Quando os russos atacam

Dmitry Orlov – 29 de janeiro de 2024

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O Politico.eu, um recurso da Internet de certa forma respeitável, publicou recentemente um longo artigo intitulado “Europe’s Trump challenge: Is it ready to fight Vladimir Putin alone?” (O desafio Trump da Europa: ela está pronta para lutar sozinha contra Vladimir Putin?) e com o subtítulo “The Continent contemplates the end of its Pax Americana” (O continente contempla o fim de sua Pax Americana). É um tipo de artigo contemplativo, mas o que os autores se recusam a contemplar é a validade de suas suposições: que Vladimir Putin quer lutar contra o continente. Será que ele quer?

Citando diretamente a própria peça:

“Qual é a probabilidade de tal cenário? Putin insiste que a ideia é ridícula: ‘A Rússia não tem nenhuma razão, nenhum interesse – nenhum interesse geopolítico, nem econômico, político ou militar – para lutar com os países da OTAN’, disse ele em dezembro… Mas, por outro lado, ele disse o mesmo sobre a Ucrânia”.

A Ucrânia é um país da OTAN? Quem sabia? Putin mordiscou uma maçã uma vez; portanto, devemos nos apressar e esconder todas as laranjas! É essa a lógica? Que vergonha, autores do Politico, Laura Kayali, Lucia Mackenzie, Charlie Duxbury e Joshua Posaner, que vergonha!

Se você estiver satisfeito com esse nível de análise, pare de ler e vá passar um tempo de qualidade com seus filhos e/ou netos (se tiver algum). E se não tiver nenhum, então vá trabalhar para criar alguns (se não for tarde demais para você). Deus o abençoe!

Quanto ao restante de vocês, deixe-me ajudá-los a separar as moscas das costeletas (como os russos gostam de dizer); pois, embora as moscas possam pousar diretamente sobre as costeletas, não é possível deduzir dessa justaposição que as moscas e as costeletas são a mesma coisa.

Não vou aborrecê-lo com os detalhes do Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre a Ucrânia e a Federação Russa de 1997, que definiu as fronteiras entre a Federação Russa e a Ucrânia com base em fronteiras administrativas arbitrárias e ultrapassadas da era soviética, e que a Ucrânia permitiu que expirasse em 2019. Além disso, o regime de Kiev deixou clara sua intenção de entrar para a OTAN, violando o referido tratado, que estipulava a neutralidade militar da Ucrânia. Dessa forma, o regime de Kiev violou o “compromisso mútuo de não usar seu território para prejudicar a segurança um do outro” (no jargão estranho da Wikipédia), pintando assim um grande alvo em suas costas no que diz respeito à Rússia.

Tampouco vou aborrecê-lo com uma recapitulação do deslocamento constante da Ucrânia em direção ao nacionalismo, durante a qual ela foi moldada, com o firme apoio do Ocidente, em uma espécie de antirrussia, levando ao sangrento golpe de 2014, após o qual o novo regime nacionalista, instalado com a ajuda do Departamento de Estado dos EUA, recebeu reconhecimento e ajuda imediata do Ocidente. Ela proibiu rapidamente o idioma russo (falado pela grande maioria da população ucraniana) e começou a atacar fisicamente os russos étnicos no leste do país, que então se rebelaram e se separaram.

Vamos também avançar rapidamente pelos oito anos seguintes, durante os quais as partes do leste da Ucrânia mantidas pelos separatistas estavam sendo constantemente bombardeadas pelo regime de Kiev, sob o coro ocidental de “invasão russa!” e “agressão russa!”: A Rússia tinha acabado de invadir ou estava prestes a invadir. Isso culminou em fevereiro de 2022, quando o regime de Kiev, rearmado e retreinado pela OTAN, reuniu tropas e blindados na fronteira da região separatista e se preparou para atacar. Considerando a fronteira porosa e em grande parte fictícia entre o antigo leste da Ucrânia e a própria Rússia, com os mesmos russos vivendo em ambos os lados, esse teria sido inevitavelmente um ataque à própria Rússia.

Só então a Rússia reagiu: diante da perspectiva de forças da OTAN entrincheiradas a uma distância de tiro fácil de Moscou, Putin repetiu sua famosa frase: “Há cinquenta anos, nas ruas de Leningrado, aprendi uma regra: se a luta é inevitável, você deve atacar primeiro”. E assim começou a Operação Militar Especial da Rússia para desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia, que continua até hoje. Essa é a única pepita de informação relevante em um grande monte de bobagens políticas: A Rússia só reage militarmente quando se depara com um risco muito sério à sua segurança.

Tomando isso como um dado, a Europa representa atualmente um risco muito sério para a segurança da Rússia – um risco que a forçaria a atacar para “atingir primeiro”? Não, não representa. Na ausência de uma provocação muito séria da OTAN – como a que aconteceu no leste da Ucrânia em 2022 – a Rússia pode simplesmente fazer o que for necessário para estar preparada para neutralizar e repelir qualquer possível ataque da OTAN. O problema para a OTAN é que não há outros representantes que não sejam da OTAN, como a antiga Ucrânia, atrás dos quais ela possa se esconder e forçar a provocação da Rússia, evitando uma grande escalada entre a Rússia e a OTAN.

Os finlandeses, estrategicamente posicionados a uma distância próxima de São Petersburgo, a segunda maior cidade da Rússia, devem ter percebido que eram os próximos na fila e rapidamente se juntaram à OTAN; agora eles podem simplesmente fazer alguns barulhos altos de latidos na direção geral da fronteira russa, mas habilmente evitam ser lançados contra a Rússia em algum tipo de ataque suicida. Enquanto isso, eles praticamente destruíram sua pequena economia ao interromper todo o comércio com a Rússia (algo que os russos mal perceberam). Eles também estão dando um duro danado em sua minoria russa bastante considerável, mas isso não representa uma ameaça existencial para a Rússia; essas pessoas podem voltar para casa quando quiserem e, se não forem espertas o suficiente para descobrir para que lado o vento está soprando, talvez não sejam russas o suficiente.

Há um conjunto totalmente diferente de motivos para a liderança da Europa falar em se armar contra a Rússia.

– Ao se isolar das exportações russas de energia e de outros insumos industriais essenciais, a indústria europeia se tornou não competitiva. A fabricação de armas é agora a única atividade industrial na qual eles podem se envolver de forma lucrativa: as decisões de compra de armas são em grande parte políticas e as armas não precisam ter preços competitivos ou mesmo ser particularmente eficazes.

– Além disso, ao falar sobre a “ameaça russa”, as autoridades europeias podem criar a justificativa para novos empréstimos maciços, em nome da segurança nacional, para tapar os buracos em seus orçamentos nacionais.

– Por fim, a fantasmagórica “ameaça russa” pode ajudar a desviar a atenção de sua segurança interna terrivelmente mal administrada, com enormes multidões de migrantes inundando suas terras e cometendo muitos crimes.

Diante de tudo isso, a postura da Europa ao se preparar para um ataque russo lembra uma velha piada: um homem está andando na rua quando uma mulher em uma sacada aponta para ele e grita: “Me ajude! Este homem está prestes a me estuprar!” O homem grita de volta: “Mulher, como posso estuprá-la se você está na varanda?” Ao que a mulher responde: “Estou descendo”.


Fonte: https://boosty.to/cluborlov/posts/8a4dc53f-3588-44ff-9989-d360b5a18451

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