Pepe Escobar – 16 de novembro de 2023
De um lado da mesa, um líder do Sul Global no topo de seu jogo. Do outro lado, uma múmia vendendo a ilusão de que é o “líder do mundo livre”.
Isso estava fadado a ser um desastre – antes, durante ou depois do encontro bilateral crucial envolvendo as duas maiores potências do mundo. Já durante os comentários introdutórios, o Secretário de Estado dos EUA, Tony Blinken, sentado no lado direito da múmia, estava tão apavorado quanto James Stewart com medo de altura em “Vertigo”, de Hitchcock – sentindo que a desgraça surgiria a qualquer momento.
E foi o que aconteceu – na coletiva de imprensa final. Joe Biden, o ator que interpreta a Múmia, após um sorriso proverbial, disse que o presidente chinês Xi Jinping é “um ditador”. Porque ele é o líder de um país comunista.
Todos aqueles planos elaborados anteriormente foram desfeitos em um piscar de olhos. Um cenário provisoriamente cor-de-rosa transformou-se em um filme noir. A resposta do Ministério das Relações Exteriores da China foi tão incisiva quanto uma frase de Dashiell Hammett – e contextualizada: isso não foi apenas “extremamente errado”, mas “uma manipulação política irresponsável”.
Tudo isso, é claro, presumia que A Múmia sabia onde estava e sobre o que estava falando, “de improviso”, e não ditado por seu onipresente fone de ouvido.
A Casa Branca revela a trama
O drama Xi-Biden, que durou pouco mais de duas horas, não foi exatamente um remake de “Vertigo”. Washington e Pequim pareciam bastante confortáveis, prometendo, em conjunto, a proverbial promoção e o fortalecimento do “diálogo e da cooperação em vários campos”; um diálogo intergovernamental sobre IA; cooperação no controle de drogas; retorno às conversas de alto nível entre militares; um “mecanismo de consulta sobre segurança marítima”; aumento significativo dos voos até o início de 2024; e “expansão dos intercâmbios” em educação, estudantes internacionais, cultura, esportes e círculos de negócios.
O Hegemon estava longe de ter um Falcão Maltês de valor inestimável (“do qual os sonhos são feitos”) para oferecer a Pequim. A China já está consolidada como a maior economia comercial do mundo em termos de PPP. A China está avançando a uma velocidade vertiginosa na corrida tecnológica, mesmo sob as desagradáveis sanções dos EUA. O soft power da China em todo o Sul Global/Maioria Global aumenta a cada dia. A China está co-organizando com a Rússia o esforço conjunto em direção à multipolaridade.
O resumo da Casa Branca, por mais brando que possa parecer, na verdade revela a parte principal da trama.
Biden – na verdade, seu fone de ouvido – ressaltou o “apoio a um Indo-Pacífico livre e aberto”; a defesa de “nossos aliados do Indo-Pacífico”; o “compromisso com a liberdade de navegação e sobrevoo”; “adesão ao direito internacional”; “manutenção da paz e da estabilidade no Mar do Sul da China e no Mar da China Oriental”; “apoio à defesa da Ucrânia contra a agressão russa“; e “apoio ao direito de Israel de se defender contra o terrorismo“.
Pequim entende detalhadamente o contexto e as implicações geopolíticas de cada uma dessas promessas.
O que o resumo não diz é que os assessores de Biden também tentaram convencer os chineses a parar de comprar petróleo de seu parceiro estratégico, o Irã.
Isso não vai acontecer. A China importou uma média de 1,05 milhão de barris de petróleo por dia do Irã nos primeiros 10 meses de 2023 – e aumentando.
O Think Tankland dos EUA, sempre excelente em desinformação, acreditou em sua própria projeção infantil de que Xi estava bancando o durão contra os EUA na Ásia, sabendo que Washington não pode se dar ao luxo de ter um terceiro caso amoroso, desculpe, uma frente de guerra além da Ucrânia e de Israel/Palestina.
O fato é que Xi sabe tudo o que há para saber sobre as frentes imperiais e rotativas da Guerra Híbrida, além de outras que podem ser ativadas com o simples toque de um interruptor. O Hegemon continua a provocar distúrbios não apenas em Taiwan, mas nas Filipinas, no Japão, na Coreia do Sul, na Índia e continua a flertar com possíveis revoluções coloridas na Ásia Central.
Ainda não houve um confronto direto entre os EUA e a China graças à milenar experiência diplomática chinesa e à visão de longo prazo. Pequim sabe em detalhes como Washington está simultaneamente em modo de Guerra Híbrida Total contra a BRI (Belt and Road Initiative) e o BRICS – que em breve se tornará o BRICS 11.
Apenas duas opções para a China e os EUA
Um repórter sino-americano, após os comentários introdutórios, perguntou a Xi, em mandarim, se ele confiava em Biden. O presidente chinês entendeu perfeitamente a pergunta, olhou para ela e não respondeu.
Essa é uma reviravolta importante na trama. Afinal de contas, Xi sabia desde o início que estava falando com os manipuladores que controlavam um fone de ouvido. Além disso, ele estava totalmente ciente de que Biden, na verdade seus manipuladores, qualificavam Pequim como uma ameaça à “ordem internacional baseada em regras”, sem mencionar as implacáveis acusações de “genocídio de Xinjiang” e o tsunami de contenção.
Não por acaso, em março passado, em um discurso para notáveis do Partido Comunista, Xi declarou explicitamente que os EUA estão envolvidos em “contenção, cerco e repressão abrangentes contra nós”.
O acadêmico Chen Dongxiao, de Xangai, sugere que a China e os EUA devem se engajar em um “pragmatismo ambicioso”. Esse foi exatamente o tom da principal lição de Xi em São Francisco:
“Há duas opções para a China e os EUA na era das transformações globais jamais vistas em um século: Uma é aumentar a solidariedade e a cooperação e dar as mãos para enfrentar os desafios globais e promover a segurança e a prosperidade globais; e a outra é apegar-se à mentalidade de soma zero, provocar rivalidade e confronto e levar o mundo à turbulência e à divisão. As duas escolhas apontam para duas direções diferentes que decidirão o futuro da humanidade e do Planeta Terra.”
Isso é o mais sério possível. Xi acrescentou o contexto. A China não está envolvida em pilhagem colonial; não está interessada em confronto ideológico; não exporta ideologia; e não tem planos de superar ou substituir os EUA. Portanto, os EUA não devem tentar suprimir ou conter a China.
Os assessores de Biden podem ter dito a Xi que Washington ainda segue a política de “uma só China“, mesmo que continue a transformar Taiwan em uma arma sob a lógica distorcida de que Pequim poderia “invadir”. Xi, mais uma vez, forneceu o argumento decisivo conciso: “A China acabará, inevitavelmente, se reunificando” com Taiwan.
US$ 40.000 para jantar com Xi
Em meio a toda essa tensão mal disfarçada, o alívio em São Francisco veio na forma de negócios. Todos e seus vizinhos corporativos – Microsoft, Citigroup, ExxonMobil, Apple – estavam ansiosos para se reunir com líderes de várias nações da APEC. E especialmente da China.
Afinal, a APEC representa quase 40% da população global e quase 50% do comércio global. Tudo isso tem a ver com a Ásia-Pacífico, e não com o “Indo-Pacífico”, uma jogada vazia de “ordem internacional baseada em regras” sobre a qual ninguém sabe nada, muito menos usa em qualquer lugar da Ásia. A Ásia-Pacífico será responsável por pelo menos dois terços do crescimento global em 2023 – e continua crescendo.
Daí o grande sucesso de um jantar de negócios no Hyatt Regency, com ingressos custando entre US$ 2.000 e US$ 40.000, organizado pelo Comitê Nacional de Relações entre Estados Unidos e China (NCUSCR) e pelo Conselho Empresarial EUA-China (USCBC). Xi, inevitavelmente, foi a estrela do show.
Os chefões das empresas sabiam de antemão que os EUA haviam optado por não participar do Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP) e que a nova jogada comercial, a chamada Estrutura Econômica Indo-Pacífica (IPEF), é basicamente um D.O.A.[dead on arrival, morto na chegada – nota do tradutor]. A IPEF pode lidar com questões da cadeia de suprimentos, mas não atinge o cerne da questão: tarifas mais baixas e amplo acesso ao mercado.
Portanto, Xi estava lá para “vender” aos investidores não apenas a China, mas também grande parte da região da Ásia-Pacífico.
Um dia depois de São Francisco, o centro da ação foi transferido para Xangai e para uma conferência de alto nível entre a Rússia e a China; esse é o tipo de reunião em que a parceria estratégica formula os caminhos a seguir na Longa Marcha para a Multipolaridade.
Em São Francisco, Xi fez questão de enfatizar que a China respeita a “posição histórica, cultural e geográfica” dos EUA, ao mesmo tempo em que espera que os EUA respeitem o “caminho do socialismo com características chinesas”.
E é aqui que o enredo do filme noir se aproxima do tiroteio final. O que Xi espera nunca vai acontecer com os psicopatas neoconservadores straussianos comandando a política externa dos EUA. E isso foi confirmado de forma contundente por A Múmia, também conhecido como Joe “Dictator” Biden.
Lá se foi o praticante de realpolitik Joseph “soft power” Nye, um dos poucos realistas que acreditam que a China e os EUA, como James Stewart e Kim Novak em “Vertigo”, precisam um do outro e não devem se separar.
Bem, infelizmente, em “Vertigo”, a heroína mergulha no vazio e morre.
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