudo depende principalmente de nossos próprios esforços.
Claro, estamos prontos para trabalhar com nossos parceiros em causas nobres comuns.
Gostaria de agradecer mais uma vez a todos os participantes, pela atenção. Como diz a tradição, terei prazer em responder ou pelo menos tentar responder às suas perguntas.
Obrigado pela sua paciência.
Início da sessão de Perguntas & Respostas
Moderador da 18ª reunião anual da sessão de encerramento do Valdai International Discussion Club Fyodor Lukyanov: Muito obrigado, Senhor Presidente, por suas observações detalhadas cobrindo não só e não tanto os problemas políticos atuais, mas questões fundamentais. Seguindo o que você disse, não posso deixar de perguntar sobre a experiência histórica, as tradições, o conservadorismo e o conservadorismo saudável que você mencionou em várias ocasiões em seus comentários.
Pergunto: O conservadorismo doentio o assusta? Onde está o limite que separa o saudável do doentio? Em que ponto uma tradição deixa de ser algo que une a sociedade e converte-se em fardo?
Vladimir Putin: Qualquer coisa pode tornar-se um fardo, se você não tomar cuidado. Quando falo de “conservadorismo saudável”, Nikolai Berdyayev sempre vem à mente, e já o mencionei várias vezes. Foi notável filósofo russo e, como todos sabem, foi expulso da União Soviética em 1922. Foi tão progressista quanto se pode ser, mas também apoiou o conservadorismo. Costumava dizer, e desculpem-me se não citar corretamente: “Conservadorismo não é algo que impeça o movimento para cima e para a frente, mas algo que impede o escorregão para trás, de volta para o caos”.
Se tratarmos o conservadorismo dessa forma, ele fornecerá uma base eficaz para um maior progresso (fim do trecho transcrito traduzido).*******
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